Mesas de diálogo com agentes públicos destacaram a necessidade de políticas para fortalecer os Sistemas Agrícolas Tradicionais, essenciais à segurança alimentar e à regulação climática
A diversidade das roças indígenas, quilombolas e de povos e comunidades tradicionais chegou à COP30, em Belém, e ocupou o centro das discussões em mesas com o tema economias da sociobiodiversidade – promovidas pelo Instituto Socioambiental (ISA).
Desde a arqueologia, passando pelas políticas públicas e chegando à regulação climática, os sistemas agrícolas e de conhecimento desses povos foram debatidos sob aspectos amplos, buscando mecanismos para sua proteção, fortalecimento e pleno desenvolvimento.
Os debates envolveram representantes dos povos, pesquisadores e agentes públicos e contaram com a exibição de documentários. Esse material será reunido em um documento para complementar as discussões e ações necessárias para o fortalecimento desses sistemas no período pós-COP.
Uma das mesas aconteceu em 12/11, na AgriZone, espaço da Embrapa na COP30, e contou com ampla participação dos povos tradicionais. Indígenas, quilombolas e ribeirinhos ocuparam a plateia, sendo necessário mudar para um espaço mais amplo para acolher a todos e a todas.
“O foco central do painel é tratar da diversidade: diversidade de povos, de modos de vida, de conhecimentos, de ciência, de manejo, de tecnologias socioculturais e produtivas”, resumiu o analista sênior em Economias da Sociobiodiversidade do ISA, Jeferson Camarão Straatmann, que mediou a mesa Clima, comida e saberes - Estratégias e políticas que salvaguardam Sistemas Agrícolas Tradicionais, promovem soberania alimentar e contribuem para o equilíbrio climático.
Liderança quilombola, Nilce Pontes Pereira dos Santos, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq- SP), falou ao lado de Liliane Santos, do Coletivo Olhos do Xingu, representando a Rede Terra do Meio (PA) e de Hildete Araújo, do povo Tariana, da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), no Amazonas.
O recado de Nilce aos órgãos públicos foi claro: “A gente não quer fazer caminho pelo outro. A gente quer um caminho que reconheça nossa forma de produzir”, disse, apontando a necessidade de políticas públicas adequadas aos territórios e construídas em conjunto com os povos.
Entre os pontos trazidos durante a conversa, estão a necessidade de assistência técnica construída conjuntamente com as comunidades, o reconhecimento pelo Estado do coletivo como unidade produtiva e a adequação das exigências para acesso ao crédito.
Nilce dos Santos também cobrou a desburocratização no processo de reconhecimento oficial dos Sistemas Agrícolas Tradicionais (SATs), defendendo a autodeclaração dos povos. "Não precisamos que alguém de fora venha definir quem somos. O conhecimento é vivo, repassado no território, no corpo e na prática. O processo burocrático é ineficaz para o modo de vida coletivo e a lentidão do Estado configura racismo institucional e ambiental", denunciou.
A diretora executiva de Inovação, Negócios e Transferência de Tecnologia da Embrapa, Ana Euler, integrou a mesa composta por representantes do poder público e destacou uma mudança na instituição, que historicamente é associada ao agronegócio, mas agora se volta também para a segurança e soberania alimentar.
Entre as prioridades estão pesquisas voltadas a mudanças climáticas, agroecologia e bioeconomia, além do reconhecimento de saberes tradicionais. “Há o reconhecimento de que a ciência ocidental não dá conta sozinha de resolver nossas questões e que os conhecimentos tradicionais foram reconhecidos no Acordo de Paris como cruciais. A Embrapa precisa aprender a trabalhar com povos tradicionais”, sinalizou.
Secretário nacional de Governança Fundiária, Desenvolvimento Territorial e Socioambiental no Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), Moisés Savian, informou que está em fase de elaboração o Sipan - Sistema Importante do Patrimônio Agrícola Nacional para o reconhecimento nacional dos SATs. Atualmente, esse reconhecimento é feito pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).
Apesar de sua importância, apenas quatro SATs têm reconhecimento oficial no país. São patrimônios culturais nacionais reconhecidos pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan): SAT Rio Negro (AM), em uma das regiões mais preservadas da Amazônia, onde convivem 23 povos indígenas; SAT Quilombola, Vale do Ribeira (SP), em área com o maior remanescente contínuo de Mata Atlântica do país.
São patrimônios agrícolas mundiais reconhecidos pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO): Sistema de Apanhadores de Flores Sempre-Vivas, em Minas Gerais; e Sistema Agroflorestal Tradicional de Cultivo da Erva-Mate, no Paraná.
Também estiveram presentes na mesa Maria Júlia Pinho, assessora da Diretoria Socioambiental do BNDES; e Jorge Alberto Meza Robayo, representante da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) no Brasil.
Sociobioeconomia revelada
As economias da sociobiodiversidade - economias promovidas ancestralmente por indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais - têm como base os SATs, conjunto de saberes milenares que atravessam o tempo e chegam aos dias de hoje apresentando-se como uma solução-chave para a crise climática e a redução de desigualdades.
Esse foi o tema da mesa Sociobioeconomia Revelada - A contribuição das economias de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais para a formação das paisagens e regulação climática, que reuniu saberes diversos em um diálogo que indicou também como as organizações estão agindo de forma a fortalecê-los.
