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Brigadas indígenas na linha de frente contra o fogo

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Em diferentes partes do Brasil, indígenas contratados pelo PrevFogo assumem o combate aos incêndios florestais e trabalham para a sua prevenção
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De noite, ou na madrugada, antes do sol nascer, os brigadistas indígenas partem para o combate. É quando a temperatura da mata queimando está mais suportável e a umidade do ar, um pouco mais alta, tornando o trabalho possível. A localização do foco de incêndio é captada via satélite pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e transmitida à base, onde estão os brigadistas indígenas. Eles seguem para dentro da floresta, equipados com suas bombas-costais, abafadores e sopradores.



Em todo Brasil, 700 brigadistas indígenas foram contratados pelo Programa PrevFogo, do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama), em 2019. Na Amazônia legal, as brigadas representam uma das principais frentes de combate aos incêndios florestais, que destruíram cerca de 435 mil hectares nos últimos 8 meses e levaram a uma crise política internacional. Esses brigadistas estão espalhados por 34 Terras Indígenas. São indígenas Tenharim, Paresí, Gavião, Xerente, Guajajara, Krikati, Terena, Kadiwéu, Xakriabá, Javaé, Karajás, Pataxó, Kayapó, etnias do Baixo, Médio e Alto Xingu que, enquanto a chuva não chega, ajudam a apagar as chamas que assolam as matas brasileiras.

É o cuidado com a floresta e o conhecimento profundo sobre seu próprio território que fazem com que os indígenas brigadistas se destaquem. “Eles apresentaram mais compromisso em realizar as atividades de prevenção e combate do que os brigadistas que eram contratados nos municípios”, explica Rodrigo Faleiros, do PrevFogo,responsável pelas contratações. O Programa Brigadas Federais existe desde 2013. “Conhecem bem o território e todas as particularidades que envolvem o combate de incêndios como, por exemplo, sobreviver no mato, se orientar e conhecer os efeitos do fogo”, afirma Faleiros.



O desafio para estes brigadistas não é pequeno. Em agosto de 2019, houve um aumento de 182% no número total de focos incêndio que atingiram terras indígenas na Amazônia Legal, em comparação ao mesmo período de 2018.

Pedro Paulo Xerente é gerente de uma brigada. Da etnia Xerente, ele conta as histórias que vivenciou em combate esse ano. “O fogo nunca é o mesmo. Por mais que a gente se prepare, nunca estamos preparados o suficiente para entendê-lo”, afirma. “Teve um dia que o fogo se descontrolou e avançou com muita velocidade para cima da gente, e tivemos que pular de um barranco para dentro do rio”, lembra. “Logo depois, já estavam todos sorrindo, e dizendo ‘bora voltar pra apagar o fogo”. Para tentar entender a dinâmica do fogo, ele e seus brigadistas pedem ajuda dos anciãos da comunidade. Em agosto de 2019 foram registrados 75 focos de incêndio na TI Xerente, 400% a mais do que o mesmo período do ano anterior.

Para apagar o fogo, os brigadistas usam bomba-costais, uma espécie de mochila que aguenta 20 litros nas costas. Também usam abafadores, e sopradores. Os uniformes são específicos para a atuação - óculos de proteção, e sapatos resistem às brasas do chão, além de roupas cujo tecido isola do calor do fogo por até dois minutos. Uma peneira protege as pernas de animais peçonhentos e espinhos.

No Cerrado, e em zonas de transição com a floresta amazônica, o fogo sempre foi utilizado pelos povos indígenas em atividades produtivas e de caça. “Entretanto, com o aumento no desmatamento, as mudanças climáticas e o próprio contexto político, a quantidade de focos de queimadas que se transformam em incêndios florestais têm aumentado" afirma Antonio Oviedo, pesquisador do ISA. Um elemento que contribui no aumento das queimadas é a progressiva perda de umidade das florestas em função da sua degradação. Um exemplo são as terras indígenas no Estado do Maranhão, onde grande parte da cobertura florestal já se encontra severamente degradada pela exploração ilegal de madeira e práticas tradicionais de uso do fogo tornaram-se mais arriscadas do que antes. "Além disso, a grande maioria dos focos de queimadas nas terras indígenas ocorrem em áreas de invasões e garimpos ilegais”, afirma o pesquisador. Essas áreas invadidas contribuem com a maior parcela do desmatamento no interior das terras indígenas. Segundo dados do Deter-B, as terras indígenas apresentaram um aumento de 38% nos alertas de desmatamento, em comparação com o primeiro semestre de 2018, sendo que apenas treze terras indígenas respondem por 90% desses alertas.

É o caso da TI Apyterewa (PA), que apresentou um aumento de 529% no número de focos de calor em comparação com 2018. O aumento está relacionado ao crescimento do desmatamento: segundo o Inpe, os alertas de desmatamento na área cresceram 147% entre abril e agosto de 2019, em comparação ao mesmo período do ano anterior. A TI Apyterewa foi homologada em 2007, mas cerca de 80% do território encontra-se irregularmente ocupado por não indígenas. As operações de desintrusão ocorrem desde 2011, mas até hoje a plena desocupação do território não foi concluída.

