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Covid-19: início da vacinação de quilombolas em SP é marcado por incertezas

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Lideranças e entidades parceiras criticam falta de informações; "Mais uma vez, são vidas negras que estão em jogo", alerta Denildo Rodrigues, coordenador da Conaq no estado
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*Notícia atualizada em 29/01

O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), prometeu iniciar a vacinação das comunidades quilombolas no estado a partir desta sexta-feira (22/01), mas o processo é uma incógnita. Lideranças quilombolas ainda não tiveram acesso a informações detalhadas da estratégia de imunização das comunidades e temem que parte delas fique de fora. De acordo com lideranças locais, Doria vai participar de cerimônia neste sábado (23/01) no Quilombo Ivaporunduva, em Eldorado. No entanto, não foi possível confirmar a informação com o governo do estado.



“Não temos muitas informações a respeito. Se, por exemplo, já foi definida a logística, o cronograma e os critérios de vacinação para essa população. Importante frisar que estamos falando de comunidades que muitas vezes padecem de acesso à saúde, comunicação e transporte”, explicou a advogada Rafaela Miranda, do Quilombo de Porto Velho, no Vale do Ribeira. Ela, que atua junto à Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira (Eaacone), também destacou a necessidade de garantir a vacinação à toda a população quilombola apta a receber o imunizante.

Andrew Toshio Hayama, defensor público estadual, avaliou que falta transparência no planejamento e no plano de vacinação do estado. Além disso, as comunidades não foram consultadas para a preparação da logística. “É um planejamento em que falta mesmo uma construção, uma articulação, ouvir os grupos, os povos e comunidades tradicionais. Eles não estão participando desse plano”, disse.

Como explicou Toshio, a priorização da vacinação para comunidades quilombolas e povos tradicionais, além de indígenas, vem do fato de que esses grupos vivem, em sua maioria, em contextos precários de acesso a políticas públicas e à infraestrutura sanitária. Além disso, são grupos com modos de vida próprios e coletivizados, em que o trabalho e as demais interações se dão tradicionalmente pelo contato e proximidade entre integrantes da comunidade.

Com a ausência de detalhamento do plano paulista, lideranças ouvidas pelo Instituto Socioambiental (ISA) relatam o temor de que nem todas as comunidades sejam vacinadas. Em mais de uma entrevista, foi lembrada a ação de julho do ano passado com a presença da primeira-dama de São Paulo Bia Doria, que distribuiu cestas básicas, cobertores e materiais de higiene pessoal, além da testagem dos moradores, na comunidade de Peropava, no município de Registro.

“O estado de São Paulo tem um governador que gosta de fazer marketing. Para as comunidades, a gente vê isso com clareza. Um exemplo é quando a gente ficou preocupado no ano passado com a questão da testagem e ele foi lá e fez a testagem em uma comunidade [Peropava] e para as outras não fez nada”, afirmou Rodrigo Marinho Rodrigues da Silva, da Eaacone.

Fernando Prioste, advogado do ISA, lembrou que “o Plano Nacional de Imunização prevê que a vacinação nos quilombos deve ocorrer de forma prioritária e com uma logística que atenda as peculiaridades da tradicionalidade coletiva. Apenas através do diálogo e da consulta ela pode ser exitosa. Até o momento não há informações ou diálogo sobre essas questões”.

A necessidade de informações mais detalhadas da vacinação levou a Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) a iniciar nesta semana o envio de ofícios aos municípios e governos estaduais, de todo o país, solicitando informações sobre a data de início, detalhes da logística e questionando a fase em que quilombolas estão no plano de imunização local.



Para garantir urgência na vacinação da população quilombola, a Conaq protocolou, em setembro de 2020, a Arguição de Descumprimento de Direito Fundamental (ADPF) 742/2020 no Supremo Tribunal Federal (STF). Além da inclusão dos quilombolas no grupo prioritário para imunização, os pedidos na ADPF incluem medidas que garantam segurança alimentar e nutricional das comunidades, acesso a leitos hospitalares e testes regulares para quem está com suspeita, além da distribuição de materiais de higiene e equipamentos de proteção individual. A ADPF foi distribuída ao ministro Marco Aurélio Mello e aguarda, desde setembro, a análise dos pedidos da Conaq.

Informações desencontradas

A confirmação do início da vacinação por Doria aconteceu após um vai e vem de informações contraditórias entre o Ministério da Saúde e a Secretaria de Saúde paulista. Foi noticiado que os quilombolas não estariam mais na primeira fase da vacinação em São Paulo, contrariando o Plano Estadual de Imunização divulgado em dezembro.

Reportagem do G1 revelou que a Secretaria de Saúde teria alterado a fase da vacinação por passar a seguir o Plano Nacional de Imunização, do Ministério da Saúde, e que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) não teria autorizado o uso da CoronaVac para os quilombolas. O argumento foi refutado pela agência.

