Oficina realizada pela Conaq discutiu política de gestão territorial em parceria com o ISA e o Ministério da Igualdade Racial e apoio do Banco Mundial
Passo crucial na luta pela regularização e proteção dos territórios quilombolas, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), em parceria com o ISA e o Ministério da Igualdade Racial (MIR), promoveu nesta quarta-feira (15), em Brasília, uma oficina com mais de 60 lideranças quilombolas de todo o país para debater a implementação da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental Quilombola (PNGTAQ). O evento teve apoio do Banco Mundial.
Participaram do evento representantes do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), da Fundação Palmares, do Ministério da Cultura (MC), do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e da Defensoria Pública da União (DPU).
A oficina marca o início de uma série de encontros que serão realizados nos 24 estados brasileiros com registros oficiais de comunidades quilombolas, com o objetivo de instruí-las sobre a Política. A programação faz parte da 2ª edição do 'Aquilombar - Ancestralizando o Futuro', maior evento do movimento quilombola no Brasil, que acontece nesta quinta-feira (16) em Brasília.
A PNGTAQ, assinada pelo presidente Lula no Dia da Consciência Negra em 2023, foi instituída após dez anos de construção e intensa mobilização do movimento quilombola. A política, desenvolvida em colaboração com diversas lideranças quilombolas e ministérios do governo, visa a proteção e gestão ambiental dos territórios quilombolas.
Apesar da conquista, o movimento quilombola aguarda há seis meses a formação do Comitê Gestor da PNGTAQ, responsável por planejar, coordenar, articular, monitorar e avaliar a execução da política. A implementação do comitê é uma demanda política importante para o movimento.
De acordo com Claudia Pinho, do MMA, o governo deve lançar o edital de convocação para composição do Comitê no próximo mês. “Assim que o Comitê Gestor estiver implementado, o primeiro ato é organizar um plano integrado de gestão ambiental e territorial”, garantiu Pinho.
A instância terá representações de seis ministérios e de cinco associações quilombolas regionais e uma nacional, escolhidas via eleição. Pelo governo, farão parte do Comitê o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), Ministério da Educação (MEC), MC, MDA, MMA e MIR.
“Ao instituir a PNGTAQ o governo brasileiro reafirma o compromisso com a proteção do direito das comunidades quilombolas, reconhecendo sua contribuição essencial para a conservação da biodiversidade e desenvolvimento sustentável do país”, afirmou Edel Moraes, secretária de Povos e Comunidades Tradicionais do MMA. “O nosso desafio é fazer efetivamente a política pública, então nós precisamos de orçamento”.
Claudia Pinho, representante do MMA, e Fabiano Campelo, do MIR, reafirmaram o compromisso do governo com a implementação da Política e comentaram sobre os desafios financeiros para sua execução. “A preocupação é que a política não exista apenas no Decreto, ela precisa ser implementada”, frisou Campelo. “Para isso, precisamos que a política seja financiada, e o orçamento ainda é insuficiente para todos os territórios quilombolas no Brasil”.
Campelo apresentou as estratégias de financiamento da PNGTAQ:
Fundo Amazônia - O governo vai promover uma chamada pública para projetos de Planos de Gestão Territorial e Ambiental Quilombola (PGTAQs) nos territórios da Amazônia Legal, para financiamento na elaboração dos planos locais e sua implementação inicial;
Banco Mundial - Fonte de financiamento para os territórios fora da Amazônia legal;
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) - Projeto de cooperação técnica para monitoramento da implementação da PNGTAQ, mapeamento e diagnóstico, além da promoção de capacitações e materiais para facilitar a execução da política;
Apoio à implementação do CAR Quilombola - Projeto a ser apresentado para o Fundo Amazônia para apoio à implementação do Cadastro Ambiental Rural (CAR) quilombola a partir de metodologia que fortaleça as comunidades no cadastramento e implementação do cadastro.
Durante a oficina, foi destacada a importância da transversalidade das políticas públicas e da proteção dos territórios quilombolas para a eficácia das ações governamentais. Antônio Criolo, diretor do Departamento de Reconhecimento, Proteção de Territórios Tradicionais e Etnodesenvolvimento do MDA, enfatizou a necessidade de garantir o reconhecimento e a titulação dos territórios quilombolas como base para qualquer política pública eficaz.
Paula Balduino de Melo, representante do MIR, comentou sobre a preparação de uma incidência nos processos fundiários parados há muitos anos no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e destacou a recente destinação, pelo Governo Federal, de 57 mil hectares de terras públicas para a regularização de territórios quilombolas.
Francisco Chagas, pesquisador e membro da Conaq, ressaltou a urgência de discutir o racismo estrutural e a necessidade de inverter a lógica colonialista em relação à regularização dos territórios quilombolas. “‘Regularizar’ território quilombola está errado. Ele não é irregular. Precisamos garantir que a vida continue ali em abundância. Irregular é quem ocupa esses territórios. Precisamos inverter essa lógica”, afirmou.