Na Terra Indígena Tenharim-Marmelos, no sul do Amazonas, por exemplo, queimadas criminosas aconteceram no entorno da reserva, em áreas de assentamentos e invasões, e entraram para dentro da reserva, segundo Helio Moreira, instrutor do PrevFogo que atua junto aos Tenharim. A TI tem áreas de campos amazônicos, em que o fogo se espalha com mais facilidade. “Moradores não indígenas estão muito próximo dos limites do nosso território”, explica Amaury Tenharim, que coordena a brigada de seu povo. São 29 indígenas que passaram por um processo de seleção (aptidão física, teste de utilização de ferramentas agrícolas) e treinamento.

A atuação das brigadas, porém, ainda é pequena perto da abrangência das queimadas. O PrevFogo sofre com a crise fiscal que atinge o governo desde 2015 e que tem levado ao contingenciamento de gastos em todas as áreas. Isso impede a contratação de mais brigadistas, e a consolidação de um plano de carreira para os que já atuam. Hoje, um brigadista indígena recebe um salário mínimo e meio, além de benefícios, e o tempo de contratação dura seis meses, que é a abrangência do período seco. "A melhor política pública para lidar com a questão do fogo já existe no PrevFogo, e está formatada para atuar tanto na prevenção quanto no combate. Mas precisa ser fortalecida com recursos e ampliação do engajamento das comunidades locais.", avalia Adriana Ramos, sócia do ISA.

Outro desafio é o diálogo e a incorporação de práticas dos indígenas. Desde que começou a trabalhar com os povos indígenas, o PrevFogo adotou diversas práticas de manejo e de conhecimento tradicional em suas ações. Mas ainda falta avançar nesse processo - conhecer o trabalho que já é feito para cuidar do fogo em cada território, e avançar em uma parceria com os indígenas a partir dessa visão. Cada etnia tem seu jeito de atuar. No Xingu, os indígenas conseguiram reduzir drasticamente os incêndios em seu território. Veja aqui como.

“As mudanças climáticas vêm mostrando seus efeitos a cada ano que passa”, explica Sidney Silva, agente do PrevFogo que atua em terras indígenas no Tocantins. Segundo ele, todo ano, as primeiras chuvas ocorrem logo no início do mês de setembro, indicando o fim do período seco. “Entretanto, já entramos no mês de setembro e ainda está está quente, seco e ventando”, afirma ele, em entrevista à reportagem do ISA. “O fogo não tem fronteira, e o vento faz o fogo escapar da área desmatada”, explica Pedro Xerente. Segundo ele, as temperaturas estão mais altas e os ventos mais fortes, o que ajuda a propagação do fogo.



Manejo do fogo

Desde que começou a atuar com os povos indígenas, o PrevFogo mudou muito a maneira de trabalhar e enxergar o fogo. Não só como algo a ser combatido, mas como um elemento da paisagem, sobretudo nas regiões do cerrado. Com isso, ampliou as estratégias para enfrentar os incêndios.

Um resultado dessa mudança de concepção são as queimas prescritas, que funcionam preventivamente. A ideia é fazer queimas controladas no início do período seco, onde as taxas de umidade na floresta ainda estão altas, e as chances do fogo se espalhar são muito menores. Essas queimas, manejadas pelos próprios brigadistas, consomem material orgânico seco acumulado nessas áreas, reduzindo o combustível disponível que poderia ajudar o fogo perder o controle na estiagem mais severa, quando a umidade do ar está em níveis muito baixos e a vegetação ainda mais seca.

Neste trabalho, o conhecimento tradicional do manejo do fogo, e sobretudo a contribuição dos anciões das comunidades é essencial. “No início da temporada de seca, os velhos contam onde queimar, o que queimar e quando queimar”, afirma Pedro Xerente. Isso pode influenciar na frutificação das árvores, por exemplo.

“Quando você queima no período certo, você garante a floração, o refúgio pros animais silvestres e os frutos. A melhor forma de proteger é fazer a queima prescrita na época certa, antes da estiagem mais severa”, explica Sidney, agente de manejo.

A realização de aceiros é outra estratégia para não deixar o fogo se espalhar. Os aceiros são clareiras abertas na mata sem matéria orgânica. O fogo encontra um “vazio” e, sem combustível para queimar, apaga. Os aceiros são importante sobretudo na queima das roças tradicionais, feitas antes do plantio, e que muitas vezes também são acompanhadas pelos brigadistas. “O fogo para nós é vida também. É por meio do fogo que se faz a roça, que se produz o fruto, que vira alimento, e depois matéria orgânica, que alimenta o solo. É o fogo que faz a vida acontecer”, diz Pedro Xerente.



A melhoria das práticas das brigadas do Prevfogo passa por uma necessidade constante de interação e troca de experiências entre os brigadistas indígenas e os não-indígenas. O acompanhamento dos resultados obtidos nas ações de combate e prevenção fornecem lições aprendidas que podem melhorar as ações futuras.

Clara Roman
ISA
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