Encontro celebrou os dez anos da Enciclopédia de Antropologia e a trajetória de três projetos de enciclopédias digitais na preservação e difusão do conhecimento
Para celebrar os dez anos da Enciclopédia de Antropologia (EA) do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP), no dia 29 de maio, foi realizada a mesa-redonda Enciclopédias digitais em ação: artesanias, tecnologias, colaborações. O evento, organizado pelo Laboratório Etnográfico de Estudos Tecnológicos e Digitais (Letec) da USP, destacou três experiências de enciclopédias digitais para uma troca sobre a produção destes projetos – a Enciclopédia Povos Indígenas no Brasil, do Instituto Socioambiental (ISA), foi uma delas juntamente com a Bérose, encyclopédie internationale des histoires de l’anthropologie e a Wikipedia.
Na mesa, estiveram presentes as professoras Fernanda A. Peixoto (USP) e Carolina Parreiras (LETEC/USP), além dos pesquisadores André S. Bailão (EA);Tatiane M. Klein (PIB/ISA); e Isabela Tosta (Labjor/Unicamp). Sediado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, o debate abordou as diferentes formas de produzir, a autoria e produção coletiva dos verbetes, os usos e as transformações enfrentadas pelos projetos ao longo do tempo e as novas tecnologias de inteligência artificial.
Online desde 1997, a Enciclopédia dos Povos Indígenas no Brasil é um projeto pioneiro que disponibiliza informações sobre os povos e a temática indígena em mais de 220 verbetes escritos por diversos colaboradores, não indígenas e indígenas. Tatiane Klein, atual editora responsável, resgatou a história do projeto que, segundo ela, tem rastros analógicos que datam mais de 40 anos atrás e envolvem um trabalho feito por várias pessoas ao longo dos anos, sob os auspícios de seus criadores: Beto Ricardo e Fany Ricardo, antropóloga que também esteve presente no evento.
Parte dessa história é contada no longa-metragem ‘Mapear Mundos’, cujo trailer foi exibido durante a mesa-redonda. O filme, a partir de imagens e vídeos do acervo histórico do ISA e testemunhos, retrata a trajetória dessa pesquisa-movimento sobre o Brasil indígena, além da luta travada pelos fundadores do ISA e por povos e organizações indígenas, como a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), pela garantia dos direitos indígenas na Constituição de 1988.
Tatiane Klein conta que, no período entre o fim da ditadura militar e a redemocratização do país, as informações sobre povos indígenas e suas terras eram escassas, o que levou Fany e Beto Ricardo a construírem uma rede de pessoas colaboradoras, que respondiam fichas de levantamento com os dados sobre as comunidades que visitavam.
Esses dados reunidos pelo Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi) deram origem a uma série de publicações impressas que apresentavam os povos indígenas por áreas culturais, e o Aconteceu, que mais tarde seria continuada pelo ISA, com a série de livros Povos Indígenas no Brasil. Acesse todas as edições aqui!

“De certa forma, esse projeto de pesquisa tão longevo articula a academia, a sociedade civil, organizações indígenas, movimento indígena e hoje pesquisadores indígenas que estão na universidade num grande objetivo de ‘colocar os povos indígenas no mapa’”, afirmou, citando a frase cunhada por Beto Ricardo nos anos 1980.
Confira “Uma enciclopédia nos trópicos – memórias de um socioambientalista”, livro de Beto Ricardo e Ricardo Arnt.
Tatiane lembra que, em 2027, o site completará 30 anos: “Esperamos seguir construindo soluções colaborativas que ajudem a promover a autoria indígena e a responder às novas configurações da nossa rede de colaboradores”, finalizou.

Projetos em diálogo
A Enciclopédia de Antropologia, que organizou a mesa-redonda em comemoração ao seu décimo aniversário, é um projeto criado pelo Departamento de Antropologia da USP que conta com verbetes sobre autores, obras, conceitos, correntes, subcampos e instituições da Antropologia. Sua criação aconteceu a partir de uma discussão coletiva entre alunos e professores de transformar os trabalhos finais em verbetes disponíveis para o grande público.
