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Kátia Abreu Guarani-Kaiowá

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Se soubessem como as terras indígenas ajudam a agricultura, as autoridades rejeitariam a PEC-215 e adicionariam o nome “Guarani-Kaiowá” nas redes sociais para lutar pelas demarcações. Artigo de opinião de Adriana Ramos, coordenadora de Política e Direito Socioambiental do ISA, e Carlos Rittl, secretário executivo do Observatório do Clima, publicado originalmente no Blog do Planeta, da Revista Época, no dia 17/4

“Se malandro soubesse como é bom ser honesto, seria honesto só por malandragem.” O verso de Dicró se aplica ao falso debate criado no Brasil sobre terras indígenas: parlamentares que se dizem representantes dos agricultores no Congresso querem mudar a Constituição para barrar novas demarcações, com o suposto intuito de aumentar a disponibilidade de terras e ganhar mais dinheiro. Mas, se soubessem como as áreas indígenas e unidades de conservação ajudam a agricultura, fariam todo esforço do mundo para protegê-las – de forma a aumentar a produção e ganhar mais dinheiro. Só por malandragem.

A Proposta de Emenda Constitucional no 215/2000, que será aprovada numa comissão especial da Câmara daqui a algumas semanas após um simulacro de debate público, é o grande projeto da bancada ruralista para esta legislatura. Seu texto retira do Presidente da República e transfere ao Congresso a prerrogativa de demarcar terras indígenas. Na prática, isso significa que dificilmente novos territórios indígenas serão criados no país. E os que já o foram poderão ficar fragilizados juridicamente, a depender do Frankenstein que sair da tramitação. Ironicamente, a ala radical do agronegócio reputa à PEC o condão de eliminar a “insegurança jurídica”. O resultado tende a ser o oposto: problemas no STF e uma chuva de ações judiciais.

A principal razão por trás da PEC é o conflito existente em Mato Grosso do Sul entre o os índios guaranis dos grupos kaiowá e ñandeva e o agronegócio. Os guaranis foram expulsos de suas terras pelo governo no século XX e viram seus lares entregues a fazendeiros. Foi uma imensa operação de grilagem patrocinada pelo governo, que resultou de títulos legítimos de propriedade. A partir dos anos 1990, amparados na Constituição, os guaranis iniciaram a retomada de suas terras – agora entre as mais valorizadas áreas de produção agropecuária do país. Os fazendeiros não quiseram abrir mão, e um processo que poderia ser resolvido com uma negociação e indenizações do Estado aos ocupantes de boa fé virou uma espada de Dâmocles sobre as nações indígenas do Brasil.

Se tiver êxito, a PEC criará um problemão para a agricultura do país. Ao fragilizar as terras indígenas e unidades de conservação, em especial na Amazônia, ela fará aumentar o desmatamento, ajudando a mudar o clima local e global. Isso, por sua vez, deve retirar do Sudeste e do Centro-Oeste, onde hoje se concentra a agropecuária, um insumo fundamental e que não tem exatamente sobrado: a água.

As chuvas de verão que fazem o sucesso do agronegócio brasileiro são em grande parte resultantes de um sistema de monções. A umidade vem do Atlântico tropical e é “sugada” para dentro do Norte do Brasil pelo efeito do calor produzido pelo sol e pela condensação das nuvens de chuva sobre a floresta. A Amazônia é uma espécie de via preferencial dessa circulação. O ar úmido sai pelo sul da floresta, “bate” nos Andes e volta para o Atlântico cruzando o Brasil central. Embora essa umidade – os tais “rios voadores” não seja, por si só, condição suficiente para as chuvas, sem ela não choveria como chove por aqui.

Os cerca de 400 territórios indígenas da Amazônia são guardiões desse mecanismo. Juntos, eles protegem hoje 110 milhões de hectares e estocam 55 bilhões de toneladas de gás carbônico nas árvores. Segundo estimativa de pesquisadores do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) e de outras instituições, o desmatamento dentro de terras indígenas e unidades de conservação equivale a no máximo um sétimo do que é observado fora. Apenas as áreas protegidas criadas entre 2003 e 2007 evitariam a emissão e 3 bilhões de toneladas de CO2 até o meio do século.

Outro problema é que o desmatamento esquenta a região desmatada – e isso prejudica a produção. Na bacia do Xingu, somente entre 2002 e 2010, a temperatura regional subiu em média 1oC enquanto a cobertura vegetal diminuía. No Parque Indígena do Xingu as temperaturas são até 8oC mais baixas do que no entorno desmatado.

Aos efeitos perversos do desmatamento se combinam os da mudança climática: nos próximos 25 a 30 anos, o Centro-Sul do país e parte da Amazônia ficarão mais quentes e mais secos. Uma maneira de adaptar a agricultura a esse novo clima é criar mais áreas protegidas, não impedi-las.

A menos que acreditem que a seca que já dura três anos é uma “coincidência”, como disse (e depois desdisse) a presidente Dilma Rousseff, os agricultores e pecuaristas brasileiros deveriam estar preocupados com o manejo de suas áreas de produção e com a garantia de abastecimento futuro. Deveriam rejeitar a PEC-215 como se rejeitam ideias de ébrio. A ministra da Agricultura, Kátia Abreu (PMDB), deveria ser a primeira a dar o exemplo: agora que foi alçada ao cargo de representante de todos os produtores do Brasil, faria bem em apensar um “Guarani-Kaiowá” a seu nome nas redes sociais e lutar pelas demarcações.

Num governo cuja tônica até aqui tem sido tentar desfazer equívocos do próprio passado, nada mais adequado do que isso.

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