Considerados de recente contato, povos ficam vulneráveis à fome e a doenças enquanto aguardam para retirar documentos e receber benefícios
A indígena Cristina Isabel da Silva, do povo Yuhupdëh, vive com sua família na comunidade Santa Rosa, no Rio Tiquié, região do Alto Rio Negro (AM), mas está em São Gabriel da Cachoeira (AM) há cerca de um mês. Ela viajou até a cidade para retirar documentos de familiares e, ainda, tentar conseguir sua aposentadoria, e está desde então em um acampamento improvisado próximo da área urbana do município, exposta a uma série de riscos. Já foi a diversos órgãos públicos, mas ainda não resolveu suas questões.
Sentada sob uma barraca com lona azul, no acampamento improvisado no sítio chamado Parawary, ela conta sobre as dificuldades que vem passando e da sua preocupação com a família, que está sem se alimentar direito e sujeita a doenças. No total, 11 pessoas, sendo cinco crianças, fizeram juntas uma viagem que durou cerca de duas semanas pelos rios Tiquié, Uaupés e Negro, em canoa com motor rabeta – isso é, de baixa potência.
A situação da família de dona Cristina atinge muitos outros indígenas Hupda e Yuhupdëh – povos da família linguística Naduhupy considerados de recente contato e grandes conhecedores dos caminhos da floresta. Ao menos 800 pessoas estão no sítio Parawary, em condições insalubres, em situação de insegurança hídrica e alimentar. Um emaranhado burocrático acaba alongando o período que os indígenas precisam ficar na cidade para resolver pendências com documentação e benefícios.
Em ação emergencial, a Funai e órgãos como FOIRN, ISA, Distrito Sanitário Especial Indígena do Alto Rio Negro (Dsei-ARN), Cartório e Prefeitura de São Gabriel da Cachoeira e Exército realizaram um mutirão de atendimento a esses povos para tentar acelerar a resolução de pendências que acabam segurando os indígenas na cidade, além da retirada do lixo no entorno dos acampamentos. A mobilização iniciou no sábado, 4 de fevereiro, no Parawary, e será mantida até que a situação seja controlada.
“Estamos mobilizando as instituições para um atendimento emergencial amplo. Há o receio de ocorrerem mortes se não atuarmos”, informa o diretor-presidente da FOIRN, Marivelton Barroso, do povo Baré.
A Federação vem apontando problemas no atendimento oferecido pelas instituições públicas, como falta de pessoal, estrutura e de tradutores de línguas da região. Muitos dos indígenas, inclusive os jovens, não falam o português, dificultando a relação com as instituições.
Além disso, falta material para a emissão de documentos, como cédulas de identidade, que vêm de Manaus. O Estado fornece 400 cédulas por mês para o município, o que não é suficiente para atender a população, principalmente nos momentos de maior demanda.
A questão que envolve a saída dos Hupda e Yuhupdëh de suas comunidades com destino à cidade é recorrente, acentua-se no período de férias escolares e vem se agravando ano a ano, desde 2012, quando passaram a acessar as políticas públicas como o Bolsa-Família. Conforme dados da Funai, houve período em que foram registrados até cinco óbitos de indígenas nessa situação, e com causas violentas, como afogamentos.
Advogada do Programa Rio Negro do ISA, Renata Vieira integra a equipe de ação emergencial para os povos Hupda e Yuhupdëh. Ela explica que as políticas públicas que são pensadas a nível federal muitas vezes não levam em conta a realidade dos povos indígenas, o que acaba contribuindo com a situação de vulnerabilidade.
“É exigida uma série de burocracias, como emissão de documentos de RG, CPF, Título de Eleitor, certidão de nascimento, além de realização de operações bancárias com manuseio de cartões magnéticos para dar entrada ao registro no CadÚnico para acessar o Bolsa-Família ou dar entrada num pedido de salário-maternidade”, detalha. “Como essa burocracia não faz parte da cultura desses povos, os indígenas ficam andando de instituição em instituição com várias limitações para compreender e obter a documentação necessária para resolver as suas pendências. Desse modo, a motivação de vinda à cidade que inicialmente é acessar direitos sociais básicos passa a configurar uma série de violações de direitos humanos”.
Relatório do Distrito Sanitário Especial Indígena Alto Rio Negro (Dsei-ARN) aponta que essa população indígena acampada nos arredores da cidade fica em condições precárias, com crianças e idosos mais suscetíveis ao consumo de bebidas alcoólicas, acidentes fluviais, negligência, abandono, escassez de alimentação, moradia (acampamento) inadequada, falta de água potável e de saneamento básico.
