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Presidente da Câmara dá um tiro no próprio pé

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Márcio Santilli

Na quarta-feira (11/12), no apagar das luzes do ano legislativo, a bancada ruralista, com aval do presidente da Câmara dos Deputados, Henrique Alves (PMDB-RN), instalou uma comissão especial para deliberar sobre a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/2012, que pretende alterar o artigo 231 da Constituição Federal, transferindo do Poder Executivo para o Congresso Nacional a decisão de aprovar a demarcação das Terras Indígenas (saiba mais). Mesmo sem dispor da indicação de representantes do PT, do PV, do PSB e do PSOL, os ruralistas reuniram número suficiente entre os já indicados para o colegiado para forçarem sua instalação e nomearam Osmar Serraglio (PMDB-PR) para a função de relator. Diante do fato consumado, o PT aceitou designar seus membros e indicar um nome para presidi-la, que será o do ex-ministro de Desenvolvimento Agrário, Afonso Florence (PT-BA).

A tática da chantagem parlamentar não é novidade na atuação da bancada ruralista e foi experimentada por todos os governos. Nesta investida mais recente contra os direitos indígenas, lançou mão da convocação arbitrária de ministros e da obstrução de votações de interesse do governo para paralisar a demarcação de territórios e reivindicar medidas de restrição de direitos emanadas do Executivo. É nesse contexto que, pela terceira vez em 2013, Henrique Alves acolheu a pressão dos ruralistas e abençoou esta comissão, sabendo estar reiterando uma declaração de guerra contra os índios. Aí há novidade, com a presidência da Câmara endossando uma agenda corporativa de exclusão de direitos de terceiros.

Outra novidade é a permissividade do governo, cujos líderes no Congresso assistiram à manobra de bastidor dos ruralistas sem confrontá-la. O governo tem afirmado que discorda da PEC, a qual, nas palavras do ministro da Justiça, Eduardo Cardozo, “não resolve o problema”. Ele não considera, porém, que a questão seja suficientemente relevante para disputá-la, talvez porque haja outras mais relevantes dependendo de quórum na Câmara e que o governo deseja ver aprovadas antes do recesso parlamentar de final de ano. A permissividade em deixar que direitos indígenas sejam tratados como moeda de troca em acordos parlamentares não é novidade neste governo, mas, sim, deste governo.

Chantagem e omissão marcam política indigenista

A chantagem e a omissão são as duas faces de uma mesma moeda, uma síntese da política de coalisão PMDB-PT, em que o primeiro encarna os interesses anti-indígenas e os carreia para dentro do estado e o segundo empresta sua legitimidade, lavando as mãos diante do crime, como se ele fosse um fenômeno natural e não político e social. Não é à toa que a senadora Katia Abreu, presidente Confederação Nacional da Agricultura (CNA), filiou-se ao PMDB e passou a integrar definitivamente a base governista, sendo que o partido também mantém a coordenação da bancada ruralista na Câmara, além dos ministérios da Agricultura e de Minas e Energia, que executam as políticas responsáveis pelos principais focos atuais de conflitos com os índios.

O pior de tudo é que todo esse jogo sujo está sendo armado em cima de uma proposta cujo mérito é ridículo. Todos sabem que em nenhum lugar do mundo o Poder Legislativo exerce funções de demarcar terras, seja para índios ou quaisquer outros. É função eminentemente executiva. Os ruralistas afirmam – e Henrique Alves confirma – que a PEC se justifica porque o governo federal está executando a sua função de forma errática, mas não há um único elemento objetivo indicando que o Legislativo poderia fazer melhor. Estaria transformando a decisão sobre terras indígenas em processo legislativo, sem que o Congresso disponha de técnicos, recursos, informação qualificada e ambiente institucional adequado.

Pode ser que seja esta mesma a pretensão: paralisar indefinidamente os processos de demarcação, e só decidir sobre os que pareçam passíveis de esbulho fácil ou de retaliação. Mas o Congresso deveria se perguntar melhor sobre o que, mesmo, estará trazendo para o seio da instituição, e se o arquivamento, nele, dessas demandas não representará um incômodo permanente, um fator a mais de tumulto no processo legislativo, um passivo a mais na relação com a sociedade.

Osmar Serraglio já relatou a PEC 215 na Comissão de Constituição de Justiça (CCJ) da Câmara, oferecendo parecer favorável quanto à constitucionalidade, desde que aplicada a futuras demarcações, enquanto que o seu texto original, da lavra ruralista, pretendia atingir e rever, inclusive, as demarcações já concluídas. Parece improvável que ele pretenda retroagir à formulação que já rejeitou, sabendo que alterações no artigo 231 certamente provocarão questionamentos no Supremo Tribunal Federal (STF), cujos critérios de constitucionalidade são bem mais rigorosos que o da CCJ da Câmara.

Em ordens de grandeza, perto de 66% da demanda pela regularização de territórios, ou cerca de 400 terras, já se encontra resolvida (processos de demarcação concluídos ou já dispondo de decisão política sobre os limites a serem demarcados), sendo que o terço restante concentra casos mais difíceis de resolver, como o de grupos isolados ou que passaram a reivindicar sua identidade indígena mais recentemente. Boa parte deste terço ainda não foi objeto de qualquer providência administrativa. Da parte cujo processo tramita, a maioria está judicializada.

Em outras palavras, daqui para frente, na medida em que se atribuam limites às terras pendentes de providências, a tendência é que os processos venham a ser contestados judicialmente. Haverá exceções, mas a regra será que a decisão final sobre os limites venha a ser dada pelo Judiciário, a menos que ocorra algum acordo entre as partes durante o processo, mediado ou não pelo Estado. Não será diferente caso o Congresso venha a decidir, ou a não decidir, ferindo qualquer dos direitos ou interesses envolvidos.
Se a PEC 215 for aprovada, o Congresso estará dando um tiro no próprio pé, chamando para si um pacote de pendências judiciais, sem dispor de condições técnicas e procedimentais para resolvê-lo, sendo provável que contribua para agravá-lo por força da sua ação ou omissão. Vai se expor aos protestos dos interessados, que, afinal, acabarão dirimidos no Judiciário. Nesse sentido, até o ministro da Justiça tem razão.

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