Minuta propõe criação da Comissão Nacional Indígena da Verdade para investigar violações do Estado e garantir memória, reparação e justiça

Com o lema “Sempre estivemos aqui!”, lideranças indígenas de todas as regiões do país entregaram ao governo, nesta terça-feira (21/10), em Brasília, uma minuta de decreto que propõe a criação da Comissão Nacional Indígena da Verdade (CNIV). O evento reuniu mais de 130 pessoas e marcou um momento histórico na luta dos povos indígenas por memória, verdade, justiça e reparação das graves violações cometidas ao longo da história do Brasil.
A proposta retoma uma recomendação feita há mais de uma década pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), que apontou a morte de ao menos 8.350 indígenas por ações e omissões do Estado entre 1946 e 1988. O número é quase vinte vezes maior que o de mortos e desaparecidos políticos reconhecidos oficialmente.
A minuta é resultado dos trabalhos do Fórum Memória, Verdade, Reparação Integral, Não Repetição e Justiça para os Povos Indígenas, capitaneado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). O texto propõe que a CNIV seja instalada na Secretaria-Geral da Presidência da República e composta por 14 membros, metade indicada pela Apib e metade pelo Fórum. Com duração de três anos, a comissão teria poderes para investigar assassinatos, remoções forçadas, genocídios, torturas e esbulhos territoriais, além de identificar responsáveis e propor medidas de reparação. O relatório final seria público e traduzido para as línguas indígenas (veja abaixo).
Paulino Montejo, articulador político da Apib, destacou a importância da medida para firmar um novo pacto do Estado com os povos indígenas. “A violência contra os povos indígenas, desde a criação do Estado brasileiro, do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), foi uma política de Estado. A justiça que queremos também precisa ser resultado de políticas de Estado, estruturantes, permanentes e baseadas no direito à terra e à vida. A sociedade civil fez sua parte; agora esperamos que o Estado se sensibilize, se posicione e dê uma resposta histórica aos nossos povos”, afirmou.
A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, recebeu o documento em nome do governo, ao lado de representantes do Ministério Público Federal (MPF), da Defensoria Pública da União (DPU) e dos ministérios da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC).

Sonia afirmou que receber o documento significa “um compromisso com a reparação pelo passado e pelo presente”, lembrando que as violências contra os povos indígenas seguem acontecendo. “Temos uma história difícil, sangrenta, muitas vezes cometida pelo próprio Estado. Ainda hoje há indígenas com cabeça decepada, corpos esquartejados e queimados dentro de suas casas”, disse.
A cerimônia de entrega da proposta homenageou o pesquisador Marcelo Zelic, que dedicou sua vida à documentação das violações contra os povos indígenas e foi um dos primeiros a defender a criação da comissão. Zelic faleceu em 2023.
Elisa Pankararu, da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), emocionou o público: “Falar em uma Comissão Nacional Indígena da Verdade é dizer que a nossa verdade é uma verdade que dói, porque é uma violência contra os corpos-território: os corpos das pessoas, das árvores, dos rios, das águas, dos animais, do ar, da terra. Não somos apenas pessoas, nós somos parte. Nós não somos usuários desse sistema, como está na cultura de vocês. Nós somos parte dele.”
Para ela, a criação da CNIV é mais do que um instrumento institucional: é o reconhecimento de uma verdade histórica que persiste como ferida aberta.“A história desse país é banhada pelo sangue indígena. É uma história construída sobre o sangue indígena, negro, camponês, das periferias, das mulheres e meninas, e é uma história que oficialmente não se conta, mas que os nossos nos contam.”. Elisa evocou os anciãos indígenas para falar da persistência da memória e da dor: “Os meus mais velhos dizem que quem bate esquece, e quem apanha lembra. Essa é a filosofia de quem sofre, de quem carrega a dor e a memória”.
Kleber Karipuna, coordenador executivo da Apib, definiu a entrega como um marco histórico. “O dia de hoje marca um passo importantíssimo para o futuro dos povos indígenas do Brasil na garantia de direitos, na proteção dos nossos povos e na construção de políticas públicas alinhadas aos territórios. Há 525 anos enfrentamos uma história de muita violência e violações de direitos. A criação da CNIV representa um passo na reparação contra todos os crimes cometidos e um compromisso para que essas violações não se repitam.”

