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Intercâmbio no Parque Indígena do Xingu reúne coletoras Ikpeng e Xavante

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O encontro, promovido pelo ISA e pela Operação Amazônia Nativa (Opan), na aldeia Moygu, reuniu coletoras Ikpeng e Xavante (Auwê), que durante uma semana trocaram experiências sobre coleta de sementes florestais nativas, planejamento anual e manejo
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Toda viagem que envolve longos trechos de estrada de chão e depois prossegue de barco por rios, em locais de difícil acesso, por si só é uma aventura. O deslocamento dos Xavante da TI Marãiwatsédé até a aldeia Moygu, dos Ikpeng, no Parque Indígena do Xingu não foi diferente. O atraso de um dia na chegada, por conta de problemas mecânicos no transporte, foi recompensado pelo visual da exuberante natureza do Parque Indígena do Xingu (PIX). O trecho percorrido ao longo dos rios Suiá e Xingu é maravilhoso, povoado de aldeias Kisêdjê e Kaiabi em suas margens.


A programação iniciou-se com as apresentações do intercâmbio. As mulheres coletoras Ikpeng se autodenominam Yarang (que quer dizer saúva na língua Ikpeng, do tronco Carib, inspirado no movimento de recolher sementes do chão da floresta e levá-las para limpar em casa). Já as coletoras Xavante são conhecidas como Pi’õ romnhama ubumrõi’wa. Para quebrar o gelo e aproximar os participantes, as mulheres Pi’õ entregaram camisetas, confeccionadas pela Organização Amazônia Nativa (Opan), para as lideranças do grupo Yarang.

No primeiro dia, relatos dos Xavante e Ikpeng mostraram sua desterritorialização Ou seja, os Xavante só reconquistaram sua terra, a Marãiwatsédé, em 2013, depois de anos de lutas, quando a Funai desintrusou os ocupantes não indígenas. Já os Ikpeng ainda lutam por seu território original, a Terra Indígena Jatobá, de onde saíram na década de 1960 pelas mãos dos irmãos Villas-Boas para o PIX. Com auxílio do facilitador Domingos Tsere’õmõrãte, foi realizada uma explanação sobre o histórico da luta Xavante pela Marãiwatsédé, inspiração e exemplo para os Ikpeng, que ainda não conseguiram demarcar sua área tradicional.

Sazonalidade e calendários culturais
Os Ikpeng expuseram suas formas de ler e interpretar os sinais da natureza para a realização de suas atividades. Por exemplo, a floração do murici indica a época certa para a semeadura/plantio. Os Xavante mostraram seu calendário cultural, no qual o ano é dividido em quatro estações (começo das chuvas – utsu; auge das chuvas – a’ẽta; começo da seca – tsa’u’u; e auge da seca – robró’ó). Entretanto, as mudanças climáticas vêm interferindo nos calendários e nos sinais da natureza. Os Ikpeng apresentaram exemplos práticos de como isso vem acontecendo. E não apenas eles, mas todos os povos que vivem no Parque vêm sofrendo os efeitos provocados pelas mudanças climáticas e pelo aumento das temperaturas.

Trocas entre Ikpeng e Xavante

Os Xavante foram preparados para fazer trocas (Uluki – como é conhecido no Xingu) e levaram muitas peças de artesanato como arcos e flechas e bordunas, entre outras peças. Além disso, levaram sementes de milho Xavante (nodzö) em garrafas pet. Os Ikpeng gostaram bastante já que esse milho está em risco em sua aldeia por conta da escassez de terras. “Os Ikpeng, bastante acostumados com esse tipo de troca, estavam contentes com a atividade e ficaram felizes em levar os itens Xavante para casa, oferecendo, em troca, esteirinhas xinguanas e muitos colares e outras peças com miçangas”, contou o indigenista da Opan, Marco Túlio.

Dança até raiar o dia

Depois, os Xavante convidaram a todos para uma dança tradicional em roda no centro da aldeia, quando puderam mostrar um pouco de sua cultura. Mais tarde, aconteceu uma celebração, um rito ritualístico chamado Moyngo, na casa dos homens da aldeia, para tatuar o rosto dos jovens guerreiros Ikpeng. Para isso, as mulheres Ikpeng se pintaram e os homens se enfeitaram com cocares e adornos. Os padrinhos dos meninos que iriam receber a tatuagem puxaram a fila de dança, que começou no fim da tarde, com cantos, acompanhados de flautas e chocalhos. A celebração só terminou ao raiar do outro dia.

Visita às áreas de coleta

Na manhã seguinte, os indígenas visitaram as áreas de coleta, contando com um trator para auxiliar no deslocamento da maioria das pessoas. As coletoras Ikpeng estavam bastante animadas e desejosas de mostrar ao grupo Xavante suas espécies manejadas e os locais onde elas se encontram.

