Durante o encontro, coletores de sementes florestais trocaram experiências com visitantes e avançaram na formalização de uma cooperativa
Após dois anos afastados devido à pandemia, quilombolas coletores da Rede de Sementes do Vale do Ribeira reuniram-se no Quilombo Ivaporunduva, no município de Eldorado, para encontro anual entre 3 e 5 de maio. O momento também foi de celebração: além de marcar os cinco anos de existência da rede, proporcionou a criação de novos acordos para o grupo.
Juntaram-se coletores dos quilombos André Lopes, Bombas, Maria Rosa e Nhunguara, técnicos que atuam com sementes em diversos campos, parceiros e apoiadores. Também compareceram membros de comunidades interessadas em começar a coleta de sementes, como dos quilombos São Pedro e Ivaporunduva.
A reunião aconteceu no mês em que se celebra o Dia da Mata Atlântica e reforçou o pacto pela restauração do bioma. Segundo a ONG SOS Mata Atlântica, entre 2020 e 2021, uma área equivalente a 20 mil campos de futebol foram desmatados. Justamente nesses dois anos, quilombolas do Vale do Ribeira fizeram a sua maior coleta de sementes até o momento, totalizando 2,1 toneladas, o que possibilitou a restauração de até 60 hectares de áreas degradadas.
“Em 2017, o grupo coletou 40kg. Hoje, tem quilombola que sozinho coleta 40kg”, comemorou Juliano Nascimento, assessor do Programa Vale do Ribeira do Instituto Socioambiental (ISA). A rede começou com 12 quilombolas do Nhunguara e hoje conta com 42, de quatro comunidades. E floresceu rápido: já foram coletados 2.610kg de sementes, possibilitando a restauração de cerca de 74,5 hectares de áreas degradadas.
“Quando se fala de 42 coletores, estamos falando de 42 famílias, porque o trabalho não envolve apenas quem participa das atividades da rede. Nas casas, está a mulher e a filha ajudando a limpar, o genro sugerindo um dia para coletar – é um trabalho coletivo”, observou.
Um dos destaques dos resultados da rede é a geração de renda para as quilombolas. Acompanhando os participantes, o assessor técnico percebeu que, quando as mulheres recebem o dinheiro da coleta, conseguem fazer uma melhor gestão do dinheiro.
Elas investem de forma coletiva, comprando itens para a casa ou pagando o tratamento médico de um familiar, enquanto boa parte dos homens gasta o dinheiro para si.
Nilza Pereira de Moraes Oliveira, do quilombo André Lopes, conta que comprou uma geladeira e colocou um forro no teto de sua casa utilizando apenas o dinheiro que conseguiu com as sementes. “Antes, o meu marido falava que eu andava à toa pelo meio do mato. E vendo o que eu consegui comprar com o dinheiro das sementes ele até se animou em coletar também”, comentou, com um sorriso.
Troca de conhecimentos
O primeiro dia de encontro foi aberto ao público e contou com a participação de técnicos que também atuam com a restauração ecológica. Eduardo Malta, biólogo do ISA e assessor técnico do Redário, e Edézio Miranda, engenheiro florestal da iniciativa Caminho das Sementes, compartilharam suas experiências.
"Mais importante do que se falar de valores e rentabilidade, é pensar em quanta diversidade, cor e mãos têm por trás desse trabalho todo. É isso que é importante de se falar", destacou Malta após saber a evolução da Rede ao longo desses cinco anos, valorizando o crescimento da iniciativa e disposição de seus participantes.
Quilombolas também tiveram a oportunidade de conhecer parceiros como Jaques Tornisielo, biólogo encarregado de reflorestamento na Reserva Legado das Águas, em Juquitiba (SP). Em fevereiro, as sementes do Vale do Ribeira foram plantadas em uma área de cinco hectares na reserva. “Estou do outro lado, agora acompanhando o crescimento do plantio que foi feito recentemente com sementes de vocês e é importante conhecer quem são as pessoas que fazem parte dessa iniciativa tão relevante”, afirmou.
Outro momento importante foi a apresentação da professora Elza Alves Corrêa, que atua na área de Produção e Tecnologia de Sementes na Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus Registro. A Faculdade de Agronomia e a Rede de Sementes desenvolvem um trabalho desde 2019 com a análise das sementes produzidas pela rede. Hoje, o laboratório faz análise para determinar a pureza, a germinação, o teor de água e peso dos lotes coletados.
“Quando as sementes chegam ao laboratório, avaliamos o metabolismo e quando elas vão ‘acordar’. Algumas demoram mais tempo, então a forma de armazená-las é diferente e isso é bem importante”, contou a professora.
Os resultados chamaram a atenção dos presentes, como Omelina M. dos Santos França, do quilombo André Lopes. “Vendo o trabalho de vocês, quero ir aonde vocês fazem os estudos para ver as sementes”, disse.
Além da análise das espécies realizada na Unesp/Registro, a antropóloga Bianca Cruz Magdalena contou um pouco da sua pesquisa de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR). A sua pesquisa mostra o quanto os saberes quilombolas - em especial os que atuam com a coleta de sementes - é relevante para a conservação da Mata Atlântica.
“O tempo da floresta é diferente do tempo do mundo e os quilombolas puderam nos contar sobre os ciclos do que se planta, se cuida, se colhe”, destacou Magdalena durante a sua apresentação. Embora os estudos tenham começado recentemente, ela acompanha o trabalho da Rede de Sementes de perto desde 2020, ouvindo e aprendendo com coletores e coletoras das quatro comunidades.
“Essa é uma forma de valorizar o trabalho feito por vocês, que há anos mantém essa área conservada e possibilitam que outros locais possam ser restaurados com essas sementes que vocês coletam aqui”, destacou a autora.
Combinados para 2022
No encontro, quilombolas deram um passo adiante na formalização da rede e decidiram transformá-la em uma cooperativa. Em junho os quilombolas vão fechar detalhes do estatuto, coordenação e conselho fiscal que vai acompanhar o trabalho a partir da nova etapa. Desta forma, a rede passa a ter mais autonomia e os quilombolas vão poder atuar mais de perto na comercialização e na administração, conduzida por Nascimento.
“Determinar que o trabalho de vocês vai se dar a partir de uma cooperativa nos ajuda a entender também quem de fora pode fazer parte da Rede”, salientou o advogado do ISA Fernando Prioste. “Vocês vão ter um estatuto e essas decisões vão partir principalmente de vocês”, observou Prioste, que tem acompanhado o processo de formalização da iniciativa.
O estatuto vem sendo construído de forma coletiva durante reuniões nas comunidades para que as pessoas possam opinar e indicar nomes para os cargos da diretoria antes que todo o grupo possa votar.
Outro ponto debatido pelo grupo foi a entrada de novos integrantes, como quilombolas de outras comunidades e outros povos e comunidades tradicionais do Vale do Ribeira.
"Se estamos todos no Vale e fazemos a gestão do território cuidando da paisagem, coletando sementes sem precisar derrubar árvores, faz sentido que os indígenas, por exemplo, também façam parte, desde que eles sigam a organização do regimento interno de suas associações e o estatuto da rede", argumentou Maria Tereza Vieira, coletora do Quilombo Nhunguara.
Nos cinco anos da Rede de Sementes do Vale do Ribeira, germinaram novas alianças e horizontes. A Mata Atlântica e os quilombos agradecem.