De colar de caramujo a sal de aguapé, feira do Território Indígena do Xingu celebra produção indígena, denuncia ameaças e busca apoio para futuras edições
A artesã Babalu Kuikuro, que vive na Aldeia Yawalapiti, no Território Indígena do Xingu (TIX), é conhecida pelos colares de caramujo - a joia do Xingu - que ela confecciona desde muito jovem. Ela aprendeu a fazer os colares com o seu pai e carrega nas mãos as marcas do ofício: a peça é feita com lâminas delicadas moldadas a partir das conchas de caramujo do Cerrado, que a cada dia estão mais difíceis de serem encontradas.
Tamoã Waurá e sua companheira, Atabuwala Waurá, da Aldeia Piyulaga, no Alto Xingu, são produtores de sal de aguapé, extraído das cinzas do aguapé, planta aquática manejada pelas famílias xinguanas.
Primeiro vem a coleta da planta aquática e, em seguida, acontece o longo processo de secar, cozinhar, desidratar e pilar. O resultado é um sal fino, claro e saboroso. “Esse é um tempero bastante usado com peixe assado e pirão. Pode ser puro ou misturado com pimenta. E é usado no Xingu todo também como remédio”, explica Tamoã. Além dos Waurá, os principais produtores do sal de aguapé são os Aweti e Mehinaku.
Já Kumesiperiru Waurá é produtora de rejés - ou tachos para fazer beiju -, panelas, xícaras e outros utensílios feitos com argila, matéria-prima que leva até cinco horas de caminhada para ser encontrada. O cauxi (esponja de água doce), também usado nos objetos, está cada vez mais raro no Xingu devido às mudanças climáticas. As peças são desejadas por sua beleza e por terem uso antigo e tradicional, sendo ideais para a culinária indígena.

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Os colares de caramujo, o sal de aguapé - delicadamente guardado em embalagem de folhas secas - e a cerâmica Waurá compuseram, junto com outros produtos, um verdadeiro festival de diversidade na 2ª ExpoTix - Feira e Exposição dos Produtos do Território Indígena do Xingu, entre os dias 16 e 19 de setembro, na aldeia Khikatxi, TI Wawi. Este ano, a ExpoTix comemorou também os 30 Anos da Associação Terra Indígena Xingu (ATIX).
O encontro teve a participação de representantes dos 16 povos do TIX e contou com cerca de 700 pessoas, principalmente indígenas. Povos de fora, como os Xavante e Panará, também estiveram presentes. Na parte cultural, aconteceram danças e cantos tradicionais. As apresentações incluíram um desfile de trajes típicos dos povos, com a participação da atriz e influencer Simone Sampaio, e show do DJ Eric Terena. Os comunicadores indígenas da ATIX e da Associação Indígena Kisêdjê (AIK) fizeram a cobertura do evento.
Presidente da ATIX, Ianukulá Kaiabi Suiá considera que a ExpoTix promove a compra e venda de produtos, mas vai muito além. O encontro valoriza a roça e a comida tradicional, promove o intercâmbio entre os povos, fortalece o território e as economias do Xingu, combatendo a visão preconceituosa de que o indígena não produz.
A ATIX já planeja a terceira edição e, para isso, lançou a Carta da 2ª ExpoTix, que denuncia pressões que colocam em risco os modos de vida e produção dos povos do Xingu, desde o agronegócio até a alimentação ultraprocessada. O texto também indica e cobra apoio e políticas públicas que fortaleçam os povos, a cultura e as economias da sociobiodiversidade dos xinguanos.