Como as coletoras se organizam

As Yarang explicaram como dividem os papeis e tarefas entre os vários representantes (coordenadores, coletoras, lideranças femininas, elo), como preparam a lista potencial do grupo, a organização das coletoras para planejar as atividades, a entrega das sementes, dividindo-a por coletora/família, como estão lidando com a gestão da nova casa de sementes (construída pelo ISA em parceria com a Associação Indígena Moygu Comunidade Ikpeng, e apoio financeiro do Fundo Amazônia), entre outras questões relacionadas ao trabalho de autogestão do grupo e de relacionamento com a central administrativa da Rede de Sementes do Xingu.

O grupo Xavante contou como se organiza, traçando paralelos com a estrutura Ikpeng. Por exemplo: no Xingu o elo é um técnico do ISA; em Marãiwatsédé, um técnico da Opan. Entre os Ikpeng, o papel dos chamados “Coordenadores” do grupo (Oreme e Dinei), se assemelha ao trabalho dos “Facilitadores” da Opan (Domingos e Augusta).


Pesos e Medidas

No último dia, as mulheres Yarang resgataram um trabalho sobre pesagem e matemática tradicional realizado no Xingu, em 2011, com apoio do ISA. Magaro, liderança das Yarang, contou em sua língua materna como os Ikpeng conceituavam volume e quantidade de sementes. Por exemplo, um balaio pequeno cheio de sementes até a metade ou menos recebe um determinado nome/valor, enquanto o balaio cheio de ganha outro nome. Marco Túlio conta que os Xavante falaram pouco sobre isso por conta da compreensão difícil e também porque em língua Xavante, a palavra pire di designa tanto pesado quanto difícil, da mesma forma que leve e fácil são designados pelo termo wapure di. Assim, na língua Xavante as sementes pesadas seriam mais difíceis de serem coletadas e, logo, deveriam ser mais bem pagas.


Queimadas

No período da tarde, o fogo, constante realidade nas duas terras indígenas, foi o tema da discussão. Os Ikpeng falaram sobre as queimadas e como está se alterando o regime de queima dentro do Parque do Xingu. Também apresentaram a forma tradicional Ikpeng de queima para preparo das roças de coivara que está intimamente relacionada com os sinais da natureza para acompanhar as estações do ano que os indígenas dominam há incontáveis gerações. As queimadas que os indígenas tradicionalmente manejam como ferramenta importante para diversas atividades, além da roça de coivara – e nunca trouxeram problemas -, atualmente estão mais complexas. Isso afeta a disponibilidade dos recursos naturais importantes para os indígenas, como por exemplo, matrizes de sementes florestais e áreas agricultáveis.

“Com as mudanças climáticas que provocam a mudança no comportamento do fogo, os xinguanos estão experimentando iniciativas que incidem diretamente no dia a dia das comunidades. Desde 2006, o ISA apoia comunidades do PIX no manejo do fogo para contribuir na adaptação dos povos do Xingu a uma nova condição ambiental”, explicou o técnico do ISA, Dannyel Sá.

Entre os Xavante, Marcelo (traduzido por Domingos), explicando a importância do fogo para a cultura Xavante. Marcelo relatou as técnicas de caçada com fogo e de queima para a roça. Domingos acrescentou informações às falas de Marcelo, trazendo novamente à tona a questão das mudanças climáticas, o regime de chuvas e como isso altera a queima.

Resultados

Marco Túlio avaliou que o intercâmbio foi bem sucedido em todos os seus objetivos. “Um caráter extremamente positivo que primeiro se destaca foi mesmo a riqueza das trocas interculturais, onde anfitriões e hóspedes puderam ali expor suas tradições de maneira respeitosa e pacífica. Posto o atrito entre Xavantes e Xinguanos que remonta há várias décadas – muito embora os momentos de contatos entre eles sejam bem fugazes -, considera-se que a atividade foi bem-sucedida no objetivo de quebra de paradigmas e preconceitos entre diferentes grupos indígenas. Muitas similitudes emergem das posturas guerreiras e autodeterminadas dos Xavante e Ikpeng e sugere que houve uma identificação mútua entre os povos, especialmente em seus históricos de lutas e processos territoriais”.

Para Dannyel Sá, do ISA, o intercâmbio foi muito importante para as coletoras do Movimento das Mulheres Yarang. “O grupo é um dos mais antigos e consolidados, tanto do Parque Indígena do Xingu, quanto da Rede de Sementes do Xingu. Apesar disso, as coletoras conhecem pouco dos demais grupos que compõe a Rede porque elas têm pouca disponibilidade de participar dos Encontros Gerais, embora se reúnam anualmente com os grupos do Parque Indígena do Xingu”, explica. “Este contato com um grupo não xinguano foi importante para aproximar as Yarang do contexto mais amplo da Rede que elas tanto ouvem falar e veem em mapas e vídeos. Além disso, a troca de experiências com outras coletoras é muito vantajosa. Neste caso, a caminhada das Ikpeng pode ser muito inspiradora para as coletoras de Marãiwatsédé, que estão há menos tempo na Rede”. Sá avalia que ao contrastar a organização das Pi’õ com a própria dinâmica de trabalho, trouxe revelações importantes para o desenvolvimento do Movimento das Mulheres Yarang”.

Rafael Govari
ISA
Edição: 
Inês Zanchetta
Imagens: 

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