Oficina na casa do xamã Davi Kopenawa, na Terra Indígena Yanomami, ensinou técnicas de roteiro, filmagem e edição
Treze comunicadores de quatro comunidades da Terra Indígena Yanomami se reuniram na casa do xamã Davi Kopenawa, na comunidade Watorikɨ, Terra Indígena Yanomami, para aprender a fazer cinema. Uma oficina – ministrada por cineastas, indígenas e antropólogos – ensinou ao longo de 15 dias os participantes a contar as histórias da floresta.
Os comunicadores, com idades entre 13 e 38 anos, aprenderam a manusear equipamentos, técnicas, elaboração de roteiro e storyboard, além de movimentação de câmeras e edição de imagens.
Todas as manhãs, o grupo acordava ao redor das 6h, seguia para o banho no rio e café da manhã. Pouco antes das 08h30, horário de início das atividades, os alunos se reuniam na sala de aula construída com troncos de árvores e com vista para a Serra dos Ventos (ou Watorikɨ, em Yanomami).
O clima mesclava o entusiasmo dos comunicadores com a neblina que apareceu todas as manhãs em razão das chuvas na região do Demini. No primeiro dia, os jovens contaram o que costumam assistir: partidas de futebol, reportagens, filmes e documentários sobre povos indígenas.
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No segundo e terceiro dias, os professores apresentaram técnicas de filmagem e incentivaram os comunicadores a pôr as mãos na massa. Eles gravaram nas trilhas da floresta, no rio em que tomam banho, no xapono (local em que vivem e dormem os Yanomami) e até no Posto de Saúde Indígena.
Depois de uma pausa para o almoço e descanso, todos se reuniam na sala de aula por volta das 14h30 para exibir as filmagens e pontuar o que precisava ser aperfeiçoado. Nestes momentos, as crianças e os mais velhos também aproximavam com curiosidade para observar o desempenho dos alunos.
Colocando sonhos em prática
A antropóloga Marília Senlle coordenou o processo a pedido da Hutukara Associação Yanomami, que desenvolve a formação de comunicadores da maior Terra Indígena do país. Para Senlle, a oficina prepara os indígenas para pôr sonhos em prática e ainda pode ser uma ferramenta para preservar os conhecimentos Yanomami.
“Produzir material audiovisual é uma possibilidade deles estarem falando por si mesmos. Também, é uma oportunidade para conversar com os mais velhos, aprender os conhecimentos e difundir entre eles”, explicou.
Esta é a quarta oficina de comunicação desenvolvida pela Hutukara na Terra Indígena Yanomami, e o cinema foi escolhido como foco a pedido dos próprios indígenas. As duas primeiras ocorreram em 2018 e 2019 com ensino de fotografia e produção de boletins de áudio em Boa Vista, na sede da Hutukara.
No ano seguinte, houve uma pausa em razão da pandemia de Covid-19 e o retorno da formação aconteceu em dezembro de 2021, com a elaboração de produções audiovisuais a partir de celulares.
Desta vez, os comunicadores tiveram acesso a quatro câmeras profissionais com microfones, tripés e fones de ouvido, além de manuais de edição em Yanomae (uma das língua da família Yanomami) e três computadores para edição. Como todo o processo de formação e a produção dos vídeos ocorreu na floresta, o projeto também contemplou dois kits com placas solares para manutenção dos equipamentos.
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“Foi escolhido o Watorikɨ porque é a casa do Davi e também porque é uma oficina audiovisual com a intenção de produzir filmes. Assim, era muito mais interessante poder elaborar a linguagem e as dinâmicas a partir do cotidiano que eles vivem, do que estar na cidade e ter que produzir conteúdos alheios à vivência deles”, afirmou Senlle.
Durante o dia, os alunos recebiam os conteúdos, faziam exercícios práticos e produziam partes de seus curtas. De noite, depois do banho e do jantar, um projetor no Xapono passava filmes, como Macunaíma. Durante as exibições, bancos eram arrastados para perto do projetor e toda a comunidade se reunia diante do ponto que, junto com as fogueiras, iluminava o local.
Todas as atividades foram supervisionadas por Davi. Ele disse estar feliz com a evolução dos comunicadores e que deseja ver filmes que fortaleçam a cultura Yanomami e circulando nos celulares dos jovens. “Os Yanomami aprenderam a fazer filmes entre nós. A nossa luta vai poder ser documentada e mostrada para os não-indígenas para que reconheçam a nossa cultura, o nosso jeito de pensar e toda a nossa luta. Esses filmes serão como flechas para atingir corações com a nossa mensagem”, pontuou.
Técnicas e aprendizados
Da região do Demini, onde está localizada a comunidade Watorikɨ, seis comunicadores participaram da oficina: Edmar Yanomami, Aida Yanomami, Kátia Yanomami, Severo Yanomami, Lindomar Yanomami e Otílio Yanomami. Deles, somente a jovem Aida e Edmar, de 38 anos, que também é xamã, já haviam participado de outras oficinas.
“Eu gostei de aprender a filmar. Vou poder fazer vídeos e até filmes. Depois, eu quero divulgar a minha cultura com isso”, contou Edmar. Ele, com outros garotos da região, trabalhou em um curta sobre as brincadeiras das crianças Yanomami.
