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Nasce a Rede de Turismo Indígena do Rio Negro

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Dezesseis iniciativas foram apresentadas em encontro com lideranças das terras indígenas do Baixo, Médio e Alto Rio Negro, no Amazonas
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Por Juliana Radler

Representantes de instituições, especialistas do setor de turismo de base comunitária e lideranças indígenas envolvidas em projetos turísticos, ou que desejam implementar iniciativas nos municípios de Barcelos, Santa Isabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira, no Noroeste Amazônico, se reuniram durante três dias para um intercâmbio de conhecimentos.



Promovido pelo Instituto Socioambiental (ISA) e pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), o I Encontro de Turismo Indígena de Base Comunitária do Rio Negro juntou cerca de 50 pessoas na ilha de Duraka, na Terra Indígena Médio Rio Negro I, em São Gabriel da Cachoeira, entre 10 e 12 de dezembro.

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Devido à instrução normativa da Fundação Nacional do Índio (Funai) que regulamenta o turismo em terra indígena no Brasil, nos últimos cinco anos têm crescido o interesse das comunidades em implementar projetos que sejam geridos pelos próprios indígenas em parceria com empresas turísticas e instituições.

Chama a atenção a diversidade de propostas pensadas pelas comunidades, que incluem roteiros voltados à história de origem dos povos, turismo de observação de aves, de imersão na floresta em trilhas e canoadas pelos igapós. Também, experiências para conhecer da cultura local, com ênfase em aspectos como culinária, danças, músicas e práticas agrícolas dos 23 povos indígenas do Rio Negro.

Potencialidades, diversidade e cardápio indígena

“Temos serras, praias, trilhas, igarapés, lagos, fauna, flora e histórias tangíveis e intangíveis em nosso território. Acredito que o turismo de base comunitária pode nos apoiar na geração de renda e também a valorizar mais nossa cultura”, diz Odilson Almeida, do povo Tukano, vice-presidente da Acibu (Associação das Comunidades Indígenas do Baixo Uaupés), na Terra Indígena (TI) Alto Rio Negro, região onde ainda não existe nenhum projeto de turismo em andamento.



Junto com o professor Moisés Castilho, também Tukano, Odilson apresentou uma das iniciativas em germinação mapeadas no diagnóstico participativo realizado pelas assessoras de turismo indígena de base comunitária da Foirn e do ISA, Jéssica Martins, Lana Rosa e Tifani Araújo, durante o evento.

“Precisamos descolonizar nosso jeito de pensar para valorizar nossa história e vermos que os nossos conhecedores são como mestres e professores, que sabem as histórias contidas em nosso território. Estamos refletindo que o turismo indígena de base comunitária pode ser como uma nova escola. Assim como a escola faz o seu plano político pedagógico (PPP), a comunidade também precisa conversar, dialogar e pensar junto para fazer o seu plano de visitação”, comenta Castilho Tukano.

Subindo o Uaupés, na fronteira com a Colômbia, Domingos Sávio e Adilma Sodré, ambos do povo Tukano, compartilharam a vontade de receber visitantes na região de Iauaretê para apresentar os lugares sagrados dos povos da família Tukano Oriental. “Onde nós surgimos está lá na paisagem. Queremos promover um turismo de origem mitológica”, ressalta Domingos.

Já na região da bacia do Içana, onde vivem os Baniwa e Koripako, também na TI Alto Rio Negro, a dupla Gracilene e Estevão, da Associação Indígena do Rio Cubate (Airc), falou sobre o potencial de receber visitantes para observação de aves, em especial o galo da serra. “Queremos fazer turismo indígena ecológico, pois sabemos os locais onde é bom para observar as aves”, conta Gracilene.



Saindo da TI Alto Rio Negro, os representantes da Terra Indígena do Balaio falaram sobre a Reserva do Morro dos 6 Lagos, que faz sobreposição com a TI. A comunidade já realizou alguns passeios com visitantes para visitação dos lagos e da flora endêmica da reserva, porém sem ordenamento e planejamento. A intenção é conseguir apoio para estruturar um projeto que tenha o protagonismo da comunidade. Alguns empresários já demonstraram interesse em investir, porém, com propostas que não incluíam a participação efetiva da comunidade indígena.

