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Isolamento é cuidado: no território dos Waimiri Atroari, a Covid-19 ficou do lado de fora

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Profissionais de saúde indígenas, produção própria dos alimentos e muito cuidado com quem entra e com quem sai: como os Waimiri Atroari conseguiram impedir que a doença chegasse em suas terras
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Um menino sonha com ariranha ou gavião real ou que recebe uma lança do cantor. Enquanto a humanidade segue num pesadelo pandêmico, um menino está sonhando, neste exato momento. Um sonho que, segundo os Waimiri Atroari, fortalece o seu corpo e aumenta sua sabedoria. Eles chegam para os meninos Waimiri Atroari após seu Maryba, evento muito importante, dias de dança, cantos e abundância de alimentos. É no Maryba que os Kinja, autodenominação dos Waimiri Atroari, fazem a iniciação das crianças, casamentos e fortalecimento de alianças entre parentes, inclusive de outras aldeias.

Enquanto os Kinja faziam Maryba, a Covid-19 se espalhava por Terras Indígenas em todo o Brasil. Já foram contabilizados 31.851 casos, e 806 óbitos entre indígenas, segundo dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). O descaso do governo foi o principal motor para que a doença se espalhasse. Falta de informação, nenhuma ação para conter invasores, pouco apoio para profissionais de saúde, que muitas vezes foram os vetores da doença nos territórios e a implantação do auxílio emergencial sem qualquer especificidade para os povos indígenas. O benefício, que deveria ajudar os brasileiros a atravessar o período da pandemia, acabou levando muitos a sair de suas aldeias e irem até a cidade, que se contaminaram e levaram o vírus de volta para suas aldeias.

Mas nem em todos os lugares foi assim. A Covid-19 nunca chegou na Terra Indígena Waimiri Atroari. É uma história de sucesso sobre como uma comunidade conseguiu efetivamente se isolar e impedir que o novo coronavírus chegasse ali. Foram apenas seis casos entre os Kinja, mas todos eles aconteceram fora do território, em indígenas que estavam na cidade para tratar outros problemas de saúde e foram contaminados em Hospital em Manaus. Todos eles ficaram em isolamento antes de retornar para a comunidade, o que impediu que o vírus entrasse por esse meio.



Para impedir que a Covid chegasse em seu território, os Waimiri Atroari se organizaram. Suspenderam os deslocamentos às cidades, salvo emergências e urgências de saúde. O Programa Waimiri Atroari (PWA) cancelou as compras de itens não emergenciais dos núcleos urbanos, minimizando o risco das mercadorias chegarem contaminadas. Além disso, foram tomadas medidas de higiene padrão, segundo a doutora Irineide, do Programa de Saúde dos Waimiri Atroari. Outro diferencial é que os Waimiri Atroari contam com equipes de saúde do próprio povo, o que evita que profissionais de saúde externos tenham que entrar nas aldeias para cuidar da saúde dos kinja.

“Só vamos para a cidade em caso de emergência, acidente ofídico, fratura e só se precisar mesmo, se não a gente trata na aldeia. Manaus circula muita gente, tem avião, navio, viatura. Muito perigoso. Então a gente fica trabalhando na aldeia. Enquanto kaminja não fizer vacina vamos ficar fazendo assim. Nós ficamos preocupados com a equipe do PWA, na cidade”, afirma Joanico Tuwadja.

Já em março, os kinja suspenderam o controle seletivo de tráfego no período noturno do trecho da BR-174 que passa pelo seu território. Os Waimiri Atroari fazem essa fiscalização conforme direito estabelecido por decisão judicial. Mas, neste momento, eles identificaram que esse contato poderia trazer a Covid-19 para dentro das comunidades. Os kinja se isolaram em suas aldeias e impediram outras pessoas de entrarem nelas. O trânsito de funcionários do Programa Waimiri Atroari (PWA) não indígenas também foi suspenso, mantendo-se apenas os deslocamentos estritamente necessários, como nos postos de fiscalização, em que eles, inclusive, substituíram os kinja.

