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Plano e medidas tomadas até agora não garantem vacinação de povos indígenas, diz especialista

Para a infectologista Mariana Croda, do Centro de Operações de Emergência no Enfrentamento da Covid-19 no Mato Grosso do Sul, informações já divulgadas são vagas e problemas do combate à pandemia podem se repetir na imunização
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Entrevista concedida a Oswaldo Braga de Souza

Nesta semana, com o início da vacinação, os primeiros indígenas também foram imunizados no país. A expectativa é grande entre essas populações. Mais de 46 mil já foram contaminados pela Covid-19 e quase 930 morreram, de 161 povos diferentes, segundo levantamento independente da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

As comunidades foram incluídas entre os grupos prioritários no plano nacional de vacinação, uma boa notícia em meio a um cenário sombrio. A medida foi considerada uma conquista, resultado da pressão do movimento indígena. Em julho, a Apib entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para obrigar o governo a combater efetivamente a pandemia entre essas populações.

Apesar disso, predominam preocupações e dúvidas sobre como a vacinação ocorrerá em todo país, e entre os indígenas em particular. Está claro que a quantidade disponível de doses ainda é pequena e que o fornecimento regular em escala ainda deve demorar a ser alcançado. O governo federal não apenas omite-se e produz desinformações e ações desencontradas em série como milita explicitamente contra a imunização, a começar pelo presidente Jair Bolsonaro. A Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, sofre duras críticas por sua atuação desde o início da pandemia.

Diante de tudo isso, das informações e ações já divulgadas, não há nenhuma garantia de que a vacinação entre as comunidades indígenas ocorrerá de forma adequada no tempo oportuno. A opinião é da médica infectologista Mariana Garcia Croda, do Centro de Operações de Emergência no Enfrentamento da Covid no Mato Grosso do Sul. Ela tem mais de dez anos de experiência na saúde indígena. O estado tem a segunda maior população indígena do país, atrás do Amazonas.

“Nós não temos nenhuma medida efetiva. O próprio plano de vacinação é muito vago. A gente não garante a execução mediante o plano apresentado. Os prazos não existem”, afirma. A especialista critica ainda outro ponto da política do governo já anunciada: de acordo com ela, a Sesai não teria obrigação de vacinar a população indígena urbana, o que pode excluir pelo menos 36% dos 896,9 mil indígenas que viviam no Brasil em 2010, segundo o último censo do IBGE.

Confira abaixo os principais trechos da entrevista concedida por Croda ao ISA.

ISA - O subsistema de saúde indígena tem experiência em vacinação e capacidade para realizá-la?

Mariana Croda - Nas campanhas de influenza, a gente vacina, em primeiro lugar, [as populações indígenas]. Quando chegam essas vacinas para os estados e municípios, aquelas da população indígena já são separadas para os Distritos Sanitários Especiais Indígenas [Dsei], que fazem essa cobertura dentro dos territórios. Então, o primeiro passo é capacitar o Dsei, para que, quando houver a chegada dessas vacinas, todos esses locais já estejam adequados. Com essa expertise que a gente ganhou ao longo dos anos, cada unidade de atenção à saúde primária da população indígena já tem a capacidade de armazenar e aplicar as vacinas no momento que chegam. Não é algo novo. Isso é muito importante reforçar: já existe essa capacidade instalada. São as câmaras frias ou locais de armazenamento adequado das vacinas, as pessoas que aplicam, o manejo com seringa, agulha, fracionamento. Isso já existe dentro da saúde indígena.

ISA - Por que os povos indígenas devem estar entre os grupos prioritários para a vacinação?

MC - Dentro do Programa Nacional de Imunização, principalmente para as doenças respiratórias, os povos indígenas sempre entraram como grupo prioritário. Baseado em quê? Existem vários estudos que mostram a vulnerabilidade dessa população para essas doenças respiratórias. Ao longo da história, a gente vê dizimações de povos por doenças respiratórias. Isso, no início, com a influenza. Temos ainda a tuberculose, que se mantém endêmica nesses povos. E agora veio a Covid-19, mostrando que eles continuam vulneráveis a essas doenças. Então, a justificativa maior para essa prioridade é essa vulnerabilidade dos povos para doenças respiratórias.

ISA - Os povos indígenas foram incluídos entre os grupos prioritários para vacinação. É possível garantir que eles serão vacinados de forma correta?

MC - O que a gente viveu ao longo da pandemia no ano de 2020 pode continuar se refletindo em 2021. Nós não tivemos uma coordenação centralizada e isso fez com que, de alguma forma, as medidas tomadas fossem desordenadas. Os estados e municípios tiveram que avocar para si essa habilidade de coordenar as ações no enfrentamento da Covid-19.

Na vacinação, a gente tem visto essa descoordenação, a inércia do governo federal em coordenar as ações para a efetivação da vacinação. A gente já vê problemas, como os insumos, a questão de não conseguir concluir o contrato e a contratação da empresa para fornecimento das seringas, que são insumos básicos. A questão da logística depende muito do governo federal. Então, tudo isso nos dá medo de que novamente haja falhas graves, como já houve no ano passado, e que haja desassistência por conta dessas questões operacionais, que são responsabilidade completa do governo federal.

Nós não temos nenhuma medida efetiva. O próprio plano de vacinação é muito vago. Os prazos não existem. A colocação do ministro, falando que é o “dia D, a hora H”, faz com que essa comunicação seja muito falha. A gente não tem clareza das informações que vêm do governo federal. E isso tudo não dá nenhuma garantia, principalmente para esses povos, que têm uma maior necessidade de uma rápida vacinação.

