Apesar de reconhecer a inconstitucionalidade da tese, voto do relator Gilmar Mendes cria prazos e exceções que podem enfraquecer a proteção territorial das Terras Indígenas
O Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria nesta quarta-feira (17/12) pela inconstitucionalidade do marco temporal para a demarcação de Terras Indígenas (TIs). A maioria foi consolidada com o voto do ministro Alexandre de Moraes, que acompanhou o relator, ministro Gilmar Mendes. O entendimento já havia sido seguido, em maior ou menor medida, pelos ministros Flávio Dino, Cristiano Zanin, Luiz Fux e José Antonio Dias Toffoli.
Apesar do reconhecimento da inconstitucionalidade da tese, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e organizações aliadas alertam que o voto do relator introduz novas regras, prazos e exceções que podem, na prática, fragilizar a proteção constitucional dos territórios tradicionalmente ocupados pelos povos indígenas.
Para a Apib, o problema não está apenas no afastamento formal do marco temporal, mas nos efeitos concretos que o voto pode produzir sobre os processos de demarcação. “A Apib tem uma profunda preocupação com relação aos impactos da decisão proferida pelo Ministro Gilmar Mendes no futuro das Terras Indígenas, pois apesar da rejeição do Marco Temporal, o voto apresentou inúmeros entraves para os processos administrativos de demarcação”, afirma Ricardo Terena, advogado da organização.
A Apib protocolou memoriais no STF no âmbito do julgamento que analisa a constitucionalidade da Lei nº 14.701/2023, que tentou reintroduzir o marco temporal. O julgamento ocorre em plenário virtual até essa quinta-feira (18) e reúne a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 87 e as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 7582, 7583 e 7586.
Nos documentos apresentados à Corte, as entidades apontam dez pontos de retrocesso identificados no voto do relator. Entre os principais alertas está a possibilidade de o Estado oferecer “terras equivalentes” quando alegar impossibilidade de demarcação. Para o movimento indígena, a proposta retoma a lógica histórica de remoções forçadas, substituindo territórios tradicionais por áreas alternativas, muitas vezes distantes, inadequadas ou sem vínculo histórico e cultural com as comunidades afetadas.
Outro ponto crítico é a criação de prazos que podem inviabilizar novas demarcações. Pela proposta, após um ano do trânsito em julgado, pedidos de reconhecimento territorial deixariam de resultar em demarcação e passariam, como regra, para desapropriação por interesse social. Segundo as entidades, essa lógica esvazia o direito originário, que não depende de prazos nem de ato concessivo do Estado.
Os memoriais também alertam para a criminalização das retomadas indígenas, prática recorrente em contextos em que o poder público demora décadas para concluir processos demarcatórios. O voto prevê restrições e remoções que podem transformar comunidades inteiras em alvos de ações policiais, agravando conflitos fundiários já marcados por violência, como ocorre com os povos Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul.
Há ainda preocupação com a fragilização dos laudos antropológicos, base técnica da demarcação de Terras Indígenas. A aplicação de regras típicas do processo judicial a estudos administrativos pode colocar sob suspeita o trabalho técnico de antropólogos da Funai e abrir espaço para disputas políticas sobre critérios que deveriam ser essencialmente técnicos.
Segundo Renata Vieira, advogada do Instituto Socioambiental (ISA), “uma das preocupações tem sido o reconhecimento no voto dos ministros de que houve um suposto consenso na mesa de conciliação criada pelo gabinete do Ministro Gilmar Mendes, sendo que a Apib se retirou do acordo e o produto que está sendo homologado nos votos se refere a direitos que são indisponíveis, não podem ser objeto de negociação e não foi consensuado entre as partes”.
Os documentos apresentados ao STF reafirmam o entendimento já consolidado pela própria Corte no Tema 1031 no julgamento do RE 1017365, segundo o qual os direitos territoriais indígenas, previstos no artigo 231 da Constituição, são direitos fundamentais e cláusulas pétreas, não podendo ser reduzidos nem por leis ordinárias nem por emendas constitucionais.
Nesse contexto, ganham destaque as divergências apresentadas pelos ministros Flávio Dino, Cristiano Zanin e Dias Toffoli. Dino sustenta que o direito indígena ao território integra o núcleo intangível da Constituição e não pode ser flexibilizado por soluções administrativas. Ele também rejeita a aplicação de regras do processo judicial aos laudos antropológicos e defende que, em casos de sobreposição entre TIs e Unidades de Conservação, deve prevalecer o usufruto indígena. Zanin acompanha essa posição e reforça o caráter de cláusula pétrea dos direitos territoriais.
Pedido ao STF
Diante desse cenário, a Apib e as entidades subscritoras pedem que o STF consolide um entendimento que afaste definitivamente o marco temporal e qualquer mecanismo que produza efeitos equivalentes, reafirmando o que já foi decidido no Tema 1031. O movimento indígena também solicita que o julgamento seja realizado de forma conjunta e, preferencialmente, presencial, incluindo os embargos de declaração pendentes, para garantir segurança jurídica e evitar decisões fragmentadas.
Para a Apib, o julgamento não trata apenas de uma controvérsia jurídica. “O que está em jogo é se a Constituição será cumprida integralmente ou se os direitos originários dos povos indígenas continuarão sendo condicionados à conveniência administrativa e orçamentária do Estado”, destacam os memoriais.
O documento é subscrito por 14 entidades, entre elas a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), os partidos PSOL e Rede Sustentabilidade, além de organizações de reconhecida atuação em direitos humanos e na agenda socioambiental, como o Instituto Socioambiental (ISA), a Comissão Arns, a Conectas Direitos Humanos, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Observatório do Clima, o Greenpeace Brasil, o WWF-Brasil, o Instituto Alana, o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), a Associação das Comunidades Indígenas Tapeba de Caucaia e a Associação de Juízas e Juízes pela Democracia (AJD).
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