Indígenas preservam saberes tradicionais e mantêm a luta viva em meio à crise humanitária e ao confinamento na "periferia" de cidade sul-mato-grossense
Em um sábado de manhã, cerca de 20 crianças se reúnem com Dona Floriza, rezadora guarani kaiowá, em uma sala de aula na aldeia Jaguapiru, na Reserva Indígena (RI) de Dourados. Lá, elas aprendem os cantos-rezas, a língua guarani, ouvem histórias, e assim, o ñandereko, modo de existência guarani, é passado de uma geração a outra.
“Tá ensinando essa criançada é muito bom. Se a gente não deixar essa palavra, eles não vão saber não, porque a criança de hoje fala mais o karai reko (modo não indígena), fala só em português, a mãe também, o avô talvez já não fala mais guarani e já perdeu o idioma, não canta mais a reza. Isso também dói pra gente”, desabafou Dona Floriza, depois de explicar aos alunos como as sementes deram origem aos alimentos.
“Quando o Kuarahy [Sol] chegou, só tinha a iluminação só um pouquinho.
O Kuarahy então perguntou ao Jasy [Lua]:
– O que nós vamos fazer nessa semente?
Ao que o Jasy respondeu:
– Vamos plantar porque essa semente vai gerar para todo o país”.
O projeto desenvolvido por Floriza Souza e seu marido, o rezador Jorge da Silva, foi uma das maneiras encontradas pelo casal de perpetuar os saberes e práticas tradicionais guarani kaiowá, mesmo no contexto adverso de uma Reserva criada para confinar indígenas e liberar suas terras para colonização.
“Nós, juventude, que damos mais força tanto para liderança, quanto para ñandesy [rezadora em guarani] e ñanderu [rezador em guarani], porque a juventude que leva mais e tem que aprender mais, porque a liderança, a ñandesy, o ñanderu já tá um pouco cansado. Por isso que nós, da juventude, temos que aprender tudo isso, rezar na língua, de aprender como é que ele faz, ouvir a história deles”, defende Michele Concianza, que, além de cineasta do povo Guarani Kaiowá, é filha de rezadora e vive na Terra Indígena Panambizinho, também no município de Dourados.
Dos anciãos à juventude, as formas de resistência encontradas pelos indígenas guarani kaiowá são múltiplas, mesmo em meio à escalada de violência e ataques a seus territórios. Da Reserva de Dourados surgiram nomes como os rappers Brô Mc’s e Jovens Conscientes, as cineastas Graciela Guarani e Michele Concianza, além de acadêmicos como Indianara Ramires Guarani Kaiowá e Izaque João.
Localizada entre as cidades de Itaporã e Dourados (MS), a Reserva Indígena de Dourados, com seus 3.500 hectares, abriga mais de 13 mil indígenas (IBGE) dos povos Guarani Ñandeva, Guarani Kaiowá e Terena. O número equivale a mais de 10% de todos os indígenas no estado do Mato Grosso do Sul, segundo dados do Censo 2022. Apesar disso, a área reservada a eles possui uma densidade demográfica mais de três vezes maior que a da capital do estado em que está localizada, Campo Grande.
Dados do Distrito Sanitário Especial Indígena do Mato Grosso do Sul (DSEI-MS) apontam que a população da Reserva é ainda maior do que a registrada no Censo de 2022, com ao menos 16 mil indígenas vivendo dentro da Reserva e em seus entornos, como explica o antropólogo Diógenes Cariaga em artigo publicado no livro Povos Indígenas no Brasil 2011-2016 sobre os cem anos da Reserva.
“De 2011 para cá [2016], muitas famílias passaram a retomar áreas contíguas às reservas, como uma forma acelerar a publicação dos relatórios de identificação de terras tradicionalmente ocupadas, iniciados em 2007. Entre a primeira retomada em 2011, Ñu Verá, e as mais recentes, somam-se em 2016 cerca de dez”, explica o professor da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) e membro da Rede de Apoio e Incentivo Socioambiental (RAIS).