Logo após a publicação da reportagem, o governador de São Paulo publicou um tuíte retrucando: “o Ministério da Saúde excluiu os Quilombolas da fase inicial do Plano Nacional de Imunização. Acabo de determinar que em SP a população Quilombola fará parte do programa de vacinação desde já, conforme previsto no Plano Estadual de Imunização”, escreveu.

O Plano Nacional de Imunização ainda não tem data estipulada para o início da vacinação quilombola. Não está evidente no plano em qual fase as comunidades estão. No Anexo do Informe Técnico sobre a Campanha Nacional de Vacinação contra a Covid-19, publicado no dia 18 de janeiro, povos e comunidades tradicionais ribeirinhos e quilombolas aparecem como sendo o sexto grupo prioritário para vacinação, mas não é especificado em que fase os grupos serão imunizados nem a data. Há estados que optaram por seguir o plano nacional, e outros que definiram planos próprios -- como é o caso de São Paulo.

A procuradora e coordenadora da Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal (6CCR/MPF), Eliana Torelly, encaminhou no início da semana ofício ao Ministério da Saúde chamando atenção para a falta de menção explícita às comunidades quilombolas no trecho em que é feita a enumeração dos públicos a serem vacinados na primeira fase do Plano Nacional. Torelly solicitou que o ministério justifique a omissão.

Ela explicou que a ausência dos quilombolas “teve reflexo nos planos estaduais. Alguns estados tiraram os quilombolas do grupo prioritário, outros estados depois incluíram. Há um descompasso de informações”. A procuradora também chamou atenção para a invisibilidade de outros povos e comunidades tradicionais -- no plano, só aparecem indígenas, quilombolas e comunidades ribeirinhas. Até o fechamento da reportagem, o Ministério da Saúde não havia encaminhado resposta ao ofício.

“Mais uma vez, são vidas negras que estão em jogo. O Estado brasileiro ainda não nos deu uma resposta plausível de como vai ser feita a vacinação nos territórios quilombolas”, protestou Denildo Rodrigues, coordenador da Conaq em São Paulo. No intuito de procurar caminhos para garantir a prioridade da vacinação de quilombolas, lideranças e coordenadores da Conaq no Norte e Nordeste se reuniram nesta semana e decidiram buscar apoio do Ministério Público e encaminhar ofícios aos governos solicitando informações.

Até a manhã desta sexta-feira, pelo menos seis quilombolas haviam sido vacinados, em São Paulo, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Pará, mas todos por serem profissionais de saúde ou pessoas idosas e dos grupos de risco. O estado de São Paulo pode ser, portanto, o primeiro a iniciar a vacinação voltada especificamente para a população quilombola.

Em resposta via assessoria de imprensa, o Ministério da Saúde informou que, devido à quantidade de vacinas recebidas até o momento -- seis milhões de doses -- “houve a necessidade de um replanejamento dentro das prioridades elencadas inicialmente. Portanto, dentro do público priorizado para a campanha, foi feito um recorte levando em consideração pessoas que teriam maior risco de internação e óbito, bem como o quantitativo de vacina disponibilizado inicialmente”.

O impacto da Covid-19 nos quilombos

São Paulo tem 50 comunidades quilombolas, a maior parte concentrada no Vale do Ribeira, na porção sudeste do estado, que reúne 33 comunidades e, de acordo com levantamento da Eaacone, conta com mais de quatro mil quilombolas. Levantamento independente realizado por lideranças locais mostra que, só no Vale do Ribeira, pelo menos 70 quilombolas foram contaminados com o coronavírus. Em todo o país, segundo dados da Plataforma Quilombo sem Covid-19, foram 4760 quilombolas contaminados e 179 óbitos.

O Informativo Desigualdades Raciais e Covid-19, produzido pelo núcleo Afro Cebrap, traz maiores detalhes sobre o impacto da pandemia sobre os territórios quilombolas em todo o país. Os pesquisadores se basearam nos dados da Plataforma Quilombo sem Covid-19 e em outras bases de informações para analisar a distribuição territorial da pandemia nos quilombos, revelar a insuficiência das políticas públicas voltadas para as comunidades e mostrar como se dá a cobertura da mídia sobre a situação.

* O governador João Doria participou de cerimônia no último sábado no quilombo de Ivaporunduva, onde cerca de 300 pessoas receberam a 1ª dose da vacina. Notícias da imprensa local dão conta de que outras três comunidades do estado foram vacinadas até esta sexta-feira (29): Cafundó, Brotas e Jaó, totalizando cerca de 600 quilombolas vacinados no estado.

Uma semana após o início da vacina, no entanto, o governo do estado de São Paulo ainda não havia divulgado nenhum planejamento ou logística para a imunização das comunidades quilombolas. Com o objetivo de conhecer o número de doses disponíveis para este grupo, as datas e protocolos para vacinação das comunidades e outras informações sobre o processo, a Defensoria Pública paulista a da União, o Ministério Público Federal e do Estado, a EAACONE, a CONAQ e o ISA enviaram um ofício nesta semana, à Secretaria de Saúde do estado e dos municípios.


Victor Pires
ISA
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