Eufélia Gonçalves, do povo Tariana, enfermeira com especialização em saúde indígena e ex-secretária de Saúde de São Gabriel da Cachoeira, enfatizou a importância dos projetos de turismo trabalharem cardápios com os alimentos da região, com receitas indígenas e ingredientes naturais. Integrante do projeto Mukaturu de autocuidado da mulher indígena, realizado pela Foirn e pelo ISA com o Instituto Aleema, Eufélia motivou as lideranças das associações a privilegiarem a alimentação natural, que além de saudável, reflete a cultura e o conhecimento dos povos originários da Amazônia.

Turismo de Base Comunitária contra os “não-lugares”

No evento também foi debatida a importância do turismo de base comunitária para que as comunidades se protejam de iniciativas turísticas de alto impacto, criadoras de problemas e efeitos adversos, como o de se transformar no “não lugar”, ou seja, um espaço sem sentido, sem história, sem identidade, como explica a professora doutora Susy Simonetti, do curso de Turismo da Universidade Estadual do Amazonas.



“O turismo de base comunitária pode servir de ferramenta para fazer a gestão do território, para a conservação ambiental, fortalecimento da cultura e dos laços comunitários. Por isso esse modelo é o mais indicado tanto para conter as pressões que a Amazônia sofre, como o desmatamento e o garimpo ilegal, como também para evitar projetos de turismo de massa”, enfatiza.

Esse evento pioneiro no Alto Rio Negro, segundo Susy, foi extremamente enriquecedor e abre caminhos para a economia sustentável no Amazonas. “A formação da Rede de Turismo Indígena de Base Comunitária do Rio Negro é muito importante para fortalecer nosso plano de construção de uma política pública para o turismo de base comunitária no Estado do Amazonas”, indica a professora.

Iniciativas indígenas próximas à cidade

Por ser a cidade mais indígena do Brasil, São Gabriel da Cachoeira possui comunidades indígenas fora dos limites das terras demarcadas que habitam áreas periurbanas e urbanas de São Gabriel. Entre elas está Itacoatiara Mirim, comunidade liderada pelo mestre Baniwa, Luiz Laureano, que toca flauta japurutu, além de ser um conhecido construtor de malocas (habitação tradicional dos povos indígenas do rio Negro) e benzedor. Na comunidade está situada uma das duas únicas malocas existentes na cidade de São Gabriel — a outra está na sede da Foirn.

Moisés Baniwa, comunicador e cineasta indígena, filho do mestre Luiz, apresentou sua proposta de turismo indígena de base comunitária durante o encontro. Ressaltou o imenso potencial da comunidade, que já recebe semanalmente visitantes. “Nosso forte é a cultura, com a maloca, a música das flautas e os rituais de dabukuri. Mas, também temos uma floresta na comunidade com trilhas e igarapés. Também fazemos observação noturna de cogumelos bioluminescentes”, conta Moisés.

Florinda Lima Orjuela, do povo Tuyuka, também compartilhou sua experiência na associação Aietum (Associação Indígena da Etnia Tuyuka Moradores de São Gabriel da Cachoeira), que todo domingo promove uma feira alimentícia e cultural na cidade. A iniciativa consolidou-se como a principal atividade cultural indígena na área urbana de São Gabriel, recebendo visitantes do Brasil e do mundo.



Além da venda de pratos típicos como a quinhampira e a mujeca, e alimentos do Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro, a hospitalidade Tuyuka também inclui música tradicional indígena e contemporânea da tríplice fronteira com a Colômbia e a Venezuela, dança e cuias de caxiri (bebida alcoólica fermentada tradicional indígena).

Trilha ecológica

Os anfitriões do evento, moradores da comunidade multiétnica de Duraka, também comentaram sobre as vantagens de serem uma comunidade indígena dentro da terra demarcada, mas que estão muito próximos da cidade, logo em frente ao porto principal de São Gabriel, Camanaus. Duraka é uma ilha no Rio Negro, onde moram 48 famílias falantes de Tukano, Nheengatu e Português.

“Queremos montar em Duraka uma trilha ecológica como existe na reserva Adolpho Duke em Manaus, para mostrar aos visitantes a imensa biodiversidade que temos no Alto Rio Negro. Além disso, temos nossas roças, culinária, artesanato, danças tradicionais e nossa organização comunitária, que sempre chama atenção dos visitantes, porque tudo aqui em Duraka nós fazemos com mutirão. Cerca de 80% dos recursos para as melhorias comunitárias da ilha nós fazemos com recursos da roça da comunidade”, diz a professora Rosane Fontes de Souza, do povo Tukano.

