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Comitês de Bacia Hidrográfica na Amazônia são inadiáveis

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André Villas-Bôas e Biviany Rojas

Confira o artigo de André Villas-Bôas, secretário executivo do ISA, e da advogada da organização Biviany Rojas sobre as ações do Ministério Público Federal que pretendem tirar do papel os comitês de bacia hidrográfica na Amazônia

Na semana passada, o Ministério Público Federal (MPF) entrou na Justiça contra a Agência Nacional de Águas (ANA) por causa da liberação de autorizações de aproveitamento de recursos hídricos na Amazônia sem a constituição e anuência da instância de planejamento participativo e descentralizado prevista na legislação, responsável por balizar essas autorizações (saiba mais).

De acordo com a Lei 9.433 de 1997, que criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH), as decisões sobre o uso dos rios em todo o país devem ser tomadas dentro do contexto de cada bacia hidrográfica por meio de seus respectivos Comitês de Bacias (CBH). Também conhecidos como Parlamentos das Águas, os CBHs são os espaços competentes para definir as condições em que é possível autorizar os aproveitamentos de recursos hídricos.

A especial atenção dada pelo MPF à existência dos CBHs explica-se pela importância dessa instância para o planejamento do uso de um recurso tão estratégico como a água. A má utilização e a falta de planejamento são responsáveis pela crise de abastecimento que vivemos em várias regiões do Brasil, em especial no Sudeste.

Por um lado, o CBH é um fórum intersetorial que reúne, em um único espaço de deliberação, a sociedade civil interessada, os usuários que aproveitam economicamente os recursos hídricos na bacia e o Poder Público competente para sua gestão. Por outro lado, os CBHs propõem um recorte territorial inédito para o planejamento socioambiental das políticas públicas, já que a área de abrangência dos comitês é definida a partir dos limites geográficos de cada bacia hidrográfica, e não das divisões político-administrativas nela existentes. Dessa forma, os CBH têm o poder de juntar municípios e estados sob um critério de coerência geográfica e ecológica, altamente relevante para planejar e regular o atendimento das demandas populacionais e econômicas por recursos naturais.

Apesar das virtudes dessa instância, deve-se reconhecer que sua aplicação na região amazônica representa um desafio à altura de sua sociobiodiversidade e da importância estratégica dos serviços ambientais que beneficiam outras regiões do país. Até hoje, só três comitês estaduais foram instalados em todas as bacias amazônicas. A estruturação dos CBHs na região precisa considerar a necessidade de adaptações às realidades geográficas, culturais, populacionais, econômicas e de mobilidade.

Os setores e atores que cumprem minimamente a função de assegurar serviços ambientais estratégicos – uma vocação da Amazônia – devem ser valorizados e incorporados na representação dos comitês na região, com peso diferenciado face à representação hoje predominante dos interesses econômicos específicos que disputam o uso da água. Ou seja, a finalidade dos CBHs na Amazônia não deveria ser reduzida a um papel de regulação de conflitos pelo uso econômico da água, mas sobretudo de planejamento estratégico, visando a sustentabilidade futura da bacia e a manutenção de serviços ambientais estratégicos, dentro de uma visão sistêmica de interesse nacional.

Por exemplo, a atual legislação só prevê a participação de “comunidades indígenas ali residentes ou com interesses na Bacia”, assim como uma vaga exclusiva para a Fundação Nacional do Índio (Funai), como parte da representação da União nos CBHs dos rios de domínio da União. Na legislação, nada é mencionado sobre a participação das comunidades tradicionais, como ribeirinhos, extrativistas, beradeiros e tantos outros que moram nas Unidades de Conservação de Uso Sustentável, tampouco é mencionado o papel do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), nem a participação das comunidades quilombolas.

Evidentemente, o instrumento dos CBH precisa ser “amazonizado”. É necessário fazer um verdadeiro exercício de customização do instrumento por meio de sua própria utilização. Só mediante a promoção da criação de CBH por toda a Amazônia será possível ajustar sua dimensão institucional. É fundamental que a ANA assuma os riscos de iniciar processos de planejamento participativos na Amazônia, de apoiar as iniciativas já existentes e de comprometer-se com seus resultados, sem esperar tecnicismos vindos de cima pra baixo que dificilmente vão conseguir equacionar a complexidade das relações socioculturais e econômicas dos rios da região.

As ações impetradas pelo MPF na Justiça contra a ANA reforçam que o estabelecimento de CBH na região Amazônia é um fato que não pode ser mais postergado. Conflitos socioambientais instalados nas bacias dos rios Xingu, Madeira e Tapajós, entre outros, confirmam a necessidade de reverter o processo de planejamento centralizado, autoritário e exógeno que o governo federal vem impondo à Amazônia.

O movimento promovido pelo MPF é uma forma de dar um último alerta para o governo federal respeitar e aplicar a legislação vigente sobre gestão de recursos hídricos na Amazônia. Trata-se de uma demanda legítima que possibilita às populações amazônidas a oportunidade de exercer seu direito de decidir sobre o destino de seus próprios recursos, de participar do planejamento dos usos múltiplos e equitativos da água, na sua interpretação mais ampla e integral de rios e florestas.

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