Já Aida e Kátia se juntaram a Darysa Yanomami, jovem de 28 anos que vive na região da Missão Catrimani. Darysa participou de todas as oficinas para comunicadores feitas pela Hutukara e integra um grupo de pesquisadores Yanomami. O trio escolheu produzir um curta sobre as tradicionais pinturas com urucum.
“Eu gostei muito de participar desta oficina. A professora Louise ensinou muito bem. Agora, vou poder tentar usar mais a câmera depois dessa oficina. Tudo isso me deixou muito feliz, eu aprendi muito”, comemorou Darysa.
A professora citada por Darysa é a cineasta Louise Botikay, de 44 anos, que trabalha como diretora de fotografia em produções convencionais e produz filmes autorais como Um Filme para Ehuana, produção feita na própria comunidade Watorikɨ em 2017.
“Essa oficina foi um sonho realizado. Eu comecei a pensar nela da última vez em que estive em Watorikɨ. Conversei com o Davi e decidimos que seria importante fazer este trabalho com os comunicadores, então escrevi o projeto junto ao Pedro”, contou Botikay.
O documentarista e antropólogo Pedro Portella, de 47 anos, foi a dupla de Louise para escrever o projeto de oficina. Ele costuma documentar povos indígenas e tem parceria de longa data com Morzaniel Irawari Yanomami, de 42 anos, que é reconhecido como o primeiro cineasta Yanomami e também participou das aulas de cinema para os comunicadores indígenas.
A inspiração de Morzaniel para trabalhar com o audiovisual foram jornalistas que chegavam à Terra Indígena Yanomami para entrevistar Davi. Os comunicadores explicavam que era uma forma de documentar a história, defender os direitos indígenas e apresentar os Yanomami ao mundo.
“Depois, eu tive vontade de fazer as minhas próprias imagens, para mostrar a nossa realidade de indígenas para indígenas. Ensinei um pouco sobre cinema para estes jovens Yanomami e fico muito emocionado, feliz, porque eles vão continuar fazendo esse trabalho e mandar nossa mensagem para os não-indígenas”, afirmou.
A dupla trabalhou nas duas produções mais conhecidas de Morzaniel, que são A Casa dos Espíritos e Curadores da Floresta, ambas exibidas dentro e fora do país.
Assim como Morzaniel, o comunicador Juruna Maxapino Yanomami, de 30 anos, se inspira no jornalismo e sonha em um dia ser reconhecido como repórter na Terra Indígena Yanomami.
Juruna vive na região da Missão Catrimani e participou de todas as oficinas para comunicadores da Hutukara. Ele se juntou a Kennedy Yaripeiro Yanomami, que vive na região do Toototobi, para produzir um filme sobre as plantações feitas por indígenas.
“Os professores ensinam bem, eu aprendi muita coisa sobre foco e enquadramento. Eu gosto de fazer filmes e escolhi como tema o roçado para falar sobre a saúde na Terra Yanomami”, disse Juruna.
A intenção da dupla era explorar a saúde por meio da nutrição mostrando o trabalho que homens e mulheres Yanomami fazem para manter uma produção sustentável na comunidade Watorikɨ.
Para integrar os Yanomami com os Ye’kwana, que também vivem na Terra Indígena Yanomami, um trio da região de Awaris também foi ao Demini para participar da oficina. Jair Magalhães Rocha, Cleber Rui Magalhães Rodrigues e Misael Lopes foram os escolhidos.
Conforme explica Maurício Ye’kwana, diretor da Hutukara, o critério de escolha dos três jovens foi apenas a vontade demonstrada por eles quando a oficina foi anunciada.
Morzaniel confirma: "perguntamos quem tinha interesse. Não usamos nenhum critério além da vontade de fazer. Esse trio se manifestou e os trouxemos à Terra Indígena Yanomami. Eles fizeram um filme sobre a experiência deles e escutaram bastante o Davi”.
Jair Magalhães Rocha, de 22 anos, contou que esta foi a sua segunda oficina e o que o motivou foi porque gosta de comunicação. Ele disse ainda que deseja se tornar jornalista ou cineasta. Assim como os outros dois Ye’kwana, esta foi a sua primeira vez em uma comunidade do povo Yanomami.
“Eu gostei dos montes, da serra e dessa comunidade, que eu só tinha visto por foto. Por isso, decidimos fazer um curta sobre a nossa experiência aqui, contando como chegamos e também uma entrevista com o Davi”, explicou.
A previsão é que todos os filmes produzidos pelos 13 comunicadores indígenas durante a oficina sejam disponibilizados em um canal da Hutukara Associação Yanomami.
De produção em produção, os Yanomami e Ye'kwana vão construindo memória de suas experiências e histórias e registrando a partir de suas perspectivas as "flechas" que contam ao mundo a realidade da Terra Indígena Yanomami.
Na floresta, comunicação e resistência caminham juntas.
A oficina contou com o apoio do Projeto Rumos Comunicadores Indígenas, financiado pelo Itaú Cultural, além do investimento da Rainforest Foundation Noruega e da União Europeia.