O arqueólogo Eduardo Neves, que está à frente do projeto “Amazônia Revelada”, reforçou a perspectiva de que a floresta amazônica como a conhecemos hoje é o resultado do manejo realizado por povos que vivem nessa região milenarmente. Ele apresentou ainda um mapa com alimentos que resistem nessa paisagem baseada na abundância, como a mandioca, o abacaxi, a castanha, o açaí, o amendoim, o bacuri e o ingá.
O também arqueólogo Carlos Augusto da Silva, conhecido como Tijolo, ressaltou a tecnologia inovadora dos SATs. “O forno de torrar farinha, a geografia da fornalha pegando fogo: essa é uma técnica preparada para esse fogo não ser invasivo, é um tempero para as plantas. Todo esse sistema é a literatura que está na cabeça dessas pessoas”, refletiu.
Comunicadora da Rede Terra do Meio, Marta Gomes, acompanhou o trabalho de arqueologia realizado na sua região pela equipe de Eduardo Neves. “Com esse trabalho feito lá, eu descobri várias coisas. Enquanto eu acompanhava os trabalhos, eu comecei a ver pedaços de cerâmica e machadinha. Eu que moro ali, não sabia que existia. Eu vou aprofundar mais meus conhecimentos nesse assunto. E vários jovens da Resex ficaram interessados”, disse.
O diretor da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), Hélio Lopes, do povo Tukano, que vive em São Gabriel da Cachoeira (AM), região onde é desenvolvido o SAT Rio Negro, reconhecido pelo Iphan como patrimônio nacional, completa: “Essa salvaguarda é necessária para proteger, dar continuidade aos nossos saberes milenares”.
Parte dessa salvaguarda vem dos próprios conhecimentos tradicionais, como os benzimentos e as trocas que perpetuam a variedade de espécies. Mas outra parte dialoga com ações para cadeias de valor e políticas públicas. Alguns exemplos são a Casa de Frutas, em Santa Isabel do Rio Negro (AM), para beneficiamento de frutas; iniciativas de turismo de base comunitária; o Fundo Indígena do Rio Negro (FIRN); a Casa Wariró – Casa dos Produtores Indígenas do Rio Negro, entre outras.
No caso da Rede Terra do Meio, o Sistema Agrícola Tradicional ainda não é oficialmente reconhecido. Mas as ações para protegê-lo já são colocadas em prática, como informou o diretor-presidente da Rede Terra do Meio, Francisco de Assis Porto. Entre essas ações estão as cadeias de valor da castanha, da borracha e do babaçu; o Fundo Rede Terra do Meio; além de políticas públicas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que forneceu cerca de 150.000 kg de alimentos tradicionais a 61 escolas entre novembro de 2023 e julho de 2025.
O articulador de políticas públicas do ISA, Leonardo de Moura, participou da mesa Healthy and safe, sustainable and equitable food procurement (Mercado institucional para aquisição de alimentos saudável, segura, sustentável e equitativa), levando adiante o exemplo do Sistema Agrícola Tradicional (SAT) do povo Arara e do projeto-piloto de resgate da alimentação tradicional, que gerou a adequação de regras do PAA à realidade territorial.
“O projeto piloto de resgate de alimentação tradicional acabou pautando mudanças e adequação nos normativos do PAA, possibilitando o acesso de povos indígenas ao programa e a entrada de alimentos tradicionais nos listas e cardápios das escolas e outras instituições”, explica.
Apesar de sua importância, os SATs estão sob constante pressão da grilagem de terra, do garimpo ilegal, de madeireiros e da emergência climática, sendo que sua proteção e seu pleno desenvolvimento exigem uma estratégia de longo prazo, superando gargalos como direito e segurança territorial, mercados justos, instrumentos financeiros adequados e a integração de políticas públicas.
Entre as políticas públicas que têm se mostrado eficazes quando adequadas aos territórios estão o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Pagamento por Serviços Ambientais (PSA). Essas ações, ao fortalecerem os sistemas agrícolas e de conhecimento tradicionais, movimentam a economia, promovem a segurança alimentar e, ao mesmo tempo, protegem as florestas, contribuindo com a regulação climática.
Celebração da diversidade nas telas
Durante a COP30, o ISA e parceiros fizeram o lançamento de três documentários que mostram os SATs vivos em diversos territórios.
O filme “Vidas Beiradeiras - Saberes e Práticas Tradicionais na Floresta” vai até a Terra do Meio, no Pará, para mostrar modos de vida, rostos e nomes dos beiradeiros e beiradeiras. O comunicador da Rede Terra do Meio, Joelmir Silva e Silva, esteve no lançamento, no Pavilhão Food Roots and Routes, na Zona Azul. Para ele, o filme traz tradição, cultura, modos de vida e saberes passados de geração em geração. Com suas práticas tradicionais, os beiradeiros desenvolvem uma economia que gera fartura e, ao mesmo tempo, preserva a floresta.
Assista abaixo:
Outro documentário é o “Eenonai: Conservação e manejo na casa dos animais”, que registra manejo da fauna pelo povo Baniwa e traz registro do conhecimento ancestral desse povo e os impactos da emergência climática que ameaçam essa prática no Alto Rio Negro (AM).
Assista abaixo:
Já o minidocumentário “Celebração da Diversidade - Sistemas Agrícolas Tradicionais” ultrapassa a copa das árvores e mostra como o manejo milenar dos povos tradicionais gera diversidade de alimentos, movimenta a economia e promove regulação climática. A narração é de Francy Baniwa.
Assista abaixo:
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