Edital de Apoio às Iniciativas Comunitárias (AIC) é oportunidade para que indígenas de todas as aldeias do TIX enviem propostas e realizem ações de resgate cultural, alternativas econômicas e soberania alimentar

Na aldeia Samaúma, do povo Kaiabi, os homens não fazem mais as peneiras tradicionais, com seus belos grafismos. O motivo é a falta de arumã, uma espécie de cipó usada pelos antigos para esse tipo de trabalho.
O arumã, assim como outras tradições desse povo, ficou no território tradicional dos Kaiabi, no oeste do Mato Grosso. Na década de 1960, com a expansão dos não indígenas para o Brasil central, eles tiveram que se mudar para o então denominado Parque Indígena do Xingu. A planta não existe nesse novo território, porém. A tradição das peneiras se perdeu, e com ela, o grafismo.
“Há muito tempo atrás a gente fazia bolsa, mas não sei o que aconteceu e a gente parou de fazer. Mas aí pensamos em fazer de novo, em retomar isso”, conta Moré Kaiabi. Ela foi uma das idealizadoras do projeto aprovado no edital do Apoio às Iniciativas Comunitárias (AIC), junto com sua cunhada, Katuram Kaiabi. O projeto prevê a realização de oficinas de tecelagem na aldeia Samaúma com o intuito de resgatar o grafismo tradicional Kawaiweté.
“Nós, mulheres, gostamos do desenho das peneiras. A gente copia dos homens. Por isso, a gente está fazendo tipoia para carregar criança, rede, bolsa. O desenho é muito bonito. Por isso que a gente está fazendo e não está deixando acabar”, conta Moré.
As oficinas tiveram três etapas, realizadas entre abril e agosto e presença de mulheres de 11 aldeias. Elas aprenderam a montar o próprio tear e várias das formas do grafismo tradicional em diferentes peças (rede, tipoia, bolsa).
“Eu falei pra eles que os homens não fazem mais cestaria porque não tem mais arumã na região. É difícil para os homens, por isso as mulheres estão fazendo o desenho da peneira na tipoia, na bolsa”, conta Katuram, coordenadora desse projeto.
Cada etapa da oficina teve duração de cinco dias. As despesas de transporte e alimentação das participantes, além do barbante para a confecção das peças, foram bancadas pelos recursos do AIC.
O AIC é um fundo criado pelo ISA, em 2017, e destinado às comunidades do Território Indígena do Xingu (TIX). Foi um desdobramento do Plano de Gestão Ambiental e Territorial (PGTA) da área. Assim, com base no PGTA, foram elencados três eixos para a distribuição de recursos: resgate cultural, soberania alimentar e alternativas econômicas. Qualquer uma das mais de 150 aldeias dos 16 povos que vivem no TIX podem enviar projetos para acessar recursos do AIC. O envio pode ser feito por texto ou por vídeo, respeitando a tradição de oralidade desses povos, desde que atendam aos critérios estabelecidos em cada edital.
Já foram realizados editais em 2017, 2018 e 2021. Ao todo, 65 projetos foram aprovados, atendendo 75 comunidades, 12 povos e totalizando R$ 1,85 milhão em recursos destinados. Atualmente, existem 30 projetos em execução.
“A partir do PGTA, as comunidades fizeram muitas conversas e definiram prioridades, coisas que eles tinham vontade de trabalhar, como colocar isso em prática, de onde poderia ser obtido recurso e de que forma. O AIC vem nesse sentido, de que cada comunidade possa definir sua prioridade, e, ao mesmo tempo, participar da gestão da iniciativa”, comenta Renato Mendonça, assessor do ISA e gestor do AIC.