Nos escritórios e pontos de apoio do PWA foram implementadas medidas preventivas no dia a dia dos funcionários, como o distanciamento social, higienização das salas e equipamentos e realização rotineira dos exames disponíveis para detecção de Covid-19, adquiridos pelo próprio PWA.

O Programa Waimiri Atroari foi criado em 1988. Fruto de um acordo entre a Funai e Eletronorte, é uma compensação da Usina Hidrelétrica de Balbina, uma das obras de infraestrutura do governo brasileiro que impactou o território dos Waimiri Atroari. Além de ser formado por uma equipe multidisciplinar longeva, comprometida e familiarizada com os Kinja, o PWA mantém ações específicas na linha de educação, apoio à produção, proteção ambiental, vigilância, documentação e memória e saúde. Os Waimiri Atroari sabem o que são as doenças dos brancos. Na década de 1970, durante a ditadura militar, além da violência, epidemias levadas pelos brancos dizimaram muitos do povo Waimiri Atroari.

As ameaças continuam. O governo pretende construir um linhão de transmissão cortando a TI, e causando prejuízos ambientais. Os kinja lutam para serem escutados no processo e terem seu protocolo de consulta respeitado e suas demandas atendidas. Mesmo assim, em plena pandemia, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e Ministério de Minas e Energia (MME) pressionaram os indígenas para seguir no processo de licenciamento, realizando as etapas por videoconferência.



O Subprograma de Saúde do Programa Waimiri Atroari tem mais de 30 anos e é responsável pelas ações de saúde direcionadas para prevenção e controle de doenças além da cobertura vacinal de 100% da população. O atendimento é realizado por uma equipe de 19 funcionários composta por uma médica coordenadora, duas enfermeiras, duas odontólogas, seis técnicos de enfermagem, seis técnicos de saúde, um farmacêutico bioquímico e um motorista que acompanha a saúde das crianças, mulheres, homens e idosos.

Além disso, há 72 Kinja que atuam como auxiliares de saúde e 42 como microscopistas, realizando exames de malária, parasitológicos de fezes e urina. A detecção rápida de malária é muito importante, pois identifica os casos em que se faz necessária a remoção imediata para tratamento na cidade, salvando vidas. Ao longo dos anos, os Kinja aprenderam a técnica de microscopia, atuando após serem diplomados por cursos em Manaus.

“A participação dos agentes de saúde indígenas tem sido eficiente, diminuindo a necessidade de se contratar novos profissionais. O atendimento primário feito pelos Kinja é mais eficiente pelo domínio da língua materna e da cultura, reduzindo os custos com a assistência à saúde e aumentando a autonomia do povo Kinja”, Dra. Irineide, coordenadora do Subprograma de Saúde do Programa Waimiri Atroari.

Os únicos seis casos de Covid entre os kinja foram de pacientes ou acompanhantes acometidos de outras doenças que precisaram de atendimento emergencial no hospital em Manaus, e que lá se contaminaram. Para garantir sua recuperação plena antes de retornar às aldeias, os Kinja cumprem um protocolo rígido, permanecendo no escritório do Programa Waimiri Atroari em Manaus, em quarto isolado, até finalizar quarentena, e depois ainda repetem outra fase de isolamento nos pontos de apoio antes de retornar às aldeias. Ainda, são submetidos a uma sequência de testagem durante essa fase.

Assim, os mais de 2.230 kinja que habitam as 62 aldeias seguem suas vidas, plantando, colhendo, banhando e cantando. A orientação de baixa circulação até mesmo entre as aldeias vem sendo respeitada e os Marybas são realizados regionalmente.



Os Waimiri Atroari seguem em suas aldeias em segurança pois tem sua soberania territorial e alimentar garantida: em seu território plantam, caçam e festejam conforme seus usos e costumes. Como complementa Joanico Tuwadja: “Esse coronavírus é muito ruim para vocês que ficam na cidade, perigoso, mas nós estamos na aldeia trabalhando, pescando e fazendo roça”. Como dizem: ‘Sem território, sem comida, sem fartura de recursos naturais, não há festa, não há ritual. Segundo os Kinja, o Maryba também é necessário para que o menino cresça trabalhador, bom caçador, bom pescador e um forte guerreiro; para que esse menino seja uma pessoa de decisão.

