Na cultura de povos indígenas da região, fenômeno causa o 'repiquete', quando o rio sobe para depois secar novamente; Defesa Civil prevê seca severa no início de 2024
O município de São Gabriel da Cachoeira (AM), no Alto Rio Negro, vive um período de apreensão com o cenário da estiagem que atinge a todo o estado. A população, que já enfrentou racionamento, tem dificuldade de acesso à água e desabastecimento de itens de alimentação. Em alguns sítios na área urbana, os igarapés secaram, dificultando o cuidado das roças.
Do território indígena chega a notícia de que a constelação Boiuaçu – ou Jararaca - ‘caiu’, levando o nível do rio subir. É o chamado repiquete: o rio enche, mas logo em seguida volta a esvaziar. Os conhecedores indicam que as constelações estão associadas a narrativas míticas, assim como a fenômenos e ciclos ambientais.
Mesmo com o repiquete, a Defesa Civil do Estado do Amazonas informou que o rio está com nível abaixo da média para essa época em São Gabriel da Cachoeira. Segundo o órgão, a média para o mês de novembro (período de 1982 a 2023) é entre 700 cm e 900 cm.
As medições do Serviço Geológico do Brasil (SGB – CPRM) indicam que, em 22 de novembro, o Rio Negro no município estava com 610 cm; em 13 de novembro, a cota era de 569 cm. Em 10/11, esse índice estava ainda mais baixo, chegando a 499 cm. Em 6/11, o índice era de 520 cm.
O cenário preocupa a Defesa Civil do Amazonas, pois no alto Rio Negro, historicamente, o período de pico de vazante se concentra nos meses de janeiro e fevereiro.
“Isso leva ao prognóstico de vazante severa no início de 2024 no Alto Rio Negro. Os órgãos públicos estão informados sobre essa situação. O nosso desejo é que o índice de chuva melhore, evitando essa situação. Mas não é esse o prognóstico”, explica o geólogo Igor Jacaúna, do Centro de Monitoramento e Alerta da Defesa Civil do Amazonas.
Segundo o geólogo, há outro agravante. A seca recorde do Rio Negro em São Gabriel da Cachoeira aconteceu em fevereiro de 1992 (o nível chegou a 330 cm) e, no início de novembro de 1991, o nível do rio estava em 706 cm. Ou seja, no começo da estação seca que terminou em 1992 (recorde de mínima), o nível do rio estava em situação melhor que a atual.
Em Manaus, o Rio Negro atingiu a marca de 135,9 cm – a menor desde 1902, quando começou a medição no porto da capital – em 16 de outubro. Na capital, o chamado verão amazônico (período quando chove menos) vai de junho a outubro.
Constelação Boiuaçu
Para alguns povos do Alto Rio Negro, essa é a época da constelação Boiuaçu ou Jararaca cair. O Agente Indígena de Manejo Ambiental (AIMA) Mauro Pedrosa, do povo Tukano, explica que em determinado dia há um forte trovão, ao entardecer. A partir daí, a constelação Boiuaçu cai, ou seja, não fica mais visível no céu.
Com esse movimento, acontece o chamado repiquete, quando o rio enche – levando ao sumiço de peixes e, ao mesmo tempo, acontece a piracema – para depois esvaziar novamente.
E é o que está acontecendo na região. Em 14 de novembro, o comunicador da Rede Wayuri, Rosivaldo Miranda, povo Piratapuya, informou que o nível do Rio Uaupés subiu.
Na semana anterior, ele estava preocupado com a demora da Boiuaçu e com a falta de chuva. Ele mora na comunidade de Açaí-Paraná, no Baixo Uaupés, onde os moradores precisaram furar novos poços para garantir o acesso à água.
Nas redes sociais, a liderança indígena Juvêncio Cardoso, o Dzoodzo Baniwa, também trouxe notícias da cheia do rio. Ele informou que o Rio Ayari começa a ganhar volume. É a enchente chamada de repiquete, que em Baniwa é Khewidapania.
“Esse repiquete deve durar em torno de duas semanas e começará a secar novamente, que será verão de Maalinai (Khewidapani Idzalemi), estiagem prolongado. Este período de Maalinai se estende até meados de janeiro, quando começa outra constelação”, explica.