Apesar do IBGE ainda não ter divulgado dados específicos referentes à presença indígena nos entornos da Reserva, o deslocamento de indígenas para essas aldeias reocupadas já começa a aparecer nos números do Censo 2022, como aponta a demógrafa indígena Rosa Colman, da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e também da RAIS. “Comparando 2010 com 2022, podemos observar um pequeno aumento da população indígena da reserva, mas, sabemos que muitas pessoas da reserva se mudaram para os vários acampamentos que foram se formando e ampliando no entorno da reserva de Dourados”, afirma.
“Só aqui no município de Dourados tem 15 retomadas", explica a professora Teodora Souza, do povo Guarani Ñandeva, que vive na Reserva e é Coordenadora Regional da Funai em Dourados. Dessas áreas, segundo ela, 13 ainda não estão incluídas em nenhum estudo de identificação e delimitação pela Funai e são alvo de ataques frequentes, inclusive com uso de armas de fogo e de um trator blindado, chamado pelos indígenas de “caveirão”. O ataque mais recente aconteceu em agosto de 2023 no tekoha Avaete, conforme noticiou o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Das pessoas que vivem na Reserva, mais da metade se encontra na faixa etária entre 0 e 29 anos. Ao contrário da média nacional (48,5%), a maioria dos jovens são do sexo masculino (53%). “Dá para perceber que a pirâmide [etária] está mais arredondada, o que significa uma distribuição melhor da população em todas as idades, mas a juventude ainda concentra a maior parte. Isso indica que já diminuiu um pouco o número de filhos”, avalia a demógrafa .
Para esses jovens, a realidade vivida perpassa o racismo e a falta de acesso a direitos básicos como água, alimentos, saneamento, energia, segurança e oportunidades. A pesquisa “Insegurança Alimentar entre famílias indígenas de Dourados, Mato Grosso do Sul, Brasil”, por exemplo, identificou a prevalência de insegurança alimentar em quase 65% das famílias entrevistadas na RI.
“A água falta muito nas casas. Então existe uma dependência muito grande da cidade por conta mesmo dessa insegurança alimentar, que hoje não tem espaço para você reproduzir e plantar e mesmo que demarca, hoje nem todo mundo ia ter instrumento [conhecimento] para poder então plantar”, explica Indianara Ramires Machado.
Nascida na aldeia Bororó, dentro da Reserva, a doutoranda e enfermeira guarani kaiowá atua desde a adolescência em uma organização de jovens, a Ação dos Jovens Indígenas de Dourados (AJI).
Ela complementa ainda que o contexto da juventude na RI é tão violento que a demanda por território, por vezes, acaba ficando em segundo plano diante de necessidades tão básicas.
“Os meus avós foram trazidos forçadamente para cá. Eles já vieram desse contexto do tekoha [aldeia em guarani] e eles têm essa percepção de como era o tekoha e como é importante o território, mas a juventude de hoje, ela já nasce nesse contexto de fragilidade social, de vulnerabilidade, de terra arrasada”.
A criação da Reserva em 1917 pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) – órgão indigenista anterior à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) – fez parte de uma política de esbulho e confinamento dos povos indígenas no Mato Grosso do Sul, estabelecida no começo dos anos XX como um incentivo à colonização do Centro-Oeste.
O resultado foi uma série de violações e expulsões que levaram indígenas de outras aldeias e territórios ao então chamado Posto Indígena Francisco Horta Barbosa, criado por meio de um decreto estadual pelo governador do então Estado de Mato Grosso, Caetano Manuel de Faria e Albuquerque, sem estudo prévio que garantisse a conexão da área demarcada com as terras tradicionalmente ocupadas por eles – como garante hoje o pelo artigo 231 da Constituição Federal.
Atualmente, o perímetro urbano de Dourados avança sobre a Reserva, separada apenas por um anel viário, local onde ao menos cinco indígenas morreram atropelados nos últimos anos, incluindo uma criança. A RI, também cortada pela rodovia estadual MS-156, possui uma boa parte de seu entorno ocupada por fazendas de milho e soja. Além disso, um muro a separa de condomínios de luxo, que ilustra a violenta relação da cidade de Dourados com população indígena.
