RegularizAgro, lançado pelo Governo Bolsonaro, privilegia imóveis rurais de uso individual e ignora contribuição dos quilombolas na proteção da vegetação e no desenvolvimento agropecuário do Brasil
Reportagem atualizada em 24/5/2022
Passados 134 anos do fim da escravização, ainda há muitos desafios para que as populações quilombolas sejam reconhecidas e seus territórios regularizados. A abolição formal e inconclusa fez com que alguns desses direitos fossem estabelecidos, como o direito à terra aos quilombolas, conforme consta no artigo 68 da Constituição, mas que não são garantidos na prática.
Há 10 anos, foi instituído o Novo Código Florestal, pela Lei 12.651/2012, que determina normas gerais sobre proteção da vegetação nativa. Embora a comunidade quilombola seja responsável por proteger parte significativa de mata nativa do país, segundo dados da plataforma MapBiomas, isso não é garantia de conseguir fazer uso ou conseguir demarcação de seu território.
Para garantir que qualquer território em área rural seja regularizado ambientalmente, o Código Florestal determina que seja feita uma inscrição no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (Sicar). Entretanto, o processo de Cadastro Ambiental Rural (CAR) dos territórios coletivos de populações tradicionais segue repleto de morosidade e violações de direitos. Enquanto mais de 6,5 milhões de imóveis rurais possuem cadastro, apenas 3.418 inscrições de povos e comunidades tradicionais (PCT) constam na base do Sicar.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima que hoje existam 5.972 quilombos distribuídos em 1.672 municípios em 24 estados do país - apenas Acre e Roraima não possuem quilombos. Ou seja, até o momento, 30% das comunidades quilombolas do Brasil constam no Sicar, mas com processos em andamento.
Em meio a uma série de dificuldades encaradas por quilombolas, o governo federal, por meio do Decreto 11.015/2022, de março deste ano, instituiu o Plano Nacional de Regularização Ambiental de Imóveis Rurais, (RegularizAgro), que pensa em medidas para avançar o processo de regularização ambiental rural em todo o país.
O plano facilitaria o cadastro de territórios diversos no Sicar, incluindo os quilombolas, mas, na prática, o foco é especificamente nos imóveis rurais, que fazem o uso individual da terra. O referido plano do governo federal entende por gestão territorial apenas a atuação do agronegócio brasileiro e ignora a contribuição dos povos e populações tradicionais para a proteção da vegetação e até mesmo para o desenvolvimento agropecuário do Brasil.
Dificuldades encontradas
O Decreto não menciona o segmento do CAR para povos e populações tradicionais, que, de acordo com Código Florestal, é feito de forma diferenciada e deve ser apoiado pelo poder público para que as inscrições sejam feitas. Também não é mencionada a forma como lidar com as sobreposições entre os imóveis rurais e os territórios de uso coletivo, como Territórios Quilombolas, Terras Indígenas e Unidades de Conservação.
“Nós não recebemos informação do governo federal e dos estados de como fazer o CAR e, por isso, muitos quilombolas têm medo de fazer o cadastro de forma coletiva e optam por fazer de forma individual”, destacou Francisco Chagas, do Quilombo Caboclo (PI) e membro da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq).
Além das dificuldades que a própria comunidade encontra no preenchimento dos dados do sistema, há ainda o fato de que nem mesmo as instituições estaduais e empresas privadas que atuam com a elaboração do CAR têm conhecimento do módulo PCT e no seu cadastramento como território de uso coletivo. Diante da falta de conhecimento, a possibilidade de se cadastrar uma terra coletiva como imóvel rural é bastante grande. Além disso, uma série de direitos são violados, entre eles, o direito ao uso da terra como comunidade tradicional.
É necessário, então, que haja um diálogo entre comunidades quilombolas, órgãos federais, secretarias estaduais de meio ambiente e institutos de terras para que não se tenha uma violação do Código Florestal e dos direitos dos povos e comunidades tradicionais.
De acordo com o Código Florestal, povos e comunidades tradicionais têm o direito de fazer o uso sustentável da área que ocupam, como é o caso do manejo de roças tradicionais, desde que não descaracterizem a vegetação existente. Quando um quilombo é inscrito no sistema no segmento de imóvel rural e não como PCT, o coletivo fica impossibilitado de utilizar a sua área desta forma. Assim, há um processo de apagamento de outras formas de uso e ocupação do território rural brasileiro para além do uso feito pelo agronegócio em seus imóveis rurais.
“Se o Estado não tem a abertura de uma aba de PCT para cadastrar os quilombos como território de uso coletivo, essas comunidades não estão sendo pensadas dentro do escopo de inclusão pelo Estado. Precisamos fazer um debate com esses estados para entender qual foi e qual é a dificuldade para que possamos garantir o cadastro dos nossos quilombos dentro do Sicar”, observou Chagas.
Sobreposições de inscrições
Por priorizar imóveis rurais, o decreto não menciona problemas relacionados a territórios de uso comunitário, como é o caso de ocupações tradicionais. Uma dessas questões são as sobreposições, quando os registros de imóveis rurais estão localizados em cima de territórios de povos e comunidades tradicionais e, ainda assim, são cadastrados no Sicar como imóveis privados e não como parte do território de uso comunitário.
De 435 territórios quilombolas registrados na base do Incra, 379 apresentam sobreposição com 9.439 registros de imóveis rurais. Essa sobreposição soma 1,57 milhões de hectares e ameaça 60% da área desses territórios.
Das 33 comunidades do Vale do Ribeira em São Paulo, 29 foram formalmente apoiadas pelo Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), órgão responsável pelas políticas agrária e fundiária no estado e foram inscritas no CAR. E todas as reconhecidas possuem sobreposições com imóveis rurais, totalizando 393 sobreposições, como destaca nota técnica feita pelo Instituto Socioambiental (ISA) e Conaq.
No total, são mais de 33 mil hectares de áreas com sobreposição nos quilombos. Em 14 comunidades, a área de sobreposição acumulada ocupa 50% ou mais do território e em alguns casos, como Bombas e Peropava, as sobreposições de imóveis rurais individuais superaram a área dos quilombos. O quilombo de Poça, por exemplo, possui 35 sobreposições de imóveis rurais registradas dentro de seu território.