Os distritos sanitários, ligados ao Ministério da Saúde e à Sesai, não conseguiram dar uma resposta efetiva, com contratação de pessoal, compra de insumos, dependendo, sim, da ajuda de estados e municípios, que logicamente têm as suas funções, mas que tiveram de alguma forma de fazer além do que estavam habituados a fazer. Dentro desse contexto, nós não temos nenhuma garantia de que, mesmo com esse plano vigente, a gente tenha efetivação da vacinação no tempo oportuno, como a gente espera.

ISA - Diante do que aconteceu no combate à pandemia entre os povos indígenas, quais podem ser os principais gargalos para Sesai e os Dseis na vacinação?

MC - Isso envolve desde a saída do insumo básico, que é a vacina, do seu local até a chegada nas unidades de saúde. A logística foi muito falha tanto na aquisição dos insumos como na distribuição. Nós temos que lembrar que a população indígena, às vezes, habita territórios que são de difícil acesso.

Outra questão é a aquisição desses itens, desde equipamento de proteção individual até itens básicos como álcool e seringa, que a gente sabe que, historicamente, há uma deficiência enorme da saúde indígena em prover adequadamente para as unidades. Estados e municípios têm feito isso e a pandemia mostrou que a capacidade de resposta rápida da Sesai é zero. Ela foi criada pra fazer atenção primária. Quando ela tem uma emergência em saúde, um evento novo, ela não tem a capacidade de dar uma resposta oportuna, tempestiva, que o evento necessita. O grande teste é a Sesai se adequar a uma demanda urgente e que foge da sua rotina. É isso que já deve estar sendo preparado e eu espero que não haja falhas graves, como houve com a condução dos casos de Covid-19 nos territórios.

ISA - Existe alguma justificativa técnica para a exclusão dos povos indígenas que moram em cidades do plano de vacinação da Sesai?

MC - A nossa grande preocupação são com os povos que estão fora dos territórios indígenas e com os assentamentos e acampamentos. Essa população está num limbo jurídico, que você não tem a priorização pela saúde indígena, mesmo que o STF tenha determinado.

A justificativa técnica é a do princípio da atenção primária de territorialização e adscrição. Tem uma margem de cobertura através desse princípio, de logística até, da atenção primária. Isso na atenção primária como um todo mas na atenção primária da saúde indígena vem há tempos, como a questão do território oficial indígena.

A questão da territorialização pode ser facilmente sanada quando você já tem políticas como a das unidades volantes. E a saúde indígena tem. Só que a justificativa é que eles não fizeram o planejamento, em termos de número de população, para a população não aldeada. Então, neste momento de emergência, não teriam condições de fazer isso de uma forma rápida, o que inclui aí novas equipes de saúde, novas contratações de recursos humanos, para sanar essas pendências.

Nesse contexto, acho muito difícil que a Sesai consiga atender essa população não aldeada, principalmente por esse princípio da territorialização. Mas que haja pelo menos uma proposta de solução. Dizer simplesmente “não vou fazer”, não apresentar nenhuma solução é simplesmente dizer que não se preocupa com a saúde indígena como um todo. Olham uma parte da saúde indígena, e o resto outros devem olhar. Preocupação maior é: quem fará isso e quem coordenará essas ações para essas populações que não estão dentro dos territórios? Essa pergunta que o STF levantou e que muitos já vêm levantando há anos e que não houve nenhuma resposta plausível até o momento.

ISA - Quais podem ser as consequências de uma vacinação atrasada e ineficaz para os povos indígenas?

MC - A principal consequência é não conseguirmos controlar a pandemia dentro dessas regiões, que estão tão vulneráveis, que foram colocadas em estado de vulnerabilidade. E fazermos isso de uma forma tão desigual que outras populações sejam privilegiadas em detrimento de uma. Meu grande temor é que seja tirado de um para dar para outro, e que não seja levada em conta a necessidade real de uma população em relação à outra. Ou seja, que todos os princípios em que nos baseamos para montar uma política de saúde pública sejam negligenciados e essas populações continuem a ser dizimadas.

Aumenta o som: podcasts pela vacina e contra as fakenews

A importância da vacina contra a Covid-19 e o combate às notícias falsas foi o tema da primeira edição do ano do Áudio do Beiradão, podcast feito pelas associações extrativistas da Terra do Meio (PA) em parceria com a Rede Xingu + e o ISA. O 34º programa do Áudio do Beiradão contou com participação do médico Drauzio Varella e da jornalista Eliane Brum. No ar desde o início da pandemia, o podcast semanal reforça cuidados e ações de enfrentamento a Covid-19, além de trazer conteúdo sobre produtos da floresta, segurança alimentar e proteção do território para ribeirinhos e indígenas. Ouça todas as edições no Soundcloud da Rede Xingu +

O primeiro episódio do ano do Copiô, Parente também tratou da importância da vacina e de se combater a desinformação sobre elas. O programa trouxe os médicos Douglas Rodrigues e Sofia Mendonça, além de áudios de Dráuzio Varella, sobre o assunto. Também reproduziu trechos da entrevista com Mariana Croda. Também semanal, o Copiô é o primeiro podcast feito para povos indígenas e povos da floresta do Brasil e já está em sua 172ª edição.

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