Para movimento indígena e sociedade civil, decisão ameaça reconhecimento e proteção de territórios
O Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucional ‒ pela segunda vez ‒ o marco temporal, ao concluir, na noite desta quinta (18/12), o julgamento da Lei 14.701/2023. A decisão reconhece também, pela primeira vez, a omissão do Estado brasileiro ao não cumprir o prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição de 1988 para finalizar as demarcações.
Apesar disso, a determinação mantém quase toda a lei, com prazos, restrições e regras que vão dificultar significativamente o avanço do reconhecimento oficial das Terras Indígenas (TIs) e sua proteção, na avaliação do movimento indígena, organizações da sociedade civil e especialistas.
Com base no voto do relator, Gilmar Mendes, a maioria dos ministros referendou, por exemplo, a participação de Estados, municípios, posseiros e proprietários de áreas sobrepostas a TIs no procedimento demarcatório desde o seu início, ainda na fase da elaboração dos estudos técnicos. Quase sempre esses atores são contra as demarcações e a medida abre caminho para que elas possam ser travadas desde a primeira etapa, por meio de conflitos.
No voto do relator, acompanhado pela maioria, consta que deve ser garantido o direito das comunidades de realizar atividades econômicas em forma de cooperação e admitida a contratação de terceiros não indígenas. Mendes ressalta que as terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico que restrinja a posse direta pela comunidade.
Embora afirme que a realização de determinadas atividades não se vincula ao consentimento, o voto faz ressalvas importantes às atividades econômicas: deve haver participação efetiva das comunidades mediante consulta livre, prévia e informada, deve haver a realização prévia de Estudo de Impacto Ambiental e o compartilhamento de benefícios.
Os ministros também concordaram que os ocupantes não indígenas com títulos válidos poderão permanecer na área em disputa até serem reassentados ou quando for paga a indenização pela terra nua – e não apenas pelas benfeitorias, como prevê a Constituição hoje (leia mais no quadro ao final da reportagem).
Ainda por sugestão de Mendes, será enviada ao Congresso uma proposta de projeto de lei contendo dispositivos definidos por ele em Comissão Especial no curso das ações constitucionais, tratando de temas como a demarcação, o uso e a gestão de terras indígenas.
Autora de uma das ações em análise, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) defendia a derrubada integral da lei. “Essa lei representa um ataque direto aos direitos originários dos povos indígenas e à demarcação de nossos territórios”, disse a entidade em nota nas redes sociais.
“Desde sua vigência, a violência aumentou, as demarcações foram paralisadas e vidas indígenas seguem sendo ceifadas. O que está em jogo não é apenas a terra, mas a defesa da vida, da memória, da cultura e do futuro do clima — nossos territórios são as áreas mais preservadas do país”, ressaltou.
De acordo com o marco temporal, só poderiam ser demarcadas as terras que estivessem sob a posse dos povos indígenas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Alternativamente, eles teriam de comprovar a disputa em campo ou na Justiça por elas na mesma data. A interpretação nega as expulsões e violências cometidas contras essas populações ao longo da história.
“A rejeição do marco temporal e o reconhecimento da omissão do Estado brasileiro em concluir a demarcação de todas as TIs são importantes, mas também é preciso ressaltar que o restante da decisão do STF traz diversos prejuízos aos direitos territoriais dos povos indígenas, fragilizando direitos fundamentais previstos na Constituição”, afirma a advogada do Instituto Socioambiental (ISA) Renata Vieira.
Plenário virtual e críticas
Os votos dos ministros começaram a ser publicados, de forma virtual, na segunda (15/12). O primeiro, do relator, rejeitou o marco temporal, mas propôs a manutenção de vários outros retrocessos na lei. Em seguida, o ministro Flávio Dino acompanhou Mendes parcialmente e fez algumas ressalvas que poderiam reverter parte deles.
Já o ministro Édson Fachin abriu uma divergência, uma posição majoritariamente diferente das anteriores. Ele defendeu a inconstitucionalidade de quase toda a lei, no que foi acompanhado apenas pela ministra Cármen Lúcia.
Ao final do julgamento, a posição de Mendes acabou prevalecendo. Os ministros Luiz Fux e Alexandre de Moraes seguiram-na integralmente. Cristiano Zanin e Dias Tóffoli acompanharam a maior parte do voto de Dino. Todos eles votaram pela inconstitucionalidade do marco temporal.
Já na noite desta quinta, André Mendonça e Nunes Marques foram os únicos a defender o contrário, consumando um placar de 8 a 2 para esse tema específico. Fora isso, Mendonça seguiu Mendes em todas as outras questões e Nunes Marques acatou a maior parte das teses do relator, além de pontos das manifestações de Dino e Toffoli.
O julgamento começou na quarta (10/12), com a leitura de um resumo do relatório de Mendes e as sustentações orais das partes, no formato presencial. Dois dias depois, na sexta, no final da tarde, ele remeteu a análise do caso para o plenário virtual, onde os ministros apenas depositam seus votos e não há debate. A medida foi tomada uma semana antes do início do recesso do Judiciário, nesta sexta.