Mês passado os Kinja fizeram Maryba.



Linhão e desmatamento: as ameaças seguem na pandemia

Mesmo durante a pandemia, o governo federal seguiu insistindo para que o licenciamento da Linha de Transmissão 500kv Manaus – Boa Vista ao longo do eixo da BR-174, que corta o território indígena em 125 km, avançasse. No fim de junho um comunicado da presidência da Fundação Nacional do Índio (Funai) foi enviado à Associação Comunitária Waimiri Atroari informando que diante a incerteza do fim da pandemia buscaria alternativas para dar continuidade aos trabalhos. A tradução dos estudos do Linhão é uma das etapas do Protocolo de Consulta Waimiri Atroari. Seguindo seu protocolo frente à pandemia que até então garantiu a ausência de óbitos, os Waimiri Atroari apontam que não vêem alternativas seguras para retomar as atividades e manterão a restrição radical de trânsito de pessoas externas, ampliando em mais 60 dias a determinação de isolamento nas aldeias, até o fim de setembro.

O linhão busca levar energia de Manaus (AM) até Boa Vista (RR) e, segundo os planos do governo atravessaria a TI Waimiri Atroari por 125 km. Os Waimiri Atroari foram repetidamente violentados ao longo de sua histórica relação com o estado brasileiro. Após terem sido quase extintos, reduzidos a cerca de 300 pessoas, durante a construção da BR-174 nos anos 1970, na década seguinte outros projetos continuaram a dilapidar seu território e a atentar contra sua existência. A concessão de extração mineral à empresa Paranapanema, que destituiu da TI Waimiri Atroari mais de 700 mil hectares, e a instalação da usina hidrelétrica de Balbina, que desviou o rio Uatumã e inundou, aproximadamente, 30 mil hectares, inclusive aldeias inteiras. O livro "Apia’ myre’? O que é isso?: Um som estranho nas terras dos Waimiri Atroari", conta essa a história desde o primeiro contato com os brancos até os massacres que os Waimiri Atroari e está disponível em três línguas aqui.

O desmatamento ilegal que aumentou nas TI durante a pandemia também atingiu, de certa forma, os Kinja. Conforme já veiculado, uma fiscalização feita por eles numa região que ameaça um dos grupos isolados que já tiveram sua presença confirmada pela Funai na Amazônia, os Pirititi, detectou uma invasão de garimpeiros durante a pandemia do novo coronavírus. Imagens de satélite confirmaram a abertura de um ramal dentro da terra dos isolados. Além disso, fotografias tiradas pelos grupo que fez a expedição mostra os barracos dos invasores e a derrubada na mata.

O que é saúde para os Waimiri Atroari? KAREME WITXIPY

“Kinja tem uma boa alimentação, realiza muitas atividades e faz muito Maryba, por isso temos uma boa saúde. Todo dia pela manhã Kinja acorda, toma um banho, come beiju de mandioca, mingau de açaí, buriti, banana, patauá, batata-doce, entre outros. Muitos vão para roça, outros vão pescar, caçar e coletar frutas nativas e também fiscalizar nosso território. Kinja usa os remédios de sua cultura, são chás de cascas de árvores, folhas, raízes. Os jovens aprendem com os mais velhos a medicina tradicional dos Kinja. Para algumas doenças que não existiam antes e vieram dos não indígenas, nós precisamos de remédios da farmácia.”
Fonte: WAIMIRI ATROARI: A’A IKAA INEPTYPY - DIVULGANDO NOSSA HISTÓRIA, 2017. Livro produzido em parceria com Associação da Comunidade Indígena Waimiri Atroari, o Programa Waimiri Atroari e o Programa Monitoramento de Áreas Protegidas do ISA, pode ser adquirido aqui.

Silvia de Melo Futada
ISA
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