“O Brasil é um país racista, preconceituoso. Não querem que os quilombolas deem um grito de liberdade. A prova é a morte de Mãe Bernadete. É importante que a gente leve para as trincheiras estas parcerias, para quebrar as correntes do racismo deste país tão difícil”, completou Chagas.
Ivanilde, do Quilombo do Rosa, no Amapá, emocionou os participantes ao chamar a atenção dos representantes do governo para a necessidade urgente de assistência básica aos quilombos. "No meu quilombo não tem assistência médica, não tem escola, não tem água potável. Pedimos moradias dignas no Programa Minha Casa Minha Vida, o que a gente quer é ‘fazejamento’", desabafou.
Professora pós-graduada em docência do ensino superior e neuropsicopedagogia, Ivanilde só teve a oportunidade de estudar porque se mudou para Macapá com a mãe aos 12 anos. “Passei por muita dificuldades em Macapá e depois eu voltei para o meu Quilombo com o conhecimento que eu tenho. Eu tenho que fazer alguma coisa para mudar a realidade do meu povo”, disse emocionada.
Ela destacou as dificuldades enfrentadas no Quilombo do Rosa, que mesmo muito próximo à zona urbana, não recebe políticas públicas essenciais, como a educação. "Nós temos esse direito, nós somos capazes, sim. Nós temos a inteligência de concorrer de igual para igual com todos, mas o mundo é desigual com a gente”, ressaltou. “Ele é desigual na sala de aula, ele é desigual em vários espaços. Quando eu chego e digo que não sei mexer em computação, foi porque eu aprimorei os meus conhecimentos em outras coisas que estavam faltando dentro do meu quilombo".
Cadastro Ambiental Rural (CAR)
Chagas também criticou as dificuldades trazidas pelo CAR (instrumento nacional de registro de imóveis rurais) para o reconhecimento das comunidades quilombolas, que devem ser inscritas na modalidade “povos e comunidades tradicionais” (CAR-PCT), mas têm recebido orientações incorretas de empresas terceirizadas ou mesmo dos órgãos estaduais de meio ambiente, que orientam sua inscrição nas categorias “imóveis rurais” (CAR-IRU) e “assentamentos” (CAR-AST).
“O próprio estado usa suas estruturas para dizer que o CAR coletivo é errado, que não pode e vai atrapalhar a vida dos quilombolas. Essa é a lógica do processo de escravização do país”, criticou Chagas, da Conaq. “Se formos fazer uma análise do tempo, o CAR mais atrapalhou do que ajudou, porque a nossa lógica de relação com a terra é diferente de um CAR que pensa a lógica do mercado. A gente pensa a vida em torno do seio do nosso território”, ressalta.
Alguns estados sequer disponibilizam o sistema eletrônico para inscrição do CAR de povos e comunidades tradicionais, excluindo as comunidades quilombolas dessa política pública. Raquel Pasinato, assessora técnica do ISA, lembra que o CAR é oriundo da reformulação do Código Florestal Brasileiro, em 2012, e “não considerou as comunidades tradicionais, não pensou nos territórios coletivos e trouxe um monte de problemas".
Pressões e ameaças
Francisco Chagas, da Conaq, e Antonio Oviedo, pesquisador do ISA, apresentaram o estudo lançado pelas duas organizações, que apontou que mais de 98% dos territórios quilombolas do Brasil estão ameaçados por obras de infraestrutura, requerimentos minerários e sobreposição de imóveis rurais (CAR-IRU).
“É urgente que o poder público cancele os pedidos minerários e de infraestrutura nestes territórios”, afirmou Oviedo. “Fizeram com as terras indígenas, precisam fazer a mesma coisa com os territórios quilombolas. E com o CAR a mesma coisa, cancelar os que estão sobrepostos”. Oviedo ressaltou ainda que o licenciamento ambiental de obras de infraestrutura deve respeitar o direito à consulta livre, prévia e informada das comunidades quilombolas.
Francisco Chagas alertou sobre impactos imateriais decorrentes das intervenções nos territórios quilombolas. “O problema é que o impacto imaterial não é previsto na legislação que discute os impactos ambientais. Quando as empresas vêm, elas não dizem sobre os impactos irreversíveis. Nosso griôs [líderes espirituais e guardiões da cultura quilombola] estão morrendo de depressão, de banzeira, de tristeza. Qual o valor que paga isso? Isso é irreparável”, lamentou.
Ronaldo dos Santos, do Ministério da Igualdade Racial, encerrou o dia de debates sobre a PNGTAQ destacando a necessidade de fortalecer a agenda dentro do governo. "Na medida que formos ganhando corações e mentes e os primeiros PGTAQs acontecerem na prática, isso vai ganhar a consolidação necessária. Queremos daqui a alguns anos comemorar o sucesso dessa política, que vai marcar a nossa história", afirmou.