Relato de Valêncio da Silva Macedo, Agente Indígena de Manejo Ambiental (AIMA) em Urumutum Lago, registra os acontecimentos dos últimos meses e sua ligação com eventos anteriores
Valêncio Macedo é AIMA (Agente Indígena de Manejo Ambiental) em sua comunidade desde 2018, depois de ter tido experiências de pesquisa na Escola Pamaali e com manejo de peixes. Essa notícia será integrada em um texto mais extenso do autor, reunindo suas observações e registros sobre os ciclos de vida dos últimos três anos, que aparecerá no próximo número da Aru, revista de pesquisa intercultural da Bacia do Rio Negro, que está em fase final de preparação, a ser lançada em outubro.
Leia o depoimento:

Em junho de 2025, enfrentamos pela segunda vez uma grande enchente em nossa comunidade (Urumutum Lago, no Baixo Rio Ayari, que é o principal afluente do Rio Içana). Em 2014, neste mesmo mês, ocorreu outra grande enchente. Agora, após onze anos, essa enchente teve ainda mais impacto, com o nível das águas superando em mais de 50 centímetros a marca de 2014, alagando parte das casas (seis casas, incluindo a minha) e das roças. Em 2014, as roças não alagaram como aconteceu dessa vez. Se o rio subisse mais um palmo de altura, a comunidade ia alagar toda.
A enchente atingiu seis roças de três famílias, de Atilio Campos Mateus, Arlindo Macedo e Cleto Lopes Macedo. Eram roças maduras e roças novas, em desenvolvimento. Entre as comunidades vizinhas à nossa, Camarão, Foz do Miriti, Tucunaré Lago, Cará Igarapé, Santana, São Joaquim, também sofreram com o alagamento de roças.
Os quintais das casas também ficaram inundados, onde temos várias plantações comestíveis: banana, açaí-do-Pará, açaí-do-igapó, Ingá-de-metro, pupunha, abacaxi, pimenta, alho, cebolinha, limão, cupuaçu, umari, abacate, coco, goiaba, manga, caju e plantas medicinais, que não podemos perder. Duas roças de abacaxi alagaram na área da comunidade. Uma muda de açaí-do-pará demora cinco anos para começar a frutificar e uma muda de abacaxi ou banana, um ano. São as plantas que precisam de tempo para se recuperar, e nós, donos dessas plantas, não podemos fazer nada para salvá-las. Justamente quando as plantações dos quintais estavam se recuperando do alagamento de 2014 e já estávamos começando a consumir algumas frutas, perdemos novamente.


O rio cresceu e por um mês ficou parado, até final de junho, daí baixou pouco a pouco até chegar no nível normal. Com essa demora, as plantações começaram a morrer, já que não podem passar muito tempo dentro d’água, não são como as plantas do igapó, que não morrem. Na enchente, a água do rio torna-se bastante suja e os quintais alagados ficam cheios de lodo (motoowhaa) e algas (molewa), que estragam as plantações e mudas das plantas.
Na enchente, a água fica contaminada, algumas plantas venenosas morrem nas margens dos igarapés, causando doenças nas pessoas e peixes; os peixes parecem tinguijados e, mortos, pioram a situação. Nesse mês, quando estive na pescaria, observei uma sucuri morta, já que o bicho não teve mais espaço para descansar. Em 2014 morreram jacarés enormes e sapos venenosos no igapó, como novamente dessa vez. Por isso nós bebemos somente água das chuvas, para evitar beber sujeira dos bicho mortos.
Na comunidade construímos um barracão, espaço para os viajantes chegarem a qualquer hora para pernoitar e sair, também a qualquer hora, para que os passageiros tenham facilidade de cuidar da sua canoa e evitar roubos. Esse barracão também foi atingido, ficando com um metro de água.
A minha casa foi a mais impactada, tivemos que nos mudar para a casa da minha irmã Celina e levar todas as nossas coisas. Mas ao menos as minhas roças ficaram distantes da enchente. A casa da minha irmã fica no outro lado do igarapé, a ponte foi no fundo, e tivemos que ir com uma canoinha para chegar na casa, de manhã para ir ao mingau no centro comunitário e para os estudantes irem à escola. Quando o rio começou a baixar, nossas casas estavam com bastante sujeira, ficamos dias limpando o lodo e o limo (molewa) nas paredes das casas, dentro e fora.