E gerou críticas do movimento indígena e das organizações da sociedade civil que participam do processo. A Apib já havia protocolado uma manifestação exigindo que o julgamento fosse todo presencial. Em nota nas redes sociais, a entidade declarou que a realização da votação no meio virtual vai contra o direito de acesso à justiça dos povos indígenas.
Disputa entre Poderes
A análise do caso começou um dia depois de o Senado aprovar uma emenda que incorpora o mesmo marco temporal à Constituição. A proposta já seguiu para a Câmara e ainda não há data para a votação. Se for aprovada pelos deputados, segue diretamente para a promulgação pelo Congresso.
É mais um capítulo do conflito entre Poderes e a segunda vez que o Legislativo confronta a Corte pelo mesmo tema: em 2023, o Senado aprovou a Lei 14.701/2023 no mesmo dia em que o Supremo concluiu um primeiro julgamento que considerou o marco temporal inconstitucional. A norma foi vetada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas o Congresso derrubou os vetos.
O processo foi iniciado a partir de três ações que questionam a constitucionalidade da lei – propostas pela Apib, PT, PSOL, Rede, PCdoB, PSB e PDT – e uma quarta ação que a defende, proposta pelo PP, PL e Republicanos.
Voto de Gilmar
Os ministros deram um recado explícito, sobretudo à cúpula do Congresso e aos ruralistas, de que o marco temporal não é compatível com a Constituição, mesmo que tentem incorporá-lo a ela por meio de emenda.
“A posse indígena é baseada na tradicionalidade, e não em um marco temporal fixo. Exigir comprovação de que a terra era ocupada em 1988, como quer o Congresso, impõe uma ‘prova diabólica’ aos indígenas que foram expulsos violentamente de seus territórios ao longo dos séculos”, reconhece o voto de Mendes.
“Todo o processo de ocupação territorial brasileiro, desde a chegada dos portugueses em 1500, é permeado dessa vergonhosa forma de apropriação do território inicial e integralmente indígena, na maioria das vezes realizada, historicamente, por meio de violência, intimidação e mortes. Essa realidade — dura e nefasta — não pode ser tolerada e repetida”, continua.
“Mas, a pretexto de promover uma reparação às comunidades tradicionais, não se pode desconsiderar o vetor de segurança jurídica presente em nossa sociedade democrática contemporânea, até para que seja preservado o direito à propriedade e à posse privadas”, contrapõe.
A direção do voto do relator já havia sido mais ou menos traçada ao longo do processo de conciliação instituído por ele para discutir a lei, entre agosto de 2024 e junho de 2025, com a participação do governo federal, estados, ruralistas e indígenas.
Em meio aos debates, ele chegou a reconhecer que o STF não voltaria atrás da primeira decisão que derrubou o marco temporal. Em contrapartida, apresentou uma minuta de projeto de lei que criava uma série de novos obstáculos às demarcações e, de quebra, abria caminho para grandes empreendimentos e atividades econômicas em TIs.
O objetivo inicial seria aprovar a proposta e enviá-la ao Congresso. Diante da falta de consenso nas conversas, no entanto, o ministro recuou, encerrou os debates e resolveu pautar o julgamento. Agora, em seu voto, foi mais econômico, mas seguiu as linhas gerais de estabelecer novas restrições às demarcações e abrir as TIs à exploração econômica por não indígenas.
Em seu voto, Mendes afirmou que atividades econômicas podem ser exercidas nas TIs pelos próprios indígenas, de acordo com seus usos, costumes e tradições, "sendo admitida a celebração de contratos com não indígenas, desde que respeitada a autodeterminação das comunidades". Na avaliação da Apib, nesse ponto a decisão abre brechas para abusos e até para o arrendamento de territórios indígenas.
Ressalvas de Dino
O ministro Flávio Dino também foi explícito em seu recado para o Congresso sobre a insistência com o marco temporal.
"Neste passo, inclusive propostas de emenda constitucional que pretendam introduzir tal limitação são materialmente inconstitucionais, pois atingem o núcleo essencial dos direitos fundamentais, o que é vedado pelo constituinte originário. O Poder Legislativo não pode, sob qualquer pretexto, suprimir ou reduzir direitos assegurados aos povos indígenas, sob pena de ofensa aos princípios estruturantes do Estado Democrático de Direito", disse.
Dino fez ressalvas consideradas importantes. Duas delas foram acatadas na decisão final pelo relator. A primeira estabelece o prazo de 180 dias, e não de 60 dias como propôs inicialmente Mendes, para que a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) apresente uma lista, por antiguidade, de reivindicações fundiárias indígenas e lista de procedimentos de demarcação em curso.
As reivindicações territoriais de grupos indígenas formuladas após o prazo de um ano do trânsito em julgado do caso, serão atendidas na forma desapropriação por interesse social, e não mais a demarcação convencional, pela tradicionalidade da ocupação, saldo a descoberta posterior de indígenas isolados, situação na qual se submeterão ao procedimento demarcatório.
