Documentário retrata modo de vida único na Bacia do Rio Xingu, desenvolvido a partir de inspiração sertaneja e indígena após migração do ciclo da borracha
O som de um motor de barco dá início ao documentário “Vidas Beiradeiras - Saberes e Práticas Tradicionais na Floresta”. É para uma viagem até a Terra do Meio, no Baixo e Médio Rio Xingu, no Pará, que o filme nos leva.
Essa região da Amazônia guarda números grandiosos: com extensão de aproximadamente nove milhões de hectares em meio aos Rios Xingu e Iriri, abriga três Reservas Extrativistas - Resex Xingu, Resex Riozinho do Anfrísio e Resex do Iriri - a Estação Ecológica Terra do Meio, o Parque Nacional da Serra do Pardo e 10 Terras Indígenas.
Mas ganha um novo contorno quando chegamos mais perto e entramos na floresta para conhecer os rostos, os nomes e as histórias da gente beiradeira que vive nesse interflúvio de rios.
“O pessoal, no começo, queria valorizar a floresta, mas esquecia do povo. Mas eu sempre falo que não existe floresta sem o povo”, diz Raimunda Rodrigues, da Resex Rio Iriri.
O documentário registra um modo de vida singular que beiradeiros e beiradeiras da Terra do Meio desenvolveram a partir de matrizes indígenas e sertanejas. O lançamento será em 15 de novembro, na COP30, em Belém, no Pavilhão Food Roots and Routes Pavilion, a partir das 16h.
A realização da COP 30 em Belém, no Pará, é também uma oportunidade de se debater sobre o tema e impulsionar o reconhecimento desses sistemas. A atividade econômica praticada por esses povos é integrada à floresta e considera os tempos e espaços necessários para essa coexistência, produzindo fartura e preservando o ambiente ao mesmo tempo, promovendo biodiversidade, cuidado com a água e regulação climática.
Em tempos de emergência climática, são sistemas que devem ser olhados e reconhecidos como alternativa a atividades predatórias.
A narração que nos guia pelos rios, roças e floresta é de Liliane Ferreira, beiradeira da Resex do Rio Iriri e dona do sorriso que está nas primeiras cenas. Ela conta sobre o SAT Beiradeiro, o Sistema Agrícola Tradicional dos beiradeiros. Um sistema que inclui a roça e se expande para seringais, castanhais, casas, pesca, caça, práticas de cura e festejos.
“Boa tarde, esse aqui é o nosso SAT, nosso sistema agrícola tradicional. (...) Então, começando, chega pelo rio, continua com as casas das famílias. Aí temos aqui como tirar a seringa. Temos aqui uma rocinha com várias diversidades de planta: macaxeira, mandioca, milho, arroz , feijão. Que a gente precisa pra tirar o alimento pra gente poder trabalhar nas outras coisas. Pra tirar a seringa a gente precisa ter alimentação. Pra tirar a castanha, pra furar a copaíba, coletar andiroba também”, explica.
Além de navegar pelos Rios Xingu e Iriri e acompanhar o trabalho na roça, o filme mostra a coleta das castanhas em meio à floresta e todo o processo realizado até a comercialização: o ouriço que cai no chão da mata, a retirada da amêndoa, a lavagem, o transporte em canoa.
Retrata também como aproveitar o babaçu - do mingau ao carvão. E ainda conta das casas e das canoas, construídas com o que a floresta oferta.
Nas imagens, também aparecem os saberes dos seringueiros: da abertura das estradas da seringa, passando sobre como deve ser o corte no tronco da árvore, até os segredos para não se perder em meio à mata.
A seringa é o motivo de boa parte dessas pessoas estar ali. Os chamados beiradeiros chegaram do Nordeste para essa região incentivados pelo governo federal, por conta dos dois grandes ciclos da borracha que aqueceram a economia brasileira entre o final do século XIX e início do século XX.
