Para lideranças, indicação da “Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira” é reconhecimento tardio, mas importante
Reconhecido como Patrimônio Cultural Brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) desde 2018, o Sistema Agrícola Tradicional das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira (SP) obteve agora o reconhecimento simbólico do Governo do Estado de São Paulo.
O ato de valorização se deu a partir da indicação da Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira para a edição 2023 do Prêmio Governador do Estado de São Paulo, do qual foi finalista na categoria Patrimônio Cultural.
Dona Leonila Pontes, liderança do Quilombo Abobral Margem Esquerda, localizado no município de Eldorado, foi quem representou as 19 comunidades quilombolas que fazem parte do patrimônio reconhecido na cerimônia de premiação, ocorrida na cidade de São Paulo, onde transitou com desconfiança e ceticismo pelos salões do suntuoso Palácio dos Bandeirantes.
Às entrevistas que concedeu enquanto única representante da região do Vale do Ribeira entre os finalistas do Prêmio, Leonila explicou com clareza que não acreditava que a Feira sairia com o troféu, levando em consideração as diversas manifestações do racismo institucional que atravessam todas as relações dos aparelhos estatais com as comunidades quilombolas da região.
No entanto, afirmou reconhecer a representatividade do reconhecimento, por parte do Governo de São Paulo, da Feira de Troca de Sementes e Mudas como uma manifestação cultural das comunidades quilombolas e também como estratégia de salvaguarda do Sistema Agrícola Tradicional Quilombola que reúne conhecimentos que remontam a sua ancestralidade. “Um povo sem cultura é um povo sem história”, afirma Dona Leonila.
Para ela, a ocasião ainda teve uma importância para a região como um todo, que é tão apartada do restante do Estado. “Para mim foi importante porque, pelo menos, tivemos um representante aqui, já que o Vale do Ribeira é tão esquecido. Quando venho a São Paulo por alguma razão e falo que moro ali, ninguém sabe onde é.”
Assessora técnica do Instituto Socioambiental (ISA), Raquel Pasinato também compreende o momento a partir do olhar do reconhecimento. “É um projeto de 15 anos de história construído pelas comunidades quilombolas, comunidades negras rurais de uma região do Estado de São Paulo com um Índice de Desenvolvimento Humano muito baixo, mas que tem essa riqueza de patrimônio cultural e que, finalmente, pela primeira vez, o Governo do Estado consegue reconhecer e valorizar de alguma forma”.
O Prêmio Governador do Estado de São Paulo foi criado ainda nos anos de 1950 com a proposta de valorizar e incentivar a cultura paulista e hoje está sob a tutela da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas.
O que as comunidades quilombolas do Vale do Ribeira aguardam agora é que este reconhecimento se materialize em políticas públicas, ações afirmativas e em uma máquina estatal que se retire do papel de opressora e assuma sua função de promotora de cidadania.
Há cerca de 30 anos, quilombos da região aguardam por titulações que não avançam mesmo sem impeditivo burocrático. Onde territórios ocupados secularmente são sobrepostos por Unidades de Conservação que dificultam a produção de alimento e a geração de renda para o bem viver das famílias. E, finalmente, onde modos tradicionais de vida são violentamente contestados pela força policial. Tratam-se de ações de apagamento e violência que denotam o racismo institucional que permeia o aparelho estatal brasileiro.
Sobre a Feira
A Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira teve início em 2008 a partir de uma demanda dos agricultores para manutenção das variedades agrícolas que estavam se perdendo em função das restrições da legislação ambiental para a feitura das roças.
Assim, a Feira se tornou um momento para a troca de sementes e para a circulação de espécies entre os territórios, ou seja, uma ferramenta de celebração e manutenção de uma cultura secular.
Mas para além das trocas e da comercialização de produtos, a Feira celebra encontros, reencontros e afetos, trazendo apresentações de manifestações culturais tradicionais das comunidades da região.
A cada ano, um momento é reservado para a discussão, com a sociedade civil organizada e com o poder público, acerca das demandas e necessidades existentes nos territórios, muitas vezes negligenciadas pelo Estado, se tornando também um espaço de luta e resistência.
Em 2023, na 14ª edição do evento, os participantes discutiram a criminalização das práticas tradicionais e as dificuldades para obter licenças para cultivos perenes. Confira os registros!