Variedade de fava produzida na roça de Yaiku Tapayuna | Clara Roman / ISA.jpg
Formação do território
Para entender a importância da iniciativa, é preciso voltar à criação do Parque Indígena do Xingu (PIX), na década de 1960. Na época, os não indígenas avançavam na “marcha para o oeste”, rumo ao Brasil central. Mas toda a região estava ocupada por diversos povos indígenas. Muitos foram dizimados.
Nesse processo, os sertanistas Claudio e Orlando Villas-Bôas, responsáveis por contatar vários povos do Mato Grosso, criaram o PIX. Além dos povos que já viviam nessa região, como os Kamaiurá, Yawalapiti, Kalapalo, entre outros, os Villas-Bôas levaram outros povos para lá, na intenção de preservá-los da violência que a rota de expansão trazia. Isso aconteceu com os Kaiabi, com os Panará (que depois retornaram ao seu território tradicional), com os Ikpeng, que passaram a dividir o mesmo território com povos que não necessariamente mantinham relação antes do contato.
“O Parque do Xingu é um território multiétnico. Foi uma engenharia que aproximou vários povos. E essa demarcação criou a convivência de 16 povos. A governança desse território por esses 16 povos é um desafio permanente e algo que eles ainda estão aprendendo a fazer”, explica André Villas-Bôas, sócio fundador do ISA. “O fundo é um instrumento de gestão do território de uma maneira transparente e cujas regras são conhecidas por todos e que todos podem acessar”, explica ele.
O TIX abarca o Parque Indígena do Xingu, as Terras Indígenas (TIs) Wawi, Navoruto e Batovi. Hoje, é uma ilha de floresta cercada, sobretudo, pela soja. As nascentes da maior parte dos rios ficaram fora dos limites dessas áreas. O desmatamento e outras atividades predatórias no entorno pioram as condições de existência desses povos, com o assoreamento dos rios, mudanças climáticas, contaminação dos peixes e redução da caça. Além disso, em 30 anos, a população passou de mil para 8 mil pessoas, disputando os mesmos recursos.

Segurança alimentar
“A segurança alimentar é essencial, porque os indígenas estão confinados, cercados pelo desmatamento”, explica André Villas-Boas. Toda essa mudança implica num processo de adaptação, com novas iniciativas.
Na família de Nhonkoberi Suya, por exemplo, o AIC apoiou a construção de um galinheiro. Além de garantir a alimentação da família, ela vende os frangos nas feiras que ocorrem na região, gerando uma renda suplementar.
Com a pandemia da Covid-19, ir até à cidade tornou-se arriscado, por causa da possibilidade de contaminação. No edital de 2021, devido à pandemia, todas as reuniões de contratação foram feitas de forma virtual e os contratos assinados de forma digital.
Por causa da crise de saúde, muitos projetos passaram a ter a segurança alimentar como tema também. Foi essa a ideia do projeto de Yaiku Tapayuna, do povo Tapayuna. Yaiku debruçou-se sobre o resgate de variedades agrícolas para a sua roça. Com recursos do AIC, visitou comunidades de parentes de outros povos para coletar sementes de mandioca, banana, cana-de-açúcar, cará, araruta, feijão, urucum e milho. Sua roça tem ao menos oito variedades de mandioca, cinco de cana, várias de banana, e assim por diante.
“A comida do homem branco está chegando com muita força nas nossas comunidades e a gente fica preocupado”, conta Yaiku. A partir dessa situação, ele enviou o projeto ao AIC para viabilizar sua roça com todas essas variedades, sobretudo o transporte para coletar as sementes em outras aldeias. Hoje, a roça de Yaiku já fornece uma alimentação variada para sua família e vizinhos.

Capilarização de recursos
“Um ponto forte do AIC é a capilarização do recurso. Ele chegou em lugares e comunidades que nunca tinham conseguido acessar esse dinheiro”, explica Mendonça. Para ele, isso também tem um efeito pedagógico, porque algumas comunidades que participaram do AIC aproveitam da experiência para acessar outros editais. Além disso, aldeias que não têm associação também podem enviar projetos.
No eixo do resgate cultural, vários projetos retomam tradições perdidas na mudança para o Parque, como foi o caso dos Kaiabi. Transmitir todo esse conhecimento para os mais jovens já é uma preocupação constante dos mais velhos.
“A gente não quer que acabe nossa cultura, nossa tradição. É uma preocupação minha e sempre falo isso para minhas filhas. Há muito tempo atrás, a gente fazia o grafismo. Através do projeto, a gente resgatou isso. Hoje está acontecendo a oficina, mas não deveria ter tecelagem só no momento da oficina. A gente termina a oficina e continua a fazer”, diz Moré Kaiabi, que já pensa em enviar um projeto para o resgate do plantio do algodão no próximo edital.
Os exemplos de projetos são variados. Na aldeia Três Buritis, o AIC financiou a construção de uma casa para o beneficiamento de cana-de-açúcar e armazenamento de abacaxi, no eixo de alternativas econômicas. Mas há exemplos de apoio à produção de mel, resgate de canções tradicionais e muitos outros. Os projetos são avaliados por uma comissão composta por um membro da Associação Terra Indígena do Xingu (Atix), um membro do ISA e mais uma instituição convidada.
“O AIC mostra que é possível financiar uma comunidade de forma segura, que o pessoal quer trabalhar, tem muita coisa para mostrar e que só precisa de oportunidade. Os jovens participam ativamente porque são muito requisitados para escrever os projetos e também para participar. Acho que eles também se sentem empoderados e acabam tendo contato com os mais velhos, o que às vezes no dia a dia não ocorre”, diz Mendonça.