Barracas são armadas principalmente no período de férias, quando as famílias aproveitam o recesso para resolver pendências na cidade 📷Raquel Uendi/ISA e Ana Amélia Hamdan/ISA
A equipe de saúde removeu seis pessoas para a Casa de Apoio Indígena e ao Hospital de Guarnição (HGU), sendo duas crianças, uma mulher que havia acabado de dar à luz a um bebê que já nasceu morto e três idosos com sintomas de tuberculose. Foi registrada a morte de uma adolescente de 16 anos, sendo que a causa está sendo averiguada.
Há ainda registros de desidratação e diarreia. Já foram identificados pelo menos 53 casos de malária. Para evitar que os indígenas retornem às suas casas com a doença – o que poderia levar ao aumento de casos no território indígena – será montada uma barreira sanitária para realização de testes.
O risco se agrava com as famílias circulando em instituições públicas na tentativa de tirar documentos. A indígena Cristina Isabel conta que saiu do Parawary, foi até o centro de São Gabriel e acabou sendo assaltada: os poucos documentos de uma das pessoas da família foram roubados. Ela tentou acionar a polícia, mas não conseguiu, pois tem dificuldades em falar o português.
Conversando na língua Tukano, ela fala da fartura de sua comunidade. “Lá tem farinha, quinhapira, beiju, tapioca, maçoca, manicuera, mingau”, relata, referindo-se a alimentos à base de mandioca e peixe. A farinha que trouxe na viagem para alimentar a família foi trocada por combustível ainda no trajeto.
A família de Maria Conceição Fernandes, Yuhupdëh, e de Januário Araújo Costa, do povo Hupda, moradores de Cunuri, também foi assaltada. Eles viajaram com toda a família para resolver pendências de documentos, usando duas canoas para transportar 11 pessoas. Mas uma das embarcações foi roubada no porto da cidade. Agora, o grupo, que também está vivendo no acampamento improvisado, conta com a ajuda de parentes no retorno a Cunuri, de onde saiu em 14 de janeiro.
Maria Conceição conta que sua família está passando fome. “Se acaba o dinheiro, não há o que fazer, aqui na cidade é o que manda. Na comunidade é diferente, sempre tem algo para a gente se alimentar”, diz.
Casa de apoio
Uma alternativa apresentada durante as reuniões do grupo de emergência foi a construção de casas de apoio em São Gabriel, com estrutura para que essas famílias fiquem instaladas, respeitando suas características culturais.
Outras ações estão em andamento para atender os povos Naduhupy – Hupda, Yuhupdëh e Dâw –, como o Plano de Contingência de Surtos e Epidemias em Povos Isolados e de Recente Contato (PIIRC). Em fase de formulação, este é um importante documento para o planejamento de ações de urgência e enfrentamento conjunto a epidemias e determinantes sociais que impactam negativamente na mortalidade desses indígenas. O PIIRC está previsto na portaria conjunta 4.094/2018 do Ministério da Saúde e Funai e vem sendo construído conjuntamente por órgãos públicos e sociedade civil organizada, em conjunto com a FOIRN e lideranças dos povos Naduhupy.
Conforme o documento, os povos Hupda e Yuhupdëh, bem como os Dâw, sofrem com situações de extrema vulnerabilidade social e epidemiológica, estando expostos ao contágio de Covid-19, malária, tuberculose, dengue, gripe, e aumento no número de morte por suicídio e riscos associados ao consumo de bebida alcoólica no meio urbano.
Também está em elaboração, em parceria com a Universidade Federal do Amazonas (Ufam), o curso de Licenciatura Intercultural Indígena voltado para esses grupos.
Povos que tradicionalmente ocupavam áreas de interflúvio, os indígenas das etnias Hupda e Yuhupdëh vêm, ao longo dos anos, se fixando em comunidades ribeirinhas e mais próximas à distritos (vilarejos) urbanos, entre elas Santo Atanásio, Boca de Traíra e Vila Fátima. Esse movimento vem sendo acompanhado pelas lideranças dos povos Naduhupy, por antropólogos e órgãos como Funai e FOIRN.
Esses povos são detentores de conhecimentos de como viver, conhecer, caçar e andar na floresta Amazônica. Sabedoria cada vez mais rara e preciosa, principalmente em tempos de emergência climática, quando as ciências dos moradores da floresta sobre como sobreviver dela e, ao mesmo tempo, preservá-la, ganham cada vez mais destaque.
Os indígenas Hupda e Yuhupdëh entrevistados nessa matéria falaram principalmente na língua Tukano e foram traduzidos pelos comunicadores da Rede Wayuri Deise Alencar e Euclides Azevedo, ambos do povo Tukano