Painel Amazônia Quilombola revela subnotificação de territórios e mostra que territórios quilombolas, com 92% de preservação, são decisivos para conter a crise climática
O Instituto Socioambiental (ISA) e a Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) apresentaram, nesta terça-feira (18), na Zona Azul da COP30, o painel Amazônia Quilombola, que revelou os resultados do maior levantamento já realizado sobre a presença quilombola na Amazônia Legal.
Acesse a pesquisa completa: Amazônia Quilombola: Ampliando a Cartografia sobre os Quilombos na Amazônia Legal.
O mapeamento colaborativo identificou 632 territórios quilombolas na região, número 280% maior do que o registrado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Os dados confirmam o papel central dessas áreas na preservação da floresta amazônica: 92% da vegetação nativa permanece conservada. Entre 1985 e 2022, os territórios quilombolas perderam apenas 4,7% da cobertura florestal original, contra 17% nas áreas privadas.
A pesquisa também mostra a distribuição dos territórios. Maranhão e Pará concentram o maior número, com 64% e 25%, respectivamente. Em extensão, o Pará lidera com 1,4 milhão de hectares, seguido pelo Amazonas, com 753,4 mil hectares (20%), e pelo Tocantins, com 607,9 mil hectares (17%).
No total, foram identificadas 2.494 “quilombos” ou comunidades quilombolas, sendo 287 não registrados em nenhuma base pública. Segundo a metodologia usada, os quilombos são indicados no mapa com um ponto, compreendendo áreas de habitação, agricultura, extrativismo, pesca etc. Já o território quilombola reúne um ou mais quilombos, tem um perímetro definido por algum procedimento oficial ou mapeamento autônomo dos quilombolas e é representado por um polígono.
“Pelo menos 27% das comunidades quilombolas do Brasil estão na Amazônia Legal, um dado que desmonta a interpretação racista segundo a qual não existem corpos negros na Amazônia”, afirmou Davi Pereira, consultor sênior da Tenure Facility, no evento na COP.
Para ele, os resultados demonstram que a titulação é determinante para garantir a proteção da floresta: “A base científica da pesquisa mostra que, quando você titula um território quilombola, a proteção da área é garantida. Se essa é a COP da implementação, então é hora de reconhecer e implementar os direitos das comunidades quilombolas e das demais populações tradicionais”.
Segundo os dados da pesquisa, nos territórios apenas autodeclarados e sem certificação da Fundação Cultural Palmares (FCP), a taxa de proteção da cobertura florestal é 45% menor que a observada nos territórios titulados e 34% inferior à dos territórios não titulados. A perda de floresta ao longo da série histórica analisada é 400% maior nessas áreas, evidenciando sua maior vulnerabilidade à pressão fundiária e ambiental.
Biko Rodrigues, coordenador da Conaq, reforçou que a luta quilombola é também por reconhecimento político no âmbito das negociações climáticas. Ele destacou que o Estado brasileiro precisa reconhecer a política quilombola como parte da agenda e que a COP30 não pode encerrar sem afirmar a população afrodescendente como sujeito de direito nesse sentido.
“É fundamental sairmos da COP com esse reconhecimento. Não podemos voltar para casa sem isso”, afirmou, defendendo que esse avanço se traduza também em acesso aos mecanismos de financiamento climático e em políticas que considerem o papel dos quilombos na preservação ambiental.
A urgência da proposta ganha força diante de críticas recentes do Geledés – Instituto da Mulher Negra, que denunciou que União Europeia, Reino Unido e Austrália bloquearam a menção a afrodescendentes no Plano de Ação de Gênero da conferência, numa posição que o instituto classifica como reflexo de uma “lógica colonial” histórica nas negociações climáticas.
Metodologia participativa
O projeto foi construído em parceria com coordenações estaduais da Conaq e lideranças quilombolas, e envolveu oficinas de validação realizadas nas comunidades, garantindo precisão de dados inédita.
“Esse trabalho também é uma forma de contrapor um processo de colonização, em que a produção de informação não valoriza o conhecimento das comunidades. O ISA atua há mais de 30 anos com povos indígenas, populações tradicionais e quilombolas de forma coletiva e parceira”, disse Milene Maia, coordenadora de Política e Direito da organização.
Maia também chamou atenção para um episódio que revela como barreiras institucionais seguem limitando a presença quilombola em espaços decisórios. Ela relatou a ausência da geógrafa e assessora técnica da Malungu, Daniele Bendelac, que não conseguiu acessar a Zona Azul da COP30 devido à falta de papel para emissão de passaporte na sede da Polícia Federal em Belém. “É uma situação absurda e inaceitável. Mais uma vez vemos como práticas de exclusão marcam episódios de racismo institucional”, afirmou.
A pesquisa consolidou, pela primeira vez, dados de diferentes bases oficiais e comunitárias em um único mapeamento, validado por 112 representantes quilombolas ao longo de dois meses, em oficinas e reuniões realizadas em seis estados: Amazonas, Pará, Maranhão, Amapá, Tocantins e Mato Grosso. Representantes dos quilombos participaram das oficinas, contribuindo para refinar e detalhar as informações sobre seus territórios.
Francisco Chagas, assessor técnico da Conaq, destacou que o projeto só se sustenta porque segue o método definido pelas próprias comunidades. Para ele, esse deve ser o padrão para qualquer política pública voltada a territórios quilombolas. “Estamos dizendo ao Estado brasileiro que qualquer trabalho com territórios quilombolas precisa seguir essa linha do tempo, com inserção e validação das comunidades. Não podemos aceitar trabalhos genéricos, os racistas já fazem isso”.
Como destacou Antonio Oviedo, pesquisador do ISA, a atualização cartográfica deve subsidiar políticas públicas, aperfeiçoar bases como o Censo do IBGE e orientar ações de regularização fundiária. “Superar a invisibilidade cartográfica é o primeiro passo para garantir direitos, fortalecer a cidadania e reconhecer o papel dos quilombolas na proteção da floresta e do clima”, ressaltou.
O projeto terá continuidade nos próximos anos, com o compromisso de ampliar e aprimorar as informações reunidas. “A dispersão de dados e a multiplicidade de metodologias usadas por órgãos públicos como Incra, IBGE, FCP e institutos de terras estaduais dificultam há décadas a produção de números precisos sobre os territórios quilombolas. Ao reunir e validar informações de forma integrada e participativa, a iniciativa cria uma base sólida para melhorar políticas públicas e enfrentar essa lacuna histórica”, completa Oviedo.
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