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Massacre de índios isolados expõe o estrangulamento da Funai

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Sete das 26 bases de proteção aos índios isolados foram fechadas nos últimos anos, entre elas a da região do provável massacre denunciado nesta semana, enquanto outras operam com precariedade
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A suspeita de um massacre de índios isolados perpetrado por garimpeiros ilegais no interior na Terra Indígena Vale do Javari (AM), em agosto, ganhou as manchetes do Brasil (Carta Capital, G1, Folha de S. Paulo) e do mundo (New York Times, The Guardian), e gerou manifestações de repúdio de organizações indígenas (Coiab e Apib e Foirn), indigenistas (Cimi, CTI) e servidores da Funai. Eles exigem que o governo federal apoie as investigações e reverta políticas que violam os direitos dos povos indígenas no país.

O massacre, que provavelmente vitimou índios conhecidos como “flecheiros”, teria ocorrido na região do rio Jandiatuba no Alto Solimões (AM), onde garimpeiros vêm expandindo atividades ilegais nos últimos anos, apesar das seguidas denúncias feitas pelos índios. O garimpo já havia sido flagrado em 2009 por uma expedição da Funai em parceria com o CTI, acompanhada pelo jornal O Estado de S.Paulo.

O crime teria ocorrido na zona de atuação da base da Frente de Proteção Etnoambiental (FPE) da Funai do Jandiatuba, desativada nos últimos meses por falta de recursos (veja no mapa). O Ministério Público Federal mantém as investigações sob sigilo, mas o genocídio é dado como certo por Paulo Marubo, coordenador da União Geral dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), que lançou a denúncia no final de agosto e a encaminhou à Procuradoria.



Esta não é primeira suspeita de um massacre de isolados na TI Vale do Javari neste ano. Em junho, os Kanamari denunciaram o suposto genocídio de membros do grupo que eles chamam de Warikama Djapar, na região das cabeceiras dos rios Jutaí e Jutaizinho, ao sul da terra indígena. Eles acusam um produtor rural, que vem liderando invasões à terra indígena, de ser o mandante do crime.

Mesmo sem a confirmação dos massacres, a presença de garimpeiros e outros invasores é suficiente para comprovar a ocorrência de ilícitos que ameaçam o bem-estar e a existência de povos inteiros, isolados ou de recente contato, em um território que deveria ser protegido pela União.

Bases abandonadas, territórios invadidos, índios ameaçados

A Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC) contabiliza atualmente 103 registros de isolados em toda a Amazônia brasileira. São 26 referências confirmadas e 77 em estudo.

As ações de proteção e promoção dos direitos destes povos são conduzidas por 11 Frentes de Proteção aos Etnoambiental (FPEs), que mantêm suas sedes em diferentes cidades amazônicas. No interior das TIs, as ações da Funai são efetuadas pelas Bases de Proteção Etnoambiental (BPEs).







Atualmente, existem 26 bases distribuídas por 17 TIs, sendo 15 com presença de isolados e duas habitadas por povos de recente contato. A área a ser coberta chega a 60,7 milhões de hectares, quase o tamanho da França, que corresponde à metade da extensão das Terras Indígenas no Brasil. Nos últimos meses, sete destas bases foram desativadas e as demais vêm operando em condições precárias.

A escalada de invasões e agressões contra os isolados no Vale do Javari ocorre justamente no contexto em que a Funai passou a viver um estado permanente de penúria, decorrente do congelamento de seu orçamento no pior patamar de sua história recente, acirrado por sucessivos cortes suplementares.

Estrangulamento da Funai

A Funai jamais dispôs de recursos suficientes para efetuar plenamente suas funções e seu orçamento está em queda desde 2013 (veja gráfico abaixo). Mas nos últimos dois anos a situação se agravou. Em 2016, o já baixo orçamento inicial previsto para o órgão foi de R$ 542 milhões, correspondente a 0,018% do orçamento da União. Sob a justificativa de contribuir com o ajuste fiscal, este montante foi reduzido em R$ 137 milhões.




Dos R$ 180 milhões requeridos para investimentos e custeio de atividades na sede e nas 260 unidades espalhadas pelo país, foram liberados pelo Congresso apenas R$ 101 milhões, correspondentes a 56%.

A situação, que já era dramática, piorou este ano. Em janeiro, o governo federal liberou somente R$ 107,9 milhões ou 59,9% dos R$ 180 milhões para atividades e investimentos. Em março, a presidência ainda revisou suas prioridades e decretou o contingenciamento de 44% do orçamento do Ministério da Justiça e Segurança Pública e órgãos vinculados.

Após protestos, o governo liberou mais R$ 20 milhões, totalizando R$ 80 milhões (ou 44% do requerido, e não do liberado). Em penúria extrema, a Funai passou a ter dificuldades até para pagar as contas de água e luz, forçando – por estrangulamento orçamentário – a desativação de sedes, o cancelamento de operações e a não efetivação de funcionários concursados.

Loteamento e enfraquecimento

Além da via orçamentária, o governo federal vem promovendo um verdadeiro ataque à qualidade técnica ao promover a injustificada substituição de servidores qualificados, experientes e comprometidos com os povos indígenas, por indicados por partidos da base aliada.

O último destes ataques em série apareceu esta semana na carta aberta dos servidores das FPEs e da CGIIRC que acusa o governo de articular a exoneração injustificada da Coordenadora-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato, Leila Sotto-Maior, e da Coordenadora de Planejamento e Apoio às Frentes de Proteção Etnoambiental, Paula Pires.

O enfraquecimento da política de proteção dos povos isolados e de recente contato, estabelecida em 1987, vem redundando em situações dramáticas para os povos isolados, decorrentes de invasões de suas terras não coibidas pelo poder público. "É muito provável que, se a política de estrangulamento da Funai não for revertida, ocorrerá no curto prazo um grave aumento das pressões, violências e massacres contra os isolados, recém-contatados e integrados, em territórios que deveriam ser protegidos pela União", afirma Fany Ricardo, coordenadora do Programa de Monitoramento do ISA.



Além do Vale do Javari, estão sob séria ameaça povos tão diversos e distantes como: os Moxi hatëtëma thëpë (TI Yanomami) – pressionados por garimpeiros; os Awá (TIs Awá, Araribóia, Alto Turiaçu) no Maranhão – por madeireiros e fazendeiros; os Piripkura e Kawahiva do Rio Pardo (TIs de mesmo nome), no Mato Grosso – por madeireiros e fazendeiros; ou os isolados da TI Alto Tarauacá, na fronteira entre o Acre e o Peru – por madeireiros, fazendeiros e narcotraficantes.

É ainda possível evitar a tragédia iminente de que estes povos sejam exterminados, ou que tenham o mesmo destino trágico de povos que vivem no atual o estado de Rondônia, como Akuntsu (TI Omerê) e Juma (TI Uru-Eu-Wau-Wau) - reduzidos a uma família; ou mesmo o “índio do buraco” (TI Tanaru) - reduzido involuntariamente ao triste convívio apenas consigo mesmo.

Se o respeito à vida humana e ao direito nacional e internacional não são razões suficientes para os ocupantes do governo federal atuarem em defesa dos índios, é importante não esquecer que crises humanitárias desta gravidade comprometem ainda mais a imagem do Brasil no exterior e prejudicam a capacidade do país de atrair novos investimentos.

Leandro Mahalem e Roberto Almeida
ISA
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