Segundo Aline Crespe, professora da UFGD e pesquisadora da RAIS, o avanço do perímetro urbano sobre a Reserva e as ocupações no entorno se intensificaram a partir da década de 1970, mas é nos anos 2000, com a construção do anel viário, que surgiram condomínios como o Ecoville e o Hectares. “Em 2011, foi ampliado o perímetro urbano de Dourados e desde então os condomínios passaram a se multiplicar rapidamente. E esses condomínios de luxo próximos ao anel viário começam a implementar muros grandes e altos que inviabilizam o tráfego das famílias indígenas que precisam sair da Reserva e acessar a cidade para trabalhar, fazer compras, produzido um impacto na circulação dos indígenas”, explica a pesquisadora.
“Parece que em Dourados já é tudo cidade, quase dominaram todas as aldeias. E principalmente milho, soja, não tem mais mato lá. Os fazendeiros derrubaram os matos. Bem na frente da nossa aldeia tinha matos grandes, enormes. E lá que a gente sempre pegava a madeira para construir a casa de reza. Aí em pouco tempo eles queimaram esse mato, derrubaram porque eles viram muitos indígenas pegarem madeira lá para construir a casa. Aí eles queimaram e desmataram tudo, isso que a gente sente mais dor”, lamentou Michele Concianza.
É nesse contexto que surgem as organizações de jovens que se mobilizam em coletivos como a AJI e a Retomada Aty Jovem Guarani Kaiowá. “A Aty Jovem é uma retomada para que os jovens tenham um conhecimento sobre a educação, saúde, demarcação. A gente sempre discute sobre isso porque nós somos a juventude, somos uma futura liderança”, explica a cineasta.
O 9 ° Encontro da Juventude Guarani Kaiowá, a última reunião do coletivo formado por jovens dos povos Guarani Kaiowá e Guarani Ñandeva de todo o Mato Grosso do Sul aconteceu entre os dias 22 e 26 de julho, na Terra Indígena Taquaperi, em meio a ataques aos indígenas da Terra Indígena Panambi Lagoa Rica. Em razão disso, das 700 pessoas esperadas, apenas 300 conseguiram chegar ao local do encontro, que reuniu também lideranças da Aty Guasu, a grande assembleia dos povos Kaiowá e Guarani.
As questões enfrentadas pelos jovens dentro e fora da Reserva são expressas em músicas pelo grupo indígena de rap Brô Mc’s. O grupo formado em 2009 por Charlie Peixoto, Bruno Veron, Clemerson Batista e Kelvin Mbaretê traz em suas rimas a luta e resistência de seu povo. “Sei que quando eu passo, me olha diferente. E a gente luta para manter a nossa crença. E o homem branco traz doença, dizimou o nosso povo, causou a nossa miséria e agora me olha com nojo. Sou um índio sim, vou até falar de novo Guarani, Kaiowá e me orgulho do meu povo”, cantam em um dos trechos da música “A Vida Que Eu Levo”.
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Para Indianara Ramires Machado, a vantagem que os jovens da Reserva possuem em relação aos mais velhos é o acesso potencializado aos estudos e tecnologias. À exemplo disso, hoje, os 800 alunos indígenas matriculados na UFGD correspondem a quase 15% de todos os discentes da instituição. “Eu vejo que hoje eles têm muito mais acessos, então eles podem ir muito mais longe. Eles têm mais acesso também à faculdade e aos cursos técnicos. É claro que isso precisa ser melhorado e potencializado também para que eles cheguem ainda mais longe, mas também a gente precisa dar esse suporte para esse entendimento da importância da luta dos povos indígenas”, pondera.
Michele Concianza vê sua atuação como comunicadora como uma força da juventude para se representar a partir de seu olhar e também para resistência do seu povo. “Nós indígenas, a gente fala o que é realidade, a gente fala o acontecimento pela realidade do povo Guarani Kaiowá”, afirma, trazendo também a importância de comunicadores indígenas para produzirem sobre outras realidades além da Reserva de Dourados, como é o caso das ações de recuperação territorial realizadas pelo povo Guarani e Kaiowá – que são chamadas de retomadas pelo movimento indígena e acontecem desde os anos 1970.
“Às vezes que eu lembro como que faz o nosso parente de retomada, na vivência da retomada, é muito difícil. E principalmente nós Guarani Kaiowá que sofreram muitas ameaças. Por isso que nós queremos mostrar através da mídia sobre isso, nos filmes, documentários, porque isso é o que é mais importante para nós”, conclui.