Outra sugestão do ministro atendida por Mendes foi a exclusão da proposta original de se incorporar ao rito demarcatório regras dos processos judiciais de suspeição e impedimento em relação à atuação dos antropólogos, o que ampliaria os riscos e pressões sobre o trabalho.
Quais os principais pontos da decisão do STF?
Inconstitucionalidade do marco temporal – A posse indígena é baseada na tradicionalidade da ocupação, segundo o instituto conhecido como “indigenato”, e não em um marco temporal qualquer. Exigir comprovação de que a terra era ocupada em 1988 é inviável porque muitos povos indígenas foram expulsos violentamente de seus territórios.
Omissão do Estado – Reconhece também, pela primeira vez, a omissão do Estado brasileiro ao não cumprir o prazo de cinco anos a partir da promulgação da Carta de 1988 para concluir os procedimentos demarcatórios e determina o prazo de dez anos para a finalização dos processos de todas as Terras Indígenas.
Indenização– Os proprietários com justo título ou que comprovem que estavam na TI em 5 de outubro de 1988 deverão ser reassentados ou, se preferirem, indenizados não apenas pelas benfeitorias, mas também pelo valor da terra nua. Se a posse não for comprovada nessa data, o produtor rural terá direito à indenização apenas das benfeitorias construídas de boa-fé, como determina a Constituição hoje. A terra nua será avaliada conforme a tabela do ITR (Imposto Territorial Rural) do ano anterior ao decreto presidencial de homologação, que é um valor próximo ao de mercado, com pagamento em dinheiro, precatório, título da dívida agrária ou permuta por imóvel em preço equivalente.
Retenção da terra – Quem tem direito à indenização pela terra poderá manter sua posse até que concorde com as medidas compensatórias ou ocorra o pagamento da parcela incontroversa da indenização pela terra nua e das benfeitorias pela União e demais formas até que sobrevenha a implementação de uma das medidas previstas.
Demarcações – Estados, municípios, proprietários e posseiros poderão participar desde o início do procedimento demarcatório, ao indicar técnicos para acompanhar estudos técnicos. Pesquisadores e técnicos de outros órgãos públicos também poderão ser convidados a participar. As alterações no processo de demarcação previstas na Lei 14.701 só têm eficácia aos processos em curso daqui para a frente, ficando resguardado todos os atos praticados anteriores à vigência da lei.
Atividades econômicas – O voto autoriza atividades econômicas em TIs em forma de cooperação e admite a contratação de terceiros não indígenas, garantindo a fiscalização pela Funai dessas atividades, que devem ser realizadas sempre pelas comunidades indígenas. Nas atividades econômicas a serem exploradas pelo Estado, o voto dispensa o consentimento, mas faz três ressalvas: deve haver participação efetiva das comunidades mediante consulta livre, prévia e informada, deve haver a realização prévia de Estudo de Impacto Ambiental e o compartilhamento de benefícios. O voto manteve a vedação expressa ao arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico que restrinja a posse direta pela comunidade.
Reassentamento em áreas alternativas – Quando for “demonstrada a absoluta impossibilidade da demarcação”, o governo poderá realizar uma “compensação” às comunidades indígenas, concedendo “terras equivalentes às tradicionalmente ocupadas”. As organizações indígenas argumentam que o expediente é igualmente proibido pela Constituição.
Redimensionamento – O redimensionamento posterior à demarcação deverá observar a proporcionalidade entre território e a população existente na reanálise administrativa e somente poderá ocorrer de modo excepcional e no prazo de até 5 anos da demarcação anterior, sendo necessário comprovar grave e insanável erro na condução do procedimento administrativo ou na definição dos limites da terra indígena.
Proibição das “retomadas” – Proíbe as chamadas “retomadas”, ocupações feitas por indígenas de terras tradicionais cuja demarcação ainda não foi concluída. Também ficam proibidas expulsões forçadas dos indígenas sem negociação prévia. A decisão menciona “protocolos de desocupação humanizada” e responsabilidade civil e penal para quem violar a paz no campo. Para retomadas anteriores ao início do julgamento, as forças policiais deverão executar esses protocolos de negociação para a desocupação em 30 dias. Já para retomadas posteriores a esta data, será determinada a remoção imediata, sem possibilidade de mediação. E caso ocorram após o julgamento, deverá haver alteração da lista de antiguidade de análise dos requerimentos de demarcações indígenas, com a recolocação no último lugar da lista elaborada pela Funai do pedido daquela comunidade indígena.
Prazos – A Funai terá um prazo de 180 dias para apresentar toda a lista de reivindicações de terras que ainda não tiveram processos abertos no órgão indigenista e dos processos em aberto, por ordem de antiguidade. Após um ano da data do julgamento, a comunidade indigena perderia o direito à demarcação, e o reconhecimento jurídico de sua terra somente poderá ocorrer por meio de desapropriação de interesse social, com exceção de casos onde sejam identificados indígenas isolados. A Funai tem ainda o prazo de 10 anos para concluir todas as demarcações, sob pena de responsabilização da União.
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