Lei de Diretrizes Orçamentárias aprovada no Congresso permite reservar recursos para empreendimentos sem licença e projeto básico. Pressões para acelerar autorizações vão aumentar, segundo parlamentares, especialistas e ambientalistas

Texto atualizado às 19:53 de 13/7/2022.
Um dispositivo da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), aprovada no Congresso nesta terça (12), pode abrir caminho para impor a realização de obras financiadas pelo polêmico “orçamento secreto”, sem controles e salvaguardas ambientais adequados e requisitos técnicos elementares, contrariando a legislação e orientações do Tribunal de Contas da União (TCU).
O parágrafo 3 do Artigo 71 da lei permite o empenho de recursos federais para obras sem licenciamento ambiental e projeto de engenharia básico, a partir das emendas de relator da LDO, identificadas pelos caracteres RP 9, centro do escândalo do “orçamento secreto” (leia mais abaixo). Emendas de parlamentares, de bancadas estaduais e das diversas comissões do Congresso terão a mesma prerrogativa. O empenho é a fase da execução orçamentária na qual o dinheiro é reservado para um determinado fim.
Ainda conforme a redação final da lei, não seria possível avançar nas etapas seguintes, de liquidação e pagamento dos recursos, sem licença e projeto básico. Segundo integrantes da oposição, ambientalistas e especialistas, no entanto, a norma vai aumentar as pressões políticas, sobretudo de governos locais e parlamentares, para a liberação do dinheiro, independente da avaliação de impactos socioambientais e das condicionantes previstas no licenciamento. Hoje, os órgãos ambientais podem até negá-lo, dependendo dos eventuais danos ambientais de um empreendimento, mas isso seria colocado em xeque.
Em geral, as emendas parlamentares são usadas para direcionar verbas públicas às bases eleitorais ou estados de origem dos membros do Congresso. Ao retirar exigências para o empenho, o dispositivo incluído na LDO busca facilitar e viabilizar compras e obras do interesse dos aliados do governo beneficiados pelo "orçamento secreto".
A licença ambiental e o projeto de engenharia são “essenciais à efetiva implementação dos investimentos” públicos, diz o TCU no Parecer Prévio sobre as Contas do Presidente de 2021. Empreendimentos sem ambos os requisitos "não se encontram tecnicamente preparados para sua implementação”, aponta o documento.
“O governo não vai poder deixar de mandar o recurso para a obra porque ela não tem licença”, explica o deputado Rodrigo Agostinho (PSB-SP). “O Ministério do Desenvolvimento Regional, por exemplo, não vai poder colocar como uma exigência, para mandar dinheiro para a prefeitura ou o governo do estado, ter a licença. Mandam o dinheiro e terão de ir atrás da licença [depois]. Se não tiver licença, terão de devolver o dinheiro”, continua.
A reportagem do ISA entrou em contato com a assessoria do senador Marcos do Val (Podemos-ES), relator da LDO neste ano, mas ela respondeu que ele não atenderia o pedido de entrevista.
‘Jabuti’ e ‘orçamento secreto’
O dispositivo inserido na lei é considerado pelos ambientalistas um “jabuti”, item incluído numa proposição legislativa que não tem relação com seu tema. Ele foi criado em 2019, junto com o "orçamento secreto", mas passou despercebido até agora por parlamentares e organizações da sociedade civil que acompanham o dia a dia do Legislativo. A questão não foi discutida na votação de terça, ofuscada justamente pela controvérsia sobre a obrigatoriedade da execução das verbas das emendas RP 9, afinal excluída do texto final da lei.
As antigas modalidades de emendas permitem identificar o autor da proposta, além do órgão do governo responsável pelo gasto e o favorecido. No caso da emenda de relator, entretanto, os parlamentares envolvidos não são identificados nem precisam justificar ou dar satisfação sobre o destino dos recursos, decidido em negociações sem nenhuma publicidade. Não se sabe quais os critérios usados para empenhar o dinheiro. Daí a expressão “orçamento secreto”.
O objetivo original do mecