Impactos no noroeste do Amazonas atingem serviços essenciais, com mudança de horário de atendimento em postos de saúde e escolas. Cidade passa por racionamento.
Na segunda-feira (16/10), dia em que o Rio Negro atingiu seu nível mais baixo em 120 anos de medição em Manaus, parte dos moradores de São Gabriel da Cachoeira (AM) acordou sem energia elétrica. E a estação seca está apenas começando na região.
São Gabriel da Cachoeira é a terceira cidade mais indígena do país, e o racionamento de energia já atinge serviços essenciais para a população. Na manhã desta terça-feira (17), um cartaz em frente à Unidade Básica de Saúde (UBS) no bairro Praia informava sobre a mudança do horário de funcionamento por causa do racionamento. Escolas precisaram alterar seus horários devido à falta do abastecimento de energia e ao calor excessivo.
A cidade corre risco de ficar sem fornecimento de energia. Na noite de 18 de outubro, autoridades se reuniram no Fórum da cidade para discutir a questão. Foi informado que a cidade tem combustível para mais 4 dias, ou seja, até o dia 22 de outubro, mantendo o racionamento. A balsa com o combustível tem previsão de chegada apenas para o dia 23, mas com o nível do rio baixo, a viagem pode demorar mais.
Com a chegada da balsa, a situação pode se normalizar por alguns dias, entretanto o cenário de incerteza sobre o abastecimento de combustível continua, pois o período da seca vai até o início de 2024, o que pode piorar as condições de navegabilidade.
São Gabriel é abastecida por uma termelétrica. Normalmente, são utilizados 44 mil litros de diesel por dia para gerar 8 megawatts. Com o racionamento, estão sendo gerados 4,2 megawatts/dia, com uso aproximado de 25 mil litros de diesel/dia. Os cortes temporários por região da cidade vêm se intensificando.
Em nota, a Amazonas Energia explicou que a VP Flexgen, produtora independente de energia responsável pela geração do insumo no município, informou no domingo (15) sobre a dificuldade de recebimento de combustível que abastece a termelétrica. “A VP Flexgen comunicou ainda que adotou as medidas necessárias junto ao fornecedor de combustível, mas que o agravamento dos efeitos da estiagem afetou de forma severa as operações em função das dificuldades de navegação e logística do transporte pelo Rio Negro”, diz o informe.
Moradores argumentam que a empresa tem condições de se programar para evitar o racionamento. A população de São Gabriel da Cachoeira enfrenta também problemas no abastecimento de água, dificuldade para encontrar determinadas mercadorias, aumento dos preços, problemas na navegabilidade do rio e altas temperaturas. Indígenas ainda relatam perda de roças, solo quente e sensação de água fervendo no rio.
“Estamos acostumados com as cheias e as secas do rio, mas agora está tudo diferente. Até a água mudou, a quentura mudou. Até o sol mudou muito, a quentura é diferente de antigamente. Ninguém regula mais o que vai acontecer”, afirmou a indígena Cecília da Silva, do povo Tukano, que desde a década de 1980 mantém comércio na beira do Rio Negro, na região do Porto Queiroz Galvão, de onde acompanha mudanças do clima.
Na manhã de terça-feira, em um dos postos de combustível no Porto Queiroz Galvão, era possível ver vários carotes (tambores) deixados lá por consumidores. O combustível tinha sido vendido, mas não foi possível entregar o produto também por falta de energia.
Com o bote parado ao lado do posto flutuante, o indígena Tarcísio Saldanha, povo Tariano, aguardava para abastecer e seguir viagem para Urubuquara, no distrito de Iauaretê, Alto Rio Uaupés. “Na minha região, lá para dezembro e janeiro é seco, seco. Esse ano parece que vai ser mais seco ainda. Ainda falta muito tempo de verão”, diz.
Para chegar a Urubuquara, ele precisa passar pela Cachoeira de Ipanoré. Esse trecho, devido às corredeiras, não é navegável: é necessário retirar o bote da água e transportá-lo em um caminhão em trecho de estrada até outra parte do rio. Na seca, esse processo é dificultado, pois entre o rio e a estrada aparece um barranco.
Conhecido como Joaquim 90, o comerciante Joaquim Henrique Uchôa vende gelo na sua balsa, no Porto Queiroz Galvão. Mas não está conseguindo encontrar o produto para entregar aos clientes. “Sem energia, não há fabricação”, explica.
Ele mantém uma balsa que faz o trecho São Gabriel da Cachoeira – Distrito de Iauaretê. A embarcação realizou o trajeto de ida, mas não se sabe se conseguirá voltar, o que depende das condições de navegação. Para medir o nível do rio, ele improvisou um medidor. “Choveu um pouco, mas o rio está parado”, comenta Joaquim.
As poucas chuvas que estão atingindo a região não estão sendo suficientes para alterar o nível do rio, conforme a observação dos moradores. Os dados mostram que o Rio Negro continua secando. Em São Gabriel da Cachoeira, o nível baixou de 602 cm para 508 cm entre os dias 5 e 13 de outubro, conforme boletim divulgado no dia 16 de outubro (confira o boletim completo abaixo).
