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Visões de Uttarakhand, Índia IV

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Nurit Bensusan

No quarto relato de sua viagem à Índia, a assessora do ISA Nurit Bensusan fala das diferenças na legislação indiana e brasileira sobre biodiversidade

“E o consentimento prévio informado?” É a quinta vez que a colega norte-americana aqui do Congresso Internacional de Biodiversidade faz essa pergunta quando os palestrantes da sessão sobre “biodiversidade: sistemas legais e de conhecimento” acabam suas apresentações. Ela tem razão, em parte... As apresentações, na sua maioria, são um conjunto de informações sobre o uso medicinal de plantas em comunidades rurais indianas. Como resposta, porém, ela recebe apenas perplexidade e incompreensão.

Isso porque ela só tem razão em parte. Na Índia, o consentimento prévio informado é apenas para quem vai usar diretamente uma planta ou um animal para fazer um produto. O conhecimento tradicional propagado nessas apresentações é de domínio público. Como me explicou um pesquisador indiano, trata-se de conhecimento ancestral compartilhado por todos. Assim sendo, se a pessoa que quer usar esse conhecimento é indiana, não precisa perguntar para ninguém se esse conhecimento pode ser utilizado, pois o conhecimento pertence a ela também. Assim, para a maioria dos palestrantes dessa sessão, a pergunta sobre consentimento prévio informado não fazia nenhum sentido (saiba mais no quadro ao final da reportagem).

É uma estratégia de proteção adequada para um mundo melhor do que o que vivemos. Nesse aqui, a estratégia indiana pode significar uma porta aberta para a biopirataria. Se todo o conhecimento tradicional indiano é de domínio público, as empresas indianas correm para gerar produtos a partir dele e patentear tais produtos. Mas, outras empresas podem usar esse conhecimento também para criar novos produtos e colocá-los no mercado. Claro que seria possível dizer que a patente poderia ser contestada, uma vez que se trata de conhecimento tradicional indiano. Mas, além da dificuldade de provar, a briga pode ser longa e cara.

Um exemplo é a batalha pela revogação da patente do nim, planta usada comumente na Índia em repelentes, sabão, produtos cosméticos, pastas de dente e até mesmo contraceptivos. A Índia conseguiu a revogação da patente do nim outorgada pelo Escritório de Patentes Europeu, em 1995, que, por sua vez, havia licenciado seu uso para uma empresa norte-americana. Mas isso aconteceu apenas em 2005. Foram 10 anos de briga...

Diante da dimensão do conhecimento tradicional indiano, a apropriação indevida pode levar a muitas patentes inaceitáveis – se é que ainda não levou – situação que gastaria tempo e custaria bastante dinheiro para ser revertida.

Essa sessão, porém, não tratou apenas desse assunto, principalmente por causa de seu nome. Como assim, por causa de seu nome? É isso mesmo, como ela tinha esse interessante título, “biodiversidade: sistemas legais e de conhecimento”, várias campanhas de conscientização sobre animais marinhos nas costas indianas foram classificadas como “sistemas de conhecimento” e foram apresentadas na mesma sessão da discussão sobre conhecimento tradicional. Foi assim que fiquei sabendo que, na costa oeste da Índia, no Mar da Arábia, existe um mamífero, parente próximo do peixe-boi, o dudongo. É um bicho bem simpático e o palestrante mostrou vários vídeos do dudongo nadando. Curiosamente, eles arrancaram exclamações de simpatia, como a tradicional expressão “ah! que fofo”, apenas dos brasileiros. Os indianos, como que querendo comprovar sua já proverbial formalidade, ficaram incólumes vendo o dudongo nadando para lá e para cá. Ah, ele é tão fofo...

O que são os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais?

Os recursos genéticos da biodiversidade são encontrados em animais, vegetais ou micro-organismos, por exemplo, em óleos, resinas e tecidos existentes em florestas e outros ambientes naturais. Já os recursos genéticos da agrobiodiversidade estão contidos em espécies agrícolas e pastoris.

Comunidades de indígenas, quilombolas, ribeirinhos e agricultores familiares, entre outros, desenvolvem e conservam, por décadas e até séculos, informações e práticas sobre o uso desses recursos. São os chamados conhecimentos tradicionais. Na nova legislação, aqueles grupos sociais são designados de “detentores” desses conhecimentos.

Tanto o patrimônio genético quanto os conhecimentos tradicionais servem de base para pesquisas e produtos da indústria de remédios, sementes, gêneros alimentícios, cosméticos e produtos de higiene, entre outros. Por isso, podem valer milhões ou bilhões em investimentos. Na legislação brasileira, pesquisadores e desenvolvedores desses produtos são chamados de “usuários” dos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais.
O Brasil é a nação com maior biodiversidade do mundo e milhares de comunidades indígenas e tradicionais, daí ser alvo histórico de ações ilegais de biopirataria, crime que a nova lei deveria coibir e punir.

O que é a “repartição de benefícios”?

A Convenção da Diversidade Biológica (CDB), tratado internacional que regula o tema dos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais, prevê que quem usa e explora economicamente os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais deve remunerar, de forma “justa e equitativa”, os detentores desses recursos e conhecimentos, reconhecendo-os como instrumento valioso de produção de saber.

O que é o “consentimento livre, prévio e informado”?

“Consentimento livre, prévio e informado” é a consulta feita a quem detém os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade – as comunidades indígenas e tradicionais – sobre seu uso e exploração. Todo uso que se pretende fazer desses recursos e conhecimentos deve ser precedido de um processo de discussão com a comunidade que os detém, de modo que ela seja informada, conforme sua língua e costumes, do que se pretende fazer, dos produtos e vantagens a serem obtidos, garantindo a ela tempo suficiente para entender essas informações e ser capaz de decidir e autorizar, ou não, de forma autônoma, o uso pretendido. Se a consulta implicar uma autorização de uso e, por sua vez, ela significar o desenvolvimento de um produto ou processo com uso econômico, pode também gerar um contrato de repartição de benefícios entre as partes.

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