Na região já estavam - desde tempo imemoriais - povos indígenas, entre eles os Xipaya, Yudjá/Juruna, Arara, Kuruaya, Araweté, Asurini e Parakanã. Esse encontro, com relações construídas ao longo do tempo, resultou num modo de vida próprio, ainda pouco conhecido.
Com o declínio desse ciclo econômico, a população beiradeira foi invisibilizada. E vem sofrendo com pressões constantes de projetos do agronegócio, exploração madeireira, garimpo, expansão de cidades e, mais recentemente, o da Usina de Belo Monte.
Ao mostrar o modo de vida dos beiradeiros e beiradeiras, o filme reforça a importância dessas pessoas e fortalece a necessidade de reconhecimento do Sistema Agrícola Tradicional Beiradeiro - o SAT Beiradeiro - como patrimônio pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, na sigla em inglês).
No país, há dois sistemas agrícolas já reconhecidos pelo Iphan: o SAT Rio Negro, dos povos indígenas do Rio Negro (AM) e do SAT Q, o Sistema Agrícola Tradicinal das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira (SP). No país, a FAO reconhece como patrimônio agrícola mundial o Sistema de Apanhadores de Flores Sempre-Vivas, em Minas Gerais; e o Sistema Agroflorestal Tradicional de Cultivo da Erva-Mate, no Paraná.
O filme foi exibido em dezembro de 2024 no XI Encontro Terra do Meio, em Altamira (PA), tendo como público os beiradeiros e as beiradeiras, com roda de conversa conduzida pelo antropólogo Augusto Postigo. Ele dirige o filme ao lado de Tatiane Vesch. A co-direção é de Tainá Aragão.
“Mostrar essas vidas e histórias, além desses modos de vida, reforça a importância dessas pessoas que estão sendo invisibilizadas. Os beiradeiros e beiradeiras mantêm sistemas agrícolas e culturais sofisticados, capazes de promover equilíbrio entre sustento e floresta”, diz Augusto Postigo.
O roteiro é baseado no livro “Terra do Meio | Xingu, os saberes e práticas dos beiradeiros do Rio Iriri e Riozinho do Anfrísio”, elaborado em conjunto por 15 pesquisadores beiradeiros e coordenado pela antropóloga Anna Maria Andrade, também responsável pela organização juntamente com André Villas-Bôas e Augusto Postigo.
Na introdução do livro, André Villas-Bôas, co-fundador e membro do Conselho Diretor do ISA, escreve sobre o modo de vida beiradeiro: “A estratégia de adaptação às condições adversas de existência resultaram num modo de vida próprio, ainda hoje muito pouco conhecido e valorizado e que merece ser abordado como um patrimônio cultural particular”.
Durante o filme, Genival Aguiar, da Resex Riozinho do Anfrísio, que é filmado sentado em sua canoa, resume o que, para ele, é ser um beiradeiro. “E eu sinto assim, que a gente é a raiz da floresta. Estamos com ela firmes, seguros. Se nós não cuidarmos, ela cai.”
Para Marta Gomes da Silva, da mesma Resex, esse cuidado é o legado dos beiradeiros. “Além de a gente preservar, a gente vai deixar um legado para as crianças e para nossos filhos e netos, sobrinhos também, e que mais na frente, eles vão saber como também é bom preservar a floresta.”
Se esse território e esse modo de vida têm preço? Quem responde é seu Francisco Neves de Souza, da Resex Rio Iriri: “Daqui eu tiro a farinha, eu tiro a macaxeira, eu tiro o cará, eu tiro a banana, eu tiro alimentação para os meus filhos, para a minha família, pra sempre", pontua
"E se eu vender essa terra para vocês por R$1 milhão, eu ainda estou fazendo um negócio que não é nem bom pra mim, nem pro meu filho, para a minha família, entendeu?”.
Serviço
Lançamento do “Vidas Beiradeiras - Saberes e Práticas Tradicionais na Floresta” na COP30, Belém (PA)
Data: 15/11 às 16h
Local: Food Roots and Routes Pavilion, Zona Azul
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