Pesca esportiva, Serras Guerreiras e Yaripo

Representantes de projetos indígenas de turismo de base comunitária já estruturados tiveram a oportunidade de mostrar sua experiência para as comunidades que estão planejando iniciar suas atividades. As lideranças puderam compartilhar desafios, dificuldades e benefícios do turismo comunitário.

Nessa sessão estavam presentes representantes do projeto Yaripo Ecoturismo Yanomami, no Parque Nacional do Pico da Neblina, da pesca esportiva nos rios Marié e Jurubaxi, e do roteiro Serras Guerreiras de Tapuruquara, ambos na região do Médio Rio Negro.



Alessandro Baré, coordenador do projeto Serras Guerreiras, comenta que, atualmente, cinco das 12 comunidades da Acir (Associação das Comunidades Indígenas e Ribeirinhas), de Santa Isabel do Rio Negro, participam do projeto de turismo de base comunitária — que conta com parceria da organização Garupa e apoio da Foirn e do ISA.

“Quando começamos a debater esse projeto, em 2015, nossa motivação era inibir as entradas ilegais de turistas que estavam acontecendo na nossa região. A gente queria fazer um ordenamento e garantir que as comunidades realmente tivessem benefício dessa atividade de visitação. Hoje, a gente percebe que não precisa abandonar a roça ou mudar nosso jeito de viver para trabalhar também com o turismo comunitário”, comenta.

Marivelton Barroso, presidente da Foirn, do povo Baré, ressalta a importância da criação da Rede de Turismo do Rio Negropara que as iniciativas existentes possam se apoiar, fazer intercâmbios e consolidar um roteiro turístico indígena na região do Rio Negro, considerada a área mais preservada da Amazônia.



“Essa rede é importante porque pode promover um tipo de salvaguarda para as comunidades se ancorarem. As experiências somadas podem se apoiar e trocar, inclusive para poderem saber se relacionar com os parceiros comerciais e com os visitantes”, afirma.

Marcos Wesley, coordenador do Programa Rio Negro do ISA, que acompanha desde o início o projeto de turismo Yanomami ao Pico da Neblina, comenta que a Rede será importante também para produzir conteúdo, formações, intercâmbios e diálogo entre os projetos de turismo em quatro aspectos prioritários: segurança territorial, gestão de projetos, comunicação e publicidade dos roteiros e também na relação com agências e operadoras de turismo. “Essa iniciativa vem para fortalecer a ideia de construir um circuito de turismo indígena de base comunitária no Rio Negro”, conclui.

Turismo como Ferramenta de Governança e de Segurança nos Territórios Indígenas

No terceiro dia do evento, o tema Turismo como Ferramenta de Governança e de Segurança nos Territórios Indígenas foi debatido por uma mesa composta pelo general Ricardo Peixoto da 2a Brigada de Infantaria de Selva, pelo procurador do MPF Júlio Araújo, Marivelton, da Foirn, Ernesto Estêvão, do projeto de pesca Marié, Ernani Gomes, do DSEI- ARN, e por Renata Vieira e Marcos Wesley, ambos do ISA.

Ernesto contou como o turismo de pesca no Rio Marié, protagonizado pelas comunidades indígenas a partir de 2014, fortaleceu a articulação entre elas e a governança do território. “Antes, as empresas entravam e saiam sem dar a menor satisfação. Levavam o nosso peixe, ganhavam muito dinheiro com os turistas, e ainda promoviam a desunião entre nós”, afirma.

Segundo ele, depois do início do projeto de pesca, a segurança na região melhorou muito e a oferta de peixes também, além da criação de um fundo que é revertido para investimentos em infraestrutura. Apesar disso, ele relatou que nos últimos dois anos o Rio Marié começou a ser usado como rota pelo narcotráfico e alertou para a necessidade de respostas rápidas e efetivas dos órgãos responsáveis.

O general Ricardo Peixoto disse ter conhecimento da situação no Rio Marié e que medidas estavam sendo tomadas naquele mesmo momento a fim de coibir os ilícitos. Em seguida, lembrou que, na definição das fronteiras brasileiras no Noroeste Amazônico, os povos indígenas foram fundamentais para que a região se tornasse Brasil e enfatizou que “o turismo tem um potencial excepcional para contribuir com a segurança na região”.

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