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Merendeiras pela floresta

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Como uma aliança formada por indígenas, extrativistas, agentes públicos, nutricionistas, chefs de cozinha e organizações da sociedade civil foi capaz de criar um ciclo virtuoso que nutre crianças e mostra o potencial da floresta em pé na região de Altamira (PA)
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Girlene Sousa, Edineide da Silva e Joelma dos Santos dizem que não vivem sem seus "meninos". Merendeiras de mão cheia, trabalham em três diferentes escolas do pequeno município de Vitória do Xingu, no sudeste do Pará, com cerca de 15 mil habitantes.

Girlene orgulha-se de trabalhar em uma creche. Alimentar a primeira infância é tamanha responsabilidade. Edineide e Joelma atendem no ensino fundamental e põem a mesa para centenas de alunos todos os dias. Trabalho puxado que faz bem.

Ao todo, 60 merendeiras do município, entre elas Girlene, Edineide e Joelma, receberam no início de maio de Daniele Damasceno, nutricionista da prefeitura, a missão de criar novas receitas para o 1º Concurso para Alimentação Escolar de Vitória do Xingu. Para aumentar o desafio, com um ingrediente novo: a farinha do coco babaçu.

Todos os bons argumentos em favor da farinha já estavam na mesa. Ela é um produto da floresta, sem glúten, não-transgênico, livre de agrotóxicos, naturalmente rico em ferro e fibras que substitui muito bem o amido de milho e a farinha de trigo nas receitas.

O rendimento é excelente. Com um quilo é possível alimentar 70 crianças sem derrubar uma única árvore. "A farinha de babaçu é o bom, bonito e barato", resume Daniele Damasceno.

A origem da farinha é garantida e tem a cara da diversidade da região. Ela é produzida por indígenas, extrativistas e agricultores familiares da Terra do Meio (PA), área sob forte pressão da grilagem e do roubo de madeira da região do município de Altamira – um dos mais violentos do Brasil, com alto índice de desmatamento e afetado diretamente pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte.

Mesmo com o contexto adverso, o concurso de receitas trouxe o movimento que faltava para envolver toda a cadeia produtiva, de ponta a ponta, do produtor ao aluno. Girlene, Edineide e Joelma saíram vencedoras e, orgulhosas, estiveram em São Paulo para apresentar suas criações no Instituto Feira Livre e no Mercado Municipal de Pinheiros.

Mas quem ganhou, de verdade, foram as cerca de 5.500 crianças que estudam no município. Agora no cardápio tem rocambole, torta, estrogonofe e outras 40 novas receitas. Tudo com farinha de babaçu, que faz bem à economia local e aos alunos.

Assista ao vídeo e conheça essa história!

"Eu não pensava que tinha a capacidade de criar uma receita nova, né. Porque a gente só faz aquilo que vem no cardápio da escola", relembra Edineide Silva, orgulhosa de seu livro de receitas em mãos. Clique aqui para baixar!.

Ela preparou o Estrogonofe de Frango com Farinha de Babaçu, receita vencedora do concurso realizado em junho que teve até torcida organizada no Shopping Serra Dourada, em Altamira, local da premiação.

"Eu vejo que daqui para frente vai ser mais fácil da gente criar nossas receitas", disse a merendeira.

Joelma dos Santos, que preparou a Torta de Frango com Farinha de Babaçu, se emocionou. "A vida do povo é muito sofrida para tirar, para quebrar os cocos. Tem as quebradeiras. Conhecer hoje e saber que o babaçu entrou para a merenda escolar... eu fico sem palavras."


Aliança pela floresta e pela merenda

A valorização do trabalho dos produtores e das merendeiras começa a formar uma aliança pelos produtos da floresta que deu seus primeiros passos ainda em 2017 com a campanha Da Floresta para a Merenda!, com a participação dos chefs Alex Atala e Bela Gil, e da nutricionista Neide Rigo para a elaboração de novas receitas e avaliação nutricional do ingrediente.

