Representantes de diversos povos se reuniram em Brasília, durante o ATL, para compartilhar experiências e exaltar o protagonismo indígena na comunicação
“Antes da internet, os nossos povos já se comunicavam. Às vezes, a gente se comunicava espiritualmente. As lideranças se encontravam dessa forma”, conta Alexandre dos Santos, de 48 anos, do povo Pankararu. Há 22 anos, o comunicador indígena percebeu a necessidade de usar as novas tecnologias para fortalecer a luta em defesa dos direitos indígenas, sobretudo para dar protagonismo aos parentes.
“As pessoas nos tratavam como algo folclórico. Isso nos fez compreender a importância da comunicação para que pudéssemos transmitir, nós mesmos, as nossas vozes, os nossos conhecimentos e nossa realidade”, afirma o representante da Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME) .
Alexandre Pankararu e outras lideranças participaram do debate “A importância da comunicação e tecnologia indígena na decolonização, denúncia e luta”, realizado no dia 27 de abril, penúltimo dia do Acampamento Terra Livre (ATL), o maior encontro do movimento indígena do Brasil, em Brasília.
Neste ano, a comunicação do encontro teve como destaques a exibição de filmes feitos por indígenas e o protagonismo das próprias narrativas.
Graciela Guarani, do povo Guarani-Kaiowá, conheceu o mundo do audiovisual a partir da amizade com Alexandre Pankararu. Após fazerem alguns trabalhos juntos, ela atuou como diretora e roteirista em produções como Cidade Invisível, da Netflix, e Falas da Terra, disponível na Globoplay.
A cineasta enxerga nas imagens uma forma de seu povo, da aldeia Jaguapiru, resistir. A comunidade, localizada em Dourados, no Mato Grosso do Sul, já foi alvo de ataques de invasores.
Ainda criança, ela acompanhava a mãe na venda de mandioca na cidade quando percebeu que as propagandas não tinham pessoas que se parecessem com ela ou seus familiares. E assim nasceu o sonho de representar e dar visibilidade aos Guarani-Kaiowá.
Graciela Guarani, 37 anos, conta que, no passado, participou de oficinas, cursos e aprendeu com profissionais de diversas partes do mundo, como Peru, Argentina e Itália. No entanto, não tentou estudar em universidades, pois sentia que era muito jovem e que não saberia se defender do racismo.
Protagonismo indígena
Em 2022, a participação inédita de uma mulher indígena mestre em comunicação no Grupo de Transição de Comunicação do Governo Lula, Ariene Susui , foi um marco no protagonismo indígena para a construção de suas próprias narrativas.
Vangêla Maria Isidoro de Morais, docente da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e orientadora de Ariene Susui, afirma que, mesmo com vagas destinadas especificamente para indígenas e a existência do Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena (Insikiran), um núcleo voltado só para a educação superior indígena, ainda existe uma herança do comportamento colonizador, que desqualifica os conhecimentos tradições indígenas. Segundo a professora, há uma hierarquia de saberes que alimenta a ideia de que a universidade não é um lugar para todos.
“A maneira de ser indígena e de estar na academia ainda traz muitos desafios para todos os atores envolvidos nesse processo de formação e, infelizmente, essa não é uma situação isolada. A universidade deveria ser um dos principais palcos para os encontros de saberes; mas, sem ingenuidade, sabemos que a academia é uma instituição tradicional de forte herança colonial”.
Morais também coordena um grupo de pesquisa sobre o protagonismo dos indígenas de diversas etnias na criação de conteúdos em Roraima. O objetivo é conhecer a diversidade de conteúdos e refletir sobre a forma contra-hegemônica que são produzidos. O trabalho de Ariene foi a pesquisa inaugural do grupo, que surgiu em 2020. A Rede Wakywai (que significa “nossa notícia” na língua Wapichana) é um grupo de comunicadores do Conselho Indígena de Roraima (CIR).
Comunicadores yanomami
Assim como a Rede Wakywai, os Yanomami estão em processo de formação, com apoio do Instituto Socioambiental (ISA) e da Hutukara Associação Yanomami (HAY), para montar o seu próprio núcleo de comunicadores. Entre os jovens Yanomami em formação, estão Aida Harika, de 25 anos, e o xamã Yanomami Edmar Tokorino, de 38 anos.
Eles participaram pela primeira vez do ATL e tiveram a oportunidade de exibir os curtas Uma Mulher Pensando e Pesca com Timbo no cineclube do acampamento.
“Gostei muito da minha primeira participação junto aos meus parentes. Aproveitei para filmar bastante, mas também me senti muito triste com os relatos dos parentes sobre as situações que estão enfrentando em seus territórios”, relata Edmar Tokorino.
Aida e Edmar se inspiram em Morzaniel Ɨramari, primeiro Yanomami a fazer cinema. Ele é autor das produções A Casa dos Espíritos, Curadores da Floresta e A Árvore dos Sonhos, que estreou no mês de abril e venceu o prêmio Melhor Documentário da Competição Brasileira na premiação "É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários".
“Eu me sinto muito feliz em fazer isso e me tornar uma referência para os jovens Yanomami. Assim eles podem se interessar mais e aprender mais. Eu quero que saibam o que estamos fazendo e os jovens continuem lutando pela nossa terra e nossos direitos”, diz Morzaniel.
Comunicadores xinguanos
Também compareceram ao ATL comunicadores da Rede Xingu+. Kunity M. Panará, que vive na Terra Indígena Panará, relatou que há três anos começou a aprender os processos de comunicação.
“Acho importante acompanhar os movimentos, as manifestações e, com o nosso trabalho de comunicação, é possível contar para outros parentes o que está acontecendo fora da nossa Terra Indígena. Assim, deixamos todos atentos”, afirma.
Numa formação realizada na semana anterior ao ATL pela Rede Xingu+, os comunicadores do Xingu criaram uma conta no Instagram. Durante a mobilização, eles produziram conteúdos para informar às suas comunidades sobre o que estava sendo discutido nas plenárias, inclusive, acompanharam a marcha que decretou emergência climática no Brasil.