Ataque da roças por porcos do mato
Esses eventos extremos sempre afetam a vida da população, mas as dificuldades para os moradores de Urumutum Lago não pararam por aí. No mês de julho começaram os ataques de porcos do mato às roças. Novamente, narro acontecimentos que se passaram pela segunda vez na minha comunidade, registrados no monitoramento que faço como pesquisador AIMA, descrevendo todos os fatos que afetaram a vida da população. Os ataques às roças por porcos do mato – nova espécie de queixada, aapidza panali (falsa queixada), causaram grandes estragos nas roças no entorno da comunidade. O cheiro dos animais é forte e são de tamanho menor (como caititu).

A comunidade está localizada numa paisagem baixa, área de muita campinarana chamada na língua baniwa hamaliani, também com muitos igapós - áreas de floresta alagável. Assim, temos pouco espaço para abrir roças, e as que temos são de pequeno tamanho, feitas em capoeiras novas; não tem mais mata primária neste local, o que era mata primária nossos antepassados derrubaram tudo, os locais tornaram-se capoeiras novas, não capoeira madura, que abrimos para ser local das nossas roças por falta de área melhor. O desenvolvimento de uma roça nas áreas de campinarana leva de três a quatro anos, só então chegam na maturação. Não é como as roças feitas em terra firme, onde o desenvolvimento da maniva é rápido, em um ano.
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Com esse pouco espaço que temos próximo da comunidade, dá apenas para segurar nossa vida com nossa família. Vivemos também com as trocas de farinha por peixes com as pessoas das áreas de terra firme, quando elas trazem em suas viagens. Por isso, quando ocorre este tipo de fato, como agora, somos muito afetados.
Entre 2017 e 2020 enfrentamos pela primeira vez esses animais selvagens que atacaram nossas roças. Chegamos a cercar as roças com varas para proteger dos animais selvagens, mas as varas não resolveram nada, entraram assim mesmo. Caçadores seguiram os bichos nas roças e na mata, mas não resolveu. Eles também andam em noite de luar, o que dificulta o monitoramento das roças. Sumiram depois de atacarem todas as nossas roças.
Antes, não pensávamos em ter que enfrentar esse problema em nossa vida – perdemos todas as nossas roças, nenhuma escapou, e toda a maniva. Em 2020, não tinha sobrado nenhuma roça. Ficamos quatro anos sem roças e vivemos apenas das trocas de peixes por farinha. Durante este período, abrimos novas roças. Agora, em julho de 2025, ocorreram novamente ataques às roças da comunidade, justamente quando as nossas roças estavam recuperadas.
Com este ataque que enfrentamos agora, consultamos conhecedores e conhecedoras sobre casos passados e eles afirmaram que antigamente não tinha este tipo de animal que ataca as roças, como está acontecendo agora. Somente caititus (dzamolito) atacavam as roças do povo das aldeias, mas não tanto assim. Esses porcos que aparecem agora são mais rápidos e atacam tanto as roças maduras como novas.
Mandioca é um alimento usado diariamente nas comunidades – sem farinha e beiju, os peixes e as caças não têm gosto. Por isso que a farinha e o beiju não podem faltar nas nossas casas e não podemos segurar as nossas vidas só com as frutas.
Ataques de porcos do mato
O surgimento das “falsas queixadas” foi relatado pela primeira vez em 2018 por moradores da Comunidade Urumutum Lago. Entretanto, o fenômeno dos ataques massivo das roças pelos porcos do mato também afeta outras diversas comunidades da área de igapó do Alto Rio Negro desde 2015.
Pesquisadores indígenas associam esses comportamentos à falta de frutos nas florestas causada por alterações no ciclo reprodutivo das plantas em decorrência da privação hídrica durante longos períodos de seca severa. Seus efeitos são refletidos nas dinâmicas da fauna ao longo do ano.
O cenário apresenta um desafio para a segurança alimentar das comunidades locais e revela sinais de mudanças ambientais e climáticas. Na perspectiva cosmológica Baniwa, o aumento das pragas também está relacionado à ausência de pajés, responsáveis por proteger as roças por meio de benzimentos.
Tal relato evidencia como os povos indígenas interpretam e respondem às “mudanças mais-que-climáticas”, que combinam impactos ambientais, sociais e espirituais na Amazônia.
Saiba mais na publicação de Natalia Pimenta e Valêncio Macedo na Revista Aru, volume 4.