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Governo Doria coloca em risco direitos quilombolas em São Paulo

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Governador alega crise fiscal para, sem consulta às comunidades, acabar com órgão responsável pela titulação de terras tradicionais e assistência técnica rural
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A Fundação Instituto de Terras de São Paulo "José Gomes Silva" (Itesp), que cuida da titulação de territórios quilombolas, está na mira do governador de São Paulo, João Doria (PSDB). A extinção do órgão, que também oferece assistência técnica rural às comunidades e à agricultura familiar, faz parte do Projeto de Lei (PL) 529/2020, enviado à Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) em agosto. A justificativa do governo para o fim do Itesp é a "grave situação fiscal do estado" provocada pela pandemia de Covid-19.

A proposta está prestes a ser votada, mesmo com protestos de lideranças quilombolas, organizações da sociedade civil, órgãos de defesa dos direitos coletivos e servidores do Itesp. “Com a saída do Itesp, as comunidades ficam desassistidas. Nós tememos muito. Estamos num período em que as políticas quilombolas, a nível nacional, vêm se enfraquecendo. O governo estadual está seguindo no mesmo caminho”, lamentou Denildo Rodrigues, coordenador da Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).

As atividades do Itesp, em âmbito estadual, incluem regularização fundiária, titulação de territórios quilombolas e apoio à promoção de políticas públicas para essas populações, além da elaboração dos processos para autorização das roças tradicionais, assistência técnica e de extensão rural à agricultura familiar e apoio em ações de restauração da vegetação nativa nos assentamentos. O Itesp também atua na regularização fundiária em áreas urbanas.

“A extinção do Itesp, na forma como foi proposta, irá atrasar, ou mesmo paralisar por completo os processos de titulação dos territórios quilombolas e a assistência técnica rural. As comunidades enfrentarão um cenário de ampliação de desigualdades sociais”, avaliou Fernando Prioste, assessor jurídico do Instituto Socioambiental (ISA).

No estado de São Paulo existem 50 comunidades quilombolas. O Itesp atuou no reconhecimento de 36 delas e titulou seis, beneficiando um total de 1.547 famílias. Além disso, segundo informações da Associação dos Funcionários da Fundação Itesp (Afitesp), a Fundação atende 7.133 famílias em 140 assentamentos rurais do estado. A regularização fundiária é fundamental para a conquista de direitos básicos, como trabalho e moradia, além de possibilitar o acesso a uma variada gama de políticas públicas.



“O Itesp é o único órgão do estado de São Paulo responsável pela titulação dos territórios quilombolas em terras públicas estaduais. Com a extinção, a gente vai ter um problema jurídico que vai impossibilitar a titulação dessas terras ocupadas por quilombolas”, explicou Débora Barizão, servidora do Itesp e integrante da diretoria da Afitesp.

Incerteza sobre futuro das políticas

A construção do PL 529 não teve, em nenhum momento, consulta às comunidades tradicionais potencialmente afetadas pela decisão. A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, estabelece que os governos, inclusive estaduais, devem consultar as comunidades quilombolas antes de adotar medidas que as afetem. É o caso da tentativa de extinção do Itesp.

Para Prioste, “o fato de o governador ter enviado o projeto sem consulta é, em si, uma violação do direito quilombola”. Segundo o assessor jurídico do ISA, “a ausência de diálogo com as comunidades demonstra que o estado não se preocupou em construir uma solução para a continuidade da regularização fundiária ou da assistência técnica rural”.

Doria não apresentou soluções satisfatórias para a continuidade das atividades do órgão, segundo fontes ouvidas pela reportagem. De acordo com o PL, as atividades serão absorvidas pelas Secretarias de Agricultura e Abastecimento e de Habitação. A proposta não trata em detalhes da transferência das ações do órgão. O Itesp tem diversas atribuições que dependem de lei e que precisariam ser alocadas a outros órgãos também por lei. Povos e comunidades tradicionais não são sequer mencionados no projeto.

“As atribuições [do Itesp e das Secretarias de Agricultura e de Habitação] não são as mesmas, como o governo está querendo fazer as pessoas crer. Quando muito essas atividades se aproximam, mas nos conteúdos e nas formas elas são muito diferentes”, afirmou Débora Barizão, da Afitesp. Barizão destaca a insegurança vivida pelos 593 servidores do órgão, uma vez que ainda não se sabe quais serão mantidos e para onde serão encaminhados, caso a proposta seja aprovada na Alesp.

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O defensor público Andrew Toshio Hayama destaca que um dos principais problemas do atual projeto é a falta de informações. “O acesso a dados e informações se faz fundamental, porque senão a gente não consegue nem avaliar se o objetivo está sendo cumprido e se é razoável considerando as consequências dessa medida e quem ela vai afetar”, considerou.

Obstáculos no acesso a políticas públicas

Sem o Itesp, quilombolas e outros povos tradicionais de São Paulo podem enfrentar mais dificuldade para acessar políticas públicas. A atuação do Itesp junto aos quilombolas do Vale do Ribeira inclui, por exemplo, incentivo ao turismo de base comunitária; projetos em educação ambiental e de fortalecimento da cultura quilombola nas escolas; cadastro das famílias no programa Renda Cidadã; realização de obras diversas nas comunidades; apoio a projetos de produção de mel e artesanato e assistência para acesso aos benefícios do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

“Em meio à pandemia, as comunidades se vêem não só tendo que enfrentar a chegada do vírus, mas também lutar para não perder direitos históricos frutos de muita luta”, criticou Rafaela Miranda, advogada da Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira (Eaacone) e quilombola da comunidade de Porto Velho.

Hayama, defensor público, chama atenção para outras duas possíveis consequências da extinção: o fim de um orçamento específico destinado às políticas de atendimento a povos e comunidades tradicionais no estado e o desmonte das estruturas de atendimento local. Isso, de acordo com ele, vai burocratizar o serviço e dificultar o acesso. O Vale do Ribeira, por exemplo, conta hoje com dois escritórios do Itesp em Pariquera-Açu e Eldorado.



O Itesp auxiliou famílias quilombolas durante a pandemia. O órgão fez a compra de produtos alimentícios da Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale) para distribuir a famílias em situação de vulnerabilidade no estado. Em maio de 2020, por exemplo, 252 cestas básicas com produtos dos quilombolas do Ribeira foram doadas a 13 comunidades indígenas de nove municípios.

Posição do governo

O PL, sob a justificativa de lidar com a situação fiscal no estado de São Paulo sob impacto da pandemia da Covid-19, pode levar à extinção de dez institutos, autarquias, fundações e empresas públicas paulistas que atuam nas áreas de saúde, educação, moradia e transportes, além da regularização fundiária e políticas agrárias. Se aprovado, o projeto pode também retirar R$ 1 bilhão das universidades estaduais e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Por meio de nota da assessoria de imprensa, o governo de São Paulo afirmou que “nenhum assentamento rural ou comunidade quilombola de São Paulo vai ficar sem atendimento com a extinção do Itesp. O serviço será realizado por uma estrutura mais enxuta e eficiente, pois será absorvido pela assistência técnica da Secretaria de Agricultura e Abastecimento, que já possui estreito relacionamento com os pequenos produtores rurais”.

O governo paulista defende, também, que a Secretaria de Habitação já realiza o trabalho de regularização fundiária, “não sendo necessária a coexistência de uma fundação para realizar este trabalho”.

Victor Pires
ISA
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