#ElasQueLutam! Liderança do Quilombo Bombas e coletora da Rede de Sementes do Vale do Ribeira conduz luta por estrada
** Esse conteúdo faz parte da série 'O Caminho Pro Quilombo', que traz reportagens sobre os desafios e as belezas da vida no Quilombo Bombas. Acompanhe o lançamento dia 31 de julho!
Desde a infância, Suzana Pedroso do Carmo vive no Território Quilombola de Bombas, no município de Iporanga (SP), com o pai, João Fortes do Carmo, a mãe e três irmãos e ali se criou rodeada por um dos maiores maciços de Mata Atlântica do país. “Aqui cê não tem barulho, é só sossego, tudo natural. O jeito de você levantar de manhã e ver as coisas é completamente diferente. Aqui a gente se sente longe de perigo”.
A partir do convívio com os mais velhos e com os outros moradores do quilombo, colecionou saberes ancestrais sobre o manejo do solo, além de práticas culturais centenárias, que hoje ajudam no sustento da família e na preservação do bioma. “A gente vai aprendendo aos poucos, o dia a dia ensina a fazer bastante coisa. Fazer fogão, fazer pilão, essas coisas que a gente usa aqui no sítio”.
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Há tempos, o trabalho na roça divide espaço com a criação de animais, o cuidado com os filhos e a coleta de sementes. “Sempre gostei de catar semente, catava pra guardar e para as crianças brincar com elas, principalmente o Guapuruvu, que a criançada jogava pra cima”.
Há cerca de três anos, uma oportunidade permitiu transformar seu conhecimento sobre as árvores da região em alternativa de renda. Hoje, Suzana é uma dos cerca de 60 coletores quilombolas da Rede de Sementes do Vale do Ribeira, uma iniciativa que contribui com a proteção da Mata Atlântica e o trabalho das comunidades tradicionais.
“Eu sei onde tem pé de árvore e cada um tem a época certa de coletar. Se eu tô no caminho [de casa], eu tô coletando. Se eu vou passando o caminho da roça e acho uma semente interessante, já vou coletando”.
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Nas andanças pelo território em busca das sementes, tem a companhia do filho caçula, que aprende, desde cedo, sobre o cuidado com a floresta. “Ele também, desde pequenininho já cata semente. Se você for no mato com ele, já vai achando semente no chão. Às vezes nem é de coletar, mas eu incentivo, a criançada gosta”.
Após a coleta, as sementes são separadas e passam por um processo de limpeza. O transporte até a cidade mais próxima é feito por burro, porque a trilha de 10km que dá acesso ao quilombo é precária e estreita.
Em 2015, uma ação judicial determinou que o Estado de São Paulo construísse uma estrada alternativa de acesso ao Quilombo Bombas, porém, oito anos depois, a obra ainda não saiu do papel.
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“Tem que levar no animal, porque nas costas não tem como. A gente sabe também que judia dele, porque cansa, mas a gente não tem outro recurso”.
Em 2022, a comunidade de Bombas entregou mais de 220 Kg de sementes para a Rede de Sementes do Vale do Ribeira. Somente em uma única entrega, feita em março deste ano, 40 kg de sementes foram transportados por burros na trilha.
“Precisa de qualquer coisa na cidade, tem que levar o animal. Se tivesse essa estrada, [ele] não precisava sofrer”.
Além de cansar os animais, a trilha existente coloca em risco a vida dos moradores, sobretudo de grávidas, idosos e crianças. Durante a gravidez, Suzana chegou a levar oito horas para atravessar o caminho. Ao final, percorria ainda outros 5 km a pé para chegar ao posto de saúde da cidade.
Após o parto, precisou ficar hospedada na casa de parentes, porque o esforço excessivo para voltar para casa poderia prejudicar a recuperação no pós-operatório. “Chegava até uma meia altura, as pernas não aguentavam mais. Eu andava um pouquinho e parava. A criança começava a endurecer na barriga, tinha que sentar para descansar”.
Ela também conta que, sem apoio do poder público, os moradores precisam contar uns com os outros para fazer a retirada das gestantes em macas improvisadas com lençóis pela trilha precária. “A minha mãe perdeu a criança faltando 15 dias pra completar oito meses. Deu hemorragia e até ir de casa em casa chamar o povo... quase que ela morreu também”.
Ao relembrar do dia em que uma cobra picou seu filho, disse sentir medo. Para ela, sobreviver no quilombo em situações de emergência é questão de sorte. "A prefeitura não ajuda, é totalmente isolado. Não dá tempo de chegar, sorte que Deus é bom. [...] Quando a cobra mordeu meu filho, liguei pra ambulância e nada. Sorte que minha irmã ficou sabendo e veio buscar".
Educação e titulação territorial quilombola
Na luta pela construção da estrada e na defesa de outros tantos direitos, Suzana é movida pelo cuidado com o futuro das crianças. Em 2018, atuou ativamente na mobilização da comunidade por uma educação quilombola, ancestral e diferenciada, exercida dentro do território tradicional, conforme orientação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola.
“Foi uma luta pra nós. Fomos partir pra justiça pra vir essa aula aqui, do estadual, para as crianças. Eles queriam parar até mesmo o municipal. Daí eu falei ‘a escola aqui, jamais vai ser fechada, porque nós não vamos deixar. Os nossos não vão sair daqui pra estudar na cidade’.”.
Atualmente o Território Quilombola de Bombas possui duas escolas multisseriadas: uma na comunidade Bombas de Baixo e a outra na comunidade Bombas de Cima, separadas por cerca de uma hora e meia de caminhada em trilha íngreme e com atoleiros, o que dificulta o acesso dos professores e alunos, bem como a chegada dos materiais didáticos.
“Conseguimos (a escola) aqui para baixo e só depois lá pra cima. As coisas é feito meio de qualquer jeito. Eu até fiz uma escrita, mandei lá para São Paulo, porque no ano passado, tava chegando no meio do ano e as crianças não tinha livros. Nem do municipal, nem do estadual”.
Aos 37 anos, Suzana percebe a luta por direitos para além de uma conquista única. Para ela, a construção da estrada proporciona muito mais do que um acesso pras pessoas: abre caminho para tantos outros sonhos de uma vida melhor. “Imagina uma estrada aqui, melhorava a escola, [criava] um postinho de saúde no bairro. [...] Tô defendendo o meu direito, o direito dos meus filhos e dos filhos dos outros também”.
Além da construção da estrada, Suzana pede pela titulação definitiva do território e pela desafetação do Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (PETAR), a ele sobreposto. “Eu acredito que se fosse para beneficiar o parque, ou sei lá, até mesmo uma mineradora, eles fazia estrada até por cima das árvores, por debaixo da terra. Eles estão cada vez mais oprimindo nós, para que nós venha a desistir. Só que nós não vai desistir”.
Com uma postura corajosa, reconhece que ainda há muita luta pela frente e diz que não pensa em abrir mão do território tradicional. “Eu gosto daqui, não consigo viver em outro lugar. Aqui a gente se sente livre. Aqui a gente planta nosso feijão, nosso arroz, a rama de mandioca. Aqui posso ter minha horta. O nosso lugar é aqui”.
Esse conteúdo faz parte da série #OCaminhoProQuilombo, que traz reportagens sobre os desafios e as belezas da vida no Quilombo Bombas.
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