Bela Gil e Neide Rigo estiveram em Altamira e visitaram a comunidade Rio Novo, na Reserva Extrativista Rio Iriri, casa de Raimunda Rodrigues, gestora da miniusina multiprodutos que beneficia a farinha do coco babaçu, óleos e castanhas.

"É um trabalho muito duro competir com a indústria alimentícia, com esses produtos ultraprocessados, mas a gente vai devagarzinho lutando", conta Bela Gil. "E acho que a nossa resistência, a nossa persistência vai conseguir fazer com que um dia todas as escolas tenham produtos das suas comunidades locais, valorizando o povo local e valorizando a culinária local."

O esforço para que isso aconteça é enorme, de lado a lado. A Rede de Cantinas da Terra do Meio, que representa associações indígenas e ribeirinhas da região, lançou sua marca própria – Vem do Xingu – e faz parte da iniciativa Origens Brasil, que atesta produtos de Terras Indígenas e Unidades de Conservação e promove transparência e relações éticas entre quem produz e quem compra.

São, ao todo, 27 cantinas indígenas e ribeirinhas, em que cada uma gerencia um capital de giro próprio que viabiliza a produção e comercialização de forma transparente e autônoma. A rede conta, ainda, com oito miniusinas e mais de 10 produtos em uma cesta que tem como carros-chefe o babaçu, a castanha-do-Pará e a borracha. O potencial produtivo é enorme – e é preciso construir o mercado.



"Meu sonho realizado é ver a farinha do babaçu que nem a farinha do trigo hoje é conhecida. Escola, restaurante, hospitais, então que a farinha de babaçu seja um produto que todo mundo conheça e todo mundo queira usar", afirma Raimunda, que cresceu com o babaçu sempre à mesa.

Até hoje, a Rede de Cantinas da Terra do Meio forneceu mais de três toneladas para a merenda de três municípios da região. Além de Vitória do Xingu, as prefeituras de Altamira e Uruará compraram a farinha.

Com a aquisição do produto, elas podem atender à lei federal nº 11.947/2009, que determina que 30% do valor repassado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) deve ser utilizado para a compra de produtos da agricultura familiar, com prioridade a assentamentos da reforma agrária, comunidades tradicionais indígenas e comunidades quilombolas.

"Hoje nós falamos muito em consórcio", afirma Cinthia Hoffmann, secretária de Educação de Vitória do Xingu. "Não precisa ser com o município vizinho, pode ser com municípios à distância, em outros Estados. O que basta é ter muita boa vontade. Acho que a gente já começou e a gente precisa agora ampliar."

A aliança entre indígenas, extrativistas, agentes públicos, nutricionistas, chefs e organizações da sociedade civil continua crescendo.

Raimunda Rodrigues e Fabíola Moreira, assessora da Rede de Cantinas da Terra do Meio, estiveram na Escola Municipal de Ensino Fundamental Desembargador Amorim Lima no bairro Butantã, em São Paulo, para apresentar o coco babaçu e algumas receitas.

No Instituto Feira Livre, a farinha do coco babaçu já faz parte do cardápio de almoço de Govinda Lilamrta, chef de cozinha indiana, que acompanhou a visita das merendeiras campeãs. "Acho que a troca de saberes é sempre muito importante, muito rica. Eu me sinto mais próxima dessa história a partir de hoje. Eu me sinto mais próxima da história do babaçu", disse.

Depois do retorno da turnê em São Paulo, as merendeiras já viram suas receitas incluídas nos cardápios das escolas do município de Vitória do Xingu, que estão pedindo cada vez mais o produto para atender a demanda dos alunos.



Girlene, Edineide e Joelma, as três vencedoras, ainda têm agendado um desfile pela cidade durante o Dia da Independência para mostrar os resultados da campanha para todo mundo ver que a floresta em pé é motivo de orgulho – e alimenta.

Roberto Almeida
ISA
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