“Esse nosso projeto mostra que as terras indígenas têm produções que não são conhecidas e precisam ser valorizadas. Estamos dizendo para a sociedade não indígena e até para nós mesmos que os nossos produtos são todos orgânicos e deveriam ser reconhecidos e valorizados no mundo comercial também. Além disso, as nossas manifestações culturais estão fortemente ligadas aos nossos produtos das roças. Não é por acaso que existe a Festa do Pequi, a Festa da Mandioca, a Festa do Milho. Estamos falando de dinheiro, compra e venda, mas o nosso sistema tradicional de troca também permanece, com a realização do Moitará”, disse. O Moitará (troca) é um ritual tradicional de trocas e partilhas.
Produtores que participaram da ExpoTix aprovaram a feira e já se preparam para a próxima edição.
“Achei muito bom. Eu vendi bastante e também fiz muitas trocas. Eu trouxe para casa colar de tucum do pessoal do Baixo Xingu, farinha dos Kisêdjê, cestaria, urucum e também peixe seco. Esses foram os produtos que eu trouxe da ExpoTix”, conta Babalu Kuikuro. Ela também conseguiu a matéria-prima para confeccionar seus colares. Bernardina Xavante, da aldeia Abelhinha, Terra Indígena Sangradouro, encontrou as conchas na sua região, levou para a feira e trocou com Babalu, que entregou miçangas a ela.
Kumesiperiru, a artesã do povo Waurá, também vendeu e trocou peças. Ao fim da feira, levou na sua bagagem farinha Kaiabi, banana Kisêdjê e goiaba da mata para plantar.
Para o produtor Yaiku Tapayuna, da Associação Tapayuna (AIT), outra importância da feira é a troca de experiências. “A importância da feira é cada um conhecer a produção do outro e trocar experiências. Isso é importante para manter nossa cultura, nossa tradição e nossa forma de trabalhar. E isso depende da nossa organização. Na feira, estamos todos animados, mulheres, jovens e os parceiros. A feira é importante e mostra a nossa diversidade cultural e de alimentos”, diz.
Coordenador do Programa Xingu do Instituto Socioambiental (ISA), Roberto Rezende esteve na comemoração dos 30 Anos da ATIX e na ExpoTix. Ele ressaltou a importância da diversidade presente na feira, resultado dos modos de vida e produção dos povos indígenas.
“A gente vê aqui cerâmica, tecidos, cestaria, artesanato, comida, beiju, peixe. Mas há produções que resultam das práticas dos povos do Xingu que não cabem em nenhuma exposição. Enquanto o modelo não indígena de produção não gera diversidade e está causando degradação, o modelo diverso dos povos indígenas está interligado à floresta, que produz água, regula o clima”, explicou. “Então, sempre que alguém disser que os povos indígenas produzem pouco, podemos dizer que produzem muito, inclusive porque também produzem o mais essencial hoje: a regulação do clima e a chuva. Isso está começando a ser discutido como serviço ambiental, que é você remunerar os povos que produzem floresta e que produzem diversidade com esse trabalho", disse.
Assessora do Programa Xingu do ISA, Kátia Ono também ressalta a diversidade da ExpoTix, destacando as matérias-primas - algumas raras - que foram encontradas na feira. Uma delas é a resina usada em flechas e também no artesanato.
Ao circular entre os produtores, ela encontrou ainda artesanato com cabaça e linha; peixe com beiju; sucos de frutas do Cerrado; doce de jatobá com mel; paçoca de amendoim, além do prato tradicional feito com massa de mandioca recheada de peixe e assada na folha de bananeira.


Essa diversidade foi vista durante toda a ExpoTix: milho, amendoim, cará, mandioca, mangaba, goiaba da mata, abacaxi, coco, cana, farinhas de vários tipos, peixe, beiju foram alguns dos alimentos expostos na feira.
Só na banca dos produtores Jamanary Kaiabi e sua companheira Kunhakatu Kaiabi, da Aldeia Guarujá, tinha farinha de peixe, farinha de fazer pirão, quatro tipos de amendoim, três tipos de milho e dois tipos de cará. Mas Jamary alerta: “A gente depende da chuva, que já não acontece mais dentro do calendário tradicional”.
Outro produto de destaque foi o mel. Durante a ExpoTix, a ATIX e o ISA montaram um estande do projeto Mel dos Índios do Xingu. Além do produto, foram expostos informações, fotos e até os equipamentos usados para a produção.
Coordenador de Alternativas Econômica da ATIX, Tariaiup Kayabi informa que o projeto do mel envolve 87 apicultores dos povos Kayabi, Ikpeng, Kisêdjê, Matipu, Kalapalo e Kuikuro. A maior parte da produção é para consumo das famílias e da comunidade.
Ele conta ainda que, no passado, seu povo consumia o mel produzido pelas abelhas nativas e não conhecia a abelha Europa, produtoras do mel do Xingu. “Antes de conhecer, o meu povo tinha medo de comer o mel da abelha Apis, que tem ferrão. Pensava assim: como tem a ferroada, talvez o mel tenha veneno. Mas depois foi conhecendo. Os anciãos disseram que o mel da abelha Apis é parente do mel da abelha nativa e também combate a gripe. E assim valorizaram o mel da abelha Apis”, relata.
Os impactos das mudanças climáticas e do avanço do agronegócio também estão afetando a produção do mel. Queimadas e ataques de tatu-canastra foram alguns dos problemas relatados por Tariaiup ocorridos nos últimos anos. A saída encontrada pelos apicultores foi a adaptação: com a ação de brigadas, os incêndios diminuíram. E, para enfrentar os ataques de animais, o grupo está usando cavaletes mais altos, que deixam as colmeias mais protegidas.