Na principal orla da cidade, a praia de areia branca avança sobre o rio, com muitas pedras expostas. Um dos marcadores para a seca é a travessia para a Ilha da Juíza. Em 2017, durante a estiagem, as pessoas conseguiam atravessar para a ilha passando pelas pedras. Agora, já é quase possível fazer esse mesmo caminho. Além disso, para acessar a cidade pela orla principal, os indígenas precisam arrastar o bote sobre um canal de areia que se formou no rio.
A comerciante Marilene Ferreira de Oliveira, povo Baré, mora no fim da avenida da orla, em um trecho que costuma alagar durante as cheias. Em frente à sua casa e à sua mercearia, ela e o marido construíram uma estrutura suspensa para poderem trabalhar mesmo com o rio cheio. Mas estão tendo que lidar com a seca e a falta de algumas mercadorias.
“Está faltando frango e carne. O nosso fornecedor só está vendendo até dois fardos de refrigerante. Tudo está com preço alto, o arroz, o macarrão, tudo subiu”, diz.
Em São Gabriel da Cachoeira – onde só se chega de barco ou avião –, o abastecimento de mercadorias é feito principalmente por balsas. Mas as embarcações grandes não estão conseguindo desembarcar no Porto de Camanaus, de onde os produtos são transportados em caminhões até o centro comercial.
As balsas têm ficado estacionadas em um trecho abaixo do porto, e para buscar os mantimentos são utilizados botes pequenos, o que encarece a logística e, consequentemente, os produtos. Arroz, macarrão e até a água subiram de preço. O galão de 20 litros, que era vendido a R$ 12, agora é encontrado com o preço entre R$ 16 e R$ 20. No domingo, a balsa conseguiu chegar a Camanaus.
Além dos problemas de energia e abastecimento de mercadorias, os moradores também enfrentam a falta de água. A Secretaria Municipal de Obras, Transporte e Serviços Urbanos (Semob) divulgou nota pedindo que as pessoas economizem água e comunicou que o fornecimento pode ter interrupções devido à estiagem.
O informe alerta ainda que o problema pode atingir as bicas d’água, devido ao rebaixamento do lençol freático nos poços artesianos. Em São Gabriel da Cachoeira, muitas pessoas utilizam as bicas espalhadas em alguns pontos do município.
Nas redes sociais, os indígenas alertam sobre os impactos da estiagem
Liderança de Santa Maria, no distrito de Iauaretê, Edvaldo de Jesus gravou um vídeo pedindo o apoio dos órgãos públicos, pois o poço de água, que é utilizado para abastecer a comunidade, secou. Na comunidade de Buia Igarapé, na região do Rio Içana, o professor Cleto Hermes, povo Baniwa, também registrou imagens mostrando o fogo avançando em áreas de roças já plantadas.
Arivaldo Matias, do povo Baré, morador da comunidade Yamado, relatou que devido às altas temperaturas não há como trabalhar as roças. Além disso, ele relata que a terra está quente, prejudicando as plantações de maniva e as pimenteiras.
O pescador Antônio Carlos Azevedo, Baré, conta que há impactos também para os peixes. “Está mais difícil pescar, os peixes estão sumindo. A água tá muito quente. Com a chuva que deu, esfriou um pouco”, relata.
A liderança Yanomami José Mário Góes divulgou vídeo na quinta-feira (12), mostrando foco de incêndio na Serra do Opota, considerada sagrada e localizada na comunidade de Maturacá, no Território Yanomami no Amazonas.
Ele relata que um raio atingiu a serra e provocou o fogo, que foi apagado na madrugada de sábado após uma chuva atingir a região. “Estamos falando com nossos pajés. É urgente que venha água para molhar o chão, para molhar a floresta. Cada vez mais o rio está secando. Estamos preocupados”, relatou.
Estiagem atípica tem relação com a crise climática
Dados do Boletim de Monitoramento Hidrometeorológico da Amazônia Ocidental – Serviço Geológico do Brasil (CPRM) indicam que o rio Negro está mantendo o processo de descida em São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos, onde os níveis registrados estão abaixo da faixa da normalidade.
O Rio Negro em Manaus atingiu a cota de 13,59 m em 16 de outubro, superando a vazante de 2010 (13,63 m), apresentando descidas diárias na ordem de 10 cm. Em 24 de outubro de 2019, o rio chegou a 13,63 metros. Até então essa era considerada a seca mais severa desde o início das medições, em 1902.
Ainda conforme o CPRM, no período de 12 de setembro a 11 de outubro de 2023, permanece o quadro de chuvas abaixo da média predominando na região. A causa da queda do índice de chuva é o fenômeno El Niño, intensificado pelos impactos da emergência climática.
“Os fenômenos El Niño (aquecimento das águas superficiais do Oceano Pacífico) e aquecimento anômalo das águas superficiais do Atlântico Tropical Norte continuam atuando, favorecendo a condição de subsidência (movimento vertical do ar de cima para baixo) sobre grande parte da região inibindo ou reduzindo a formação de nuvens e por consequência redução dos volumes de chuva observados”, diz o relatório do CPRM.