“Ela tem essa cara da sala de aula, que está sempre se transformando a partir das ideias que são discutidas na sala de aula, dos autores e textos que estão sendo lidos conjuntamente, a partir dos próprios temas de pesquisa das pessoas. Então ela não tem exatamente aquela cara de enciclopédia clássica em que se fazia uma encomenda de assuntos que eram considerados obrigatórios pelos editores e coordenadores das enciclopédias” explicou André Bailão, antropólogo e um dos coordenadores do projeto.
A professora Fernanda A. Peixoto, que também coordena o projeto e integra a enciclopédia Bérose, destaca que a EA funciona como uma espécie de ateliê de escrita. “Para os nossos alunos treinarem também uma nova modalidade de escrita e pensarem para quem eles estão escrevendo. Então tem caráter de formação do autor e da autora”.
Segundo a docente, a Bérose, por sua vez, é um projeto de origem francesa que tem buscado uma alcançar uma face mais mundial e principalmente fazer “proliferar histórias da antropologia, com uma ideia de mapeamento do que se faz Japão, na Itália, na Espanha, no Brasil, nos países europeus”, exemplifica. “Ela encomenda textos, mas recebem também colaborações voluntárias de autores que estejam interessados nas histórias das antropologias”, completa.
Isabela Tosta, do Labjor/Unicamp, trouxe à mesa de debate a experiência com a Editatona Antropológica, uma oficina de criação e edição de verbetes de antropologia na Wikipédia – uma enciclopédia online colaborativa em que qualquer pessoa pode criar uma conta e editar. “E nisso reside seu grande poder, porque ela atende à democratização de conhecimento”, destaca.
Coordenada pela professora Carolina Parreiras, essa Editatona aconteceu em novembro de 2024 e enfocou os trabalhos na construção e aprimoramento de verbetes de mulheres antropólogas – pouco representadas entre os conteúdos sobre pesquisadores da área. Ela explica que a motivação era, além de criar conteúdos que sejam ao mesmo tempo acadêmicos e acessíveis ao grande público, “a ideia era tentar colocar encontrar quais são os silêncios, quais são os verbetes que faltam, quais são as categorias que não estão compreendidas ali, de forma que os alunos pudessem compreender como determinados marcadores sociais não são tão contemplados na criação dos verbetes”.
Segundo as pesquisadoras, a oficina foi um grande sucesso, porque as pessoas estavam interessadas em contribuir para a distribuição de conhecimento e para a criação, melhora e a tradução de páginas de conteúdos sobre essas mulheres antropólogas. Como resultado, foram produzidos os verbetes materiais com licenças livres, que os leitores podem ler, compartilhar, copiar ou modificar os conteúdos livremente.
“Eu acho muito importante trazer isso à tona porque são iniciativas que não visam lucro, que não visam algoritmização. Então, a gente está na contra-mão da produção de conhecimento e de como ele vem sendo colocado na nossa contemporaneidade”, defendeu Isabela Tosta.
Sobre o uso da inteligência artificial, Carolina Parreiras trouxe reflexões sobre a possibilidade de que os verbetes disponibilizados na Wikipedia, por exemplo, sirvam como base de dados para treinamento dos modelos de inteligência artificial, ajudando a combater a questão dos vieses de gênero e raça. “A gente tem um problema não só no modelo de programação das plataformas, mas também nas bases de dados que temos acessíveis, inclusive para criar conhecimento e com a inteligência artificial, isso é potencializado”, apontou.
O evento também contou com a participação da Enciclopédia Itaú Cultural e com a presença do público da XIX Semana de Ciências Sociais da USP, "Ciências sociais: para quem? Trajetória, currículo e realidade no Brasil", que aconteceu entre os dias 26 e 30 de maio de 2025.