Reconhecimento da CNV
Em 2014, a CNV reconheceu pela primeira vez as violações de direitos humanos dos povos indígenas, mas também que seu trabalho foi insuficiente para abranger esses casos e recomendou a criação de uma comissão específica para aprofundar essas investigações. Já em 2024, a Comissão de Anistia reconheceu e pediu perdão pelas violações de direitos humanos cometidas pelo Estado brasileiro contra dois povos: os Guarani Kaiowá, da Terra Indígena Guyraroká, e os Krenak, vítimas de perseguição, tortura, trabalho forçado, prisões e deslocamentos compulsórios.
“Esses gestos do Estado brasileiro são importantes, mas incipientes”, avalia a antropóloga Tatiane Klein, do Instituto Socioambiental (ISA), que participou da construção da proposta. Segundo ela, as violações contra indígenas apenas começaram a ser reconhecidas e a criação da comissão seria o passo seguinte. “A criação da CNIV tem estado na pauta do movimento indígena há anos, inclusive porque muitas dessas violações continuam no presente, como é o caso do povo Guarani Kaiowá. É urgente tirar essa instância do papel, não só para avançar nas investigações, mas assegurar o direito indígena à memória, verdade, justiça e reparação”.
A ex-subprocuradora-geral da República, Deborah Duprat, que é integra o Fórum, destacou que a proposta tem base constitucional: “O artigo 16 da Constituição de 1988 determina que é dever do Estado garantir aos povos que compõem a sociedade brasileira os seus espaços de memória.” Segundo Duprat, a CNIV deve considerar uma temporalidade ampla, “desde a conquista até os dias atuais”, e adotar a oralidade como metodologia central, reconhecendo o direito dos povos indígenas de contarem suas próprias histórias.
O coordenador-Geral de Memória e Verdade e de Apoio à Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, Hamilton Pereira da Silva, destacou a importância de recordar e honrar lideranças indígenas que marcaram a história da resistência. Ele evocou nomes como Marçal de Souza, que em 1980 levou a palavra dos povos indígenas a João Paulo II em Manaus; Ângelo Pankararu, Ângelo Kretã e a memória do povo Tapirapé, que nos anos 1950 quase desapareceu, mas ressurgiu pela reconquista de suas terras, língua e cultura. Pereira da Silva também lembrou tragédias como o assassinato na Terra Indígena Bororo, em 1976, do padre Rodolfo Lunkenbein e do indígena Bororo Simão. “Em nome deles, em nome dessa história, que de alguma maneira eu pude testemunhar ao longo da minha própria trajetória, eu queria receber [a minuta] em nome do ministério e assumir aqui o compromisso com essa causa”, afirmou.

Investigação enraizada nos territórios
Além dos trabalhos do fórum, que sistematizou informações de mais de 80 casos de violação de direitos, a Apib vem desenvolvendo uma metodologia própria de escuta para investigar as violações – liderada por pesquisadores indígenas. Relembre.
Braulina Baniwa, coordenadora da iniciativa, explicou que a metodologia combina conhecimento acadêmico e vivência territorial, priorizando diálogo direto com lideranças. A pesquisa segue modelo flexível, adaptado a cada realidade local, evitando a coleta de informações sem retorno às comunidades. “Produzimos uma metodologia de caminho sem violência, que respeita o tempo e o espaço das comunidades, e garante que a pesquisa não seja apenas uma retirada de informação do território.”
A psicóloga e pesquisadora Rafaela Andrade, do povo Kambeba (AM), elogiou a abordagem: “Estamos trabalhando só com pessoas indígenas, de diversas áreas, como psicólogos, jornalistas, antropólogos, para que a pesquisa seja de indígena para indígena. Isso fortalece a autonomia e a confiança nos territórios.” Andrade destacou que, diferentemente de estudos anteriores conduzidos por pesquisadores não indígenas, essa metodologia promove conexão direta com as comunidades e valoriza saberes e experiências próprias. A pesquisa já foi apresentada em seminários nos territórios, como com a Comissão Guarani Yvyrupa em Piraquara (PR), no Tekoha Ywy Djú. “Eles foram muito receptivos, porque esses seminários foram desenvolvidos para eles, para debater sobre seu próprio povo e as violências que sofreram no Brasil”, disse.
Objetivos da CNIV
Investigação e elucidação dos fatos
• Elucidar os fatos e as circunstâncias de casos de graves violações aos direitos dos povos indígenas.
• Incluir no escopo da investigação os casos referidos pela Comissão Nacional da Verdade que tenham relação com a questão indígena.
• Investigar especificamente violações como assassinatos, genocídios, remoções forçadas, torturas, mortes, desaparecimentos forçados, sequestros, ocultações de cadáveres, esbulhos de suas terras e discriminações.
• Localizar e identificar corpos e restos mortais de pessoas desaparecidas.
Identificação de responsáveis e danos
• Identificar locais, estruturas, instituições públicas e privadas (militares, civis, inclusive empresariais ou sem finalidades lucrativas), e pessoas, que sejam responsáveis direta ou indiretamente pelas violações.
• Identificar danos aos bens, direitos, valores, culturas e costumes indígenas.
Cooperação e reparação
• Revelar a verdade histórica.
• Colaborar com todas as instâncias dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário para a apuração e responsabilização dos autores das violações.
• Colaborar para que seja prestada assistência às vítimas remanescentes das graves violações.
• Recomendar medidas para a reparação integral dos povos indígenas lesados, o que inclui restituição de direitos, compensações e reabilitações.
• Recomendar providências de caráter suficiente e políticas públicas para prevenir a violação de direitos indígenas e assegurar sua não repetição.