A questão da mudança climática esteve presente em várias das discussões que aconteceram dentro da programação.
“A mudança climática mudou nossos indicadores, que eram o canto do pássaro, o vento, o calor, a umidade. Com essa mudança, de repente vem a chuva. E aí atrapalha o tempo de queima da roça. Agora, a queima da roça dá mais trabalho”, disse Yaiku Tapayuna. Ele levou para a feira artesanato, farinha azeda, farinha de puba, castanha de pequi. Um produto foi destaque: a goiaba da mata, que quase ninguém conhecia.
“Veio o sistema de homem branco e primeiro achamos lindo. Mas dentro do nosso sistema de produção, ninguém coloca veneno. Na nossa tradição, o nosso adubo é a nossa fala. Temos a forma de fazer o canto para adubar a terra”, refletiu.
Na mesa da Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos (Catrapovos), conduzida por Marcelo Martins, articulador territorial do ISA, foram debatidas as políticas públicas de aquisição de alimentos, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Foi trazido também o tema da adaptação, ou seja, medidas que os povos do TIX já estão tomando para se ajustarem às mudanças do clima, entre elas formas de irrigação; manejo do fogo; modos de fazer roça ou de organização das comunidades.
Liderança indígena e ativista, Watatakalu Yawalapiti, diretora de Etnodesenvolvimento Territorial da ATIX, conduziu a roda de conversa das mulheres.
“Estamos na 2ª ExpoTix e não há como não falar das mulheres quando se fala em bioeconomia. Elas cuidam das roças, fazem farinha e polvilho. E repassam esse conhecimento para os filhos e filhas. Os municípios, instituições governamentais e não governamentais precisam olhar para essas mulheres. Este ano vamos receber a COP30 e precisamos olhar para as mulheres que fazem a sustentabilidade dentro dos territórios indígenas”, disse.
Durante o debate, a questão da qualidade da alimentação foi um dos temas de destaque, com a preocupação com o consumo de ultraprocessados trazidos de fora. Consta da Carta da 2ª ExpoTix a ampliação da alimentação tradicional nas escolas e também nas unidades da saúde indígena.


A médica sanitarista Sofia Mendonça, coordenadora do Projeto Xingu da Unifesp, fez uma apresentação indicando a mudança nas doenças que predominam no território, com o avanço de doenças não transmissíveis, como diabetes e hipertensão, muitas vezes ligadas a hábitos alimentares. Ela ressaltou a importância da feira também para saúde, já que valoriza a alimentação tradicional e saudável.
Liderança jovem, Lewaiki Kisêdjê trouxe reflexões sobre a potência das economias indígenas.
“Com esses projetos sustentáveis que a gente tem, podemos mostrar para as pessoas que existe uma economia diferente, não uma economia que destrói tudo, que está matando o nosso planeta. Então, esse é o momento exato de mostrar os nossos produtos da roça, os nossos projetos nos territórios e fazer uma educação para o não indígena, de como preservar, de como manter a floresta em pé. A gente tem a nossa renda, que beneficia a comunidade e os povos. A gente não quer o lucro só pra gente, como o agro quer. Para nós, a sociobioeconomia é isso”, resumiu.
O encontro foi realizado pela ATIX em parceria com a Secel/MT, Governo de Mato Grosso, Ministério da Cultura e Governo Federal, no âmbito do edital Feiras de Economia Criativa e Solidária – Edição Lei Paulo Gustavo, com apoio da Embaixada da França no Brasil, Energisa MT, Funai, Instituto Socioambiental (ISA), Dsei - Xingu, Unifesp (Projeto Xingu), Imaflora, Rede de Sementes do Xingu, Rede Xingu Mais, AIK Produções e Coiab.
Resistência e celebração: ATIX comemora seus 30 anos com cerimônia tradicional
A Associação Terra Indígena Xingu (ATIX) celebrou seus 30 anos de criação com uma grande festa tradicional na aldeia Khikatxi, do povo Kisêdjê. O evento marcou três décadas de luta, resistência e dedicação à preservação da vida e da cultura no Xingu. A solenidade de abertura foi carregada de significado, com o povo Kisêdjê acompanhando a diretoria da ATIX da casa do cacique Kuiussi Suya até o centro da aldeia (Ngá).
Durante a cerimônia, o cacique Kuiussi Suya expressou sua profunda alegria em sediar o encontro, que reuniu representantes de diversos povos: Kuikuro, Wauja, Matipu, Mehinako, Yawalapiti, Kalapalo, Nahukwá, Ikpeng, Awetí, Kamaiurá, Yudjá (Juruna), Kawaiwete (Kaiabi), Trumãi, Kisêdjê e Tapayuna.
Em sua fala, o presidente da ATIX, Ianukulá Kaiabi Suya destacou a mensagem central da celebração, que contou com a presença de parceiros. O secretário executivo do ISA, Rodrigo Junqueira, o coordenador do Programa Xingu, Roberto Rezende, o coordenador-adjunto do Programa Xingu, Ivã Bocchini, e outros membros da equipe estiveram presentes.
"A gente chega nos 30 anos da ATIX com a mensagem principal: 30 anos de luta, 30 anos de resistência. A ATIX consegue mostrar à sociedade não indígena que é possível adotar alguns sistemas de organização do "homem branco" ao seu próprio jeito, preservando e protegendo a instituição e a floresta por muitos anos”, disse Ianuluá Kaiabi Suya.
As celebrações contaram com a presença de ex-presidentes da ATIX e lideranças, entre eles Winti Suya, Mairawe Kaiabi e Tapi Yawalapiti. A celebração incluiu competições tradicionais, como torneio de arco e flecha e corrida, reafirmando a força da tradição dos povos do Xingu.