Em 28 de novembro, o AIMA Roberval Sambrano Pedrosa, do povo Tukano, morador da comunidade de Serra de Mucura (Rio Tiquié), chegou a São Gabriel da Cachoeira. Ele relata que o rio está enchendo, mas explica que a partir de agora começa o chamado Verão de Ingá, com o nível da água voltando a cair. “Esse ano teve a queda da constelação Boiuaçu, mas foi diferente. O rio não encheu muito. Encheu um pouco e voltou a esvaziar”, relata.
Os dados do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) indicam que, de julho a outubro de 2023, choveu 16% abaixo da média no município de São Gabriel da Cachoeira. A meteorologista Deyse Moraes, do Inmet em Brasília, disse que para novembro a previsão é de chuva abaixo da média, com algumas regiões com chuvas dentro da normalidade.
Pesquisadora em geociência do SGB-CPRM, Jussara Cury Maciel informa que o período de estiagem em São Gabriel da Cachoeira tem início em agosto, sendo que o pico da vazante ocorre, na maioria dos casos, em fevereiro.
Durante esse intervalo há subidas relacionadas a precipitações isoladas na região. Os períodos de cheia e vazante na região também estão associados às precipitações da parte norte da bacia, com contribuições das nascentes da Venezuela, e da parte oeste, vindo da Colômbia.
A pesquisadora informa que, em 2023, desde setembro, São Gabriel e Santa Isabel do Rio Negro têm apresentado níveis muito baixos de chuva para o período e, desde outubro, abaixo dos níveis mínimos já registrados, que indicam que a estiagem tem sido severa em toda a Bacia do Amazonas.
Impactos
Os efeitos da estiagem estão sendo sentidos de diversas formas em São Gabriel da Cachoeira. Na área urbana do município – o terceiro com maior concentração da população indígena do país –, os moradores enfrentaram cerca de 20 dias de racionamento, com prejuízos inclusive nos serviços essenciais, como fornecimento de água e funcionamento de escolas.
Entre os dias 19 e 23 de outubro, o racionamento chegou a durar 18 horas ao dia, com pessoas relatando diversos problemas, como dificuldade para dormir devido às altas temperaturas e aos insetos. Sem ar-condicionado ou ventilador, alguns moradores passaram a ficar até mais tarde do lado de fora de suas casas.
Em seguida, entre os dias 24/10 e 3/11, o racionamento passou para 6 horas: três horas em cada parte da cidade, alternadamente. O abastecimento foi garantido para alguns serviços essenciais, como o hospital; a unidade de saúde onde as vacinas são armazenadas; a Caixa Econômica Federal, onde os indígenas acessam os benefícios; e a bomba d 'água que abastece a cidade.
O comitê gestor de crise criado pela prefeitura suspendeu o racionamento em 4/11, mas informou em nota que “o Rio Negro continua em nível crítico para a navegação e, com isso, é muito importante que todos mantenham uma conduta voltada para a economia de energia e água”. Foi informado que o regime de racionamento pode ser acionado novamente dependendo do transporte do combustível.
No dia 13 de novembro, duas balsas com combustível estavam no porto de Camanaus, o principal de São Gabriel da Cachoeira. Uma delas transportava 700 mil litros de gasolina, álcool e diesel para abastecer postos de combustível da cidade. O prático Manoel Ferreira Filho contou que levou 12 dias entre Manaus e São Gabriel da Cachoeira, sendo que normalmente essa viagem dura uma semana.
“Está muito difícil subir o rio. Usamos uma voadeira (pequena embarcação) para ir à frente, verificando em quais locais podemos passar. E não conseguimos navegar à noite”, relata.
A outra embarcação é a balsa Galo da Serra, que transportou 450 mil litros de combustível para abastecer a termelétrica que gera energia para a cidade. Em novembro devem chegar ainda 1,3 milhão de litros de combustível para manter o fornecimento de energia. O diesel está sendo transportado em várias viagens, em embarcações menores que têm condições de navegabilidade no período seco.
Na cidade, o abastecimento de energia é feito por uma termelétrica, que precisa de aproximadamente 44 mil litros de diesel por dia. Como a cidade depende das balsas para o seu abastecimento – inclusive de combustível e alimentos – os serviços ficam prejudicados na época da seca.
Outro impacto é no abastecimento de água. A cena de pessoas buscando água em bicas na cidade de São Gabriel da Cachoeira é comum, já que em algumas regiões não há abastecimento regular de água branca – ou seja, água potável. Chega às casas normalmente a água preta, que vem do rio.
Com a falta de energia, esse movimento se intensificou. Além disso, algumas famílias precisaram andar até o rio para tomar banho.
“Deixamos a pouca água de casa para lavar as vasilhas. Tomamos banho no rio e buscamos água na bica para beber e cozinhar”, conta Marines Narciso, povo Baré, que na noite de 2 de novembro caminhou cerca de 20 minutos da sua casa até a beira do Rio Negro para tomar banho.
Alguns poços estão secando ou ficando com pouca água, gerando filas em alguns pontos.
O Ministério Público do Amazonas (MPAM) informou em seu site, em 6/11, que, por meio da Promotoria de Justiça de São Gabriel da Cachoeira, obteve decisão favorável na Justiça para garantir o fornecimento contínuo de água potável à população local, dando o prazo de um ano para as obras necessárias. Com a ausência da estrutura de saneamento básico, o abastecimento da região é feito por bicas e poços.
Nos mercados, é possível ver muitas prateleiras vazias. O comerciante Manoel Maurício tem um comércio no Centro da cidade, onde vende principalmente verduras, frutas e peixes. Ele precisou desligar as geladeiras e freezers por falta de mercadoria.
“Eu compro entre 200 e 300 volumes por semana, que chegam por balsa. Mas as balsas estão demorando muito e não dá para trazer legumes e frutas, que perdem rapidamente. Estou pegando cerca de 30 volumes por semana, que vem na lancha rápida. Chega uma pouco de tomate, que acaba em poucas horas”, relata.
A comerciante Lenira Reis, que tem um restaurante na cidade, diz que a questão do desabastecimento acontece todos os anos na época da seca. Ela se prepara, fazendo estoque de alguns alimentos.
Mas, em 2023, a estiagem se antecipou, o que a surpreendeu e impediu que ela reforçasse as compras. Agora, ela precisa se esforçar para encontrar ingredientes para fazer as refeições e manter os clientes. “Eu fico indo a vários lugares até comprar todos os ingredientes. Também modifico o cardápio. Já teve vez que eu saí para passear, encontrei algumas verduras, interrompi o passeio para fazer compras e voltar para casa”, relata.
Outros moradores da cidade apontam que esse é um problema crônico, ou seja, o desabastecimento se repete a cada ano, na estação seca. A situação pode se agravar dependendo da intensidade do período da estiagem. Dessa forma, a administração pública poderia se planejar para evitar o racionamento de energia e o desabastecimento de itens.
Em 19 de outubro, moradores chegaram a fazer um protesto em frente ao Fórum do município, onde estavam acontecendo reuniões do grupo de crise, exigindo transparência sobre as ações que estão sendo tomadas. Desde então, o grupo divulga boletins com a situação do abastecimento de energia.
El Niño
Conforme o Serviço Geológico do Brasil (SGB-CPRM) os fenômenos El Niño (aquecimento das águas superficiais do Oceano Pacífico) e aquecimento anômalo das águas superficiais do Atlântico Tropical Norte estão causando a redução das chuvas. O fenômeno vem sendo agravado pela emergência climática.
De acordo com o Boletim do Comitê de Intersetorial de Enfrentamento à Situação de Emergência Ambiental, de 15 de novembro, todos os 62 municípios do Estado estão em situação de emergência, com 598 mil pessoas sendo afetadas.
A Organização Meteorológica Mundial (OMM), ligada à Organização das Nações Unidas, informou em 8 de novembro que o fenômeno El Niño continuará até abril de 2024, antecipando que o próximo ano deve ser ainda mais quente.
Wayuri na cobertura da estiagem
Os comunicadores da Rede Wayuri, que atuam em áreas urbanas e comunidades no Médio e Alto Rio Negro, estão observando os impactos da estiagem e divulgando informações. No Alto Rio Negro, a estação seca se estende até o início de 2024, o que gera preocupação frente ao cenário que se vê em outras regiões do estado.
As informações que vêm de dentro do território indígena podem ser acompanhadas no podcast Wayuri e no Instagram.
Também em uma ação de mobilização e conscientização, a Rede Wayuri está promovendo o Dia D – Rio Negro não é lugar de lixo!
Com a estiagem, uma grande quantidade de lixo apareceu no Porto da Queiroz Galvão, um dos principais da cidade. A comunicadora Juliana Albuquerque, povo Baré, e o comunicador Adelson Ribeiro, povo Tukano, fizeram a foto dos resíduos, que viralizou na cidade e gerou a mobilização.
Houve coleta de lixo e campanha de conscientização nos dias 4 e 11 de novembro, com o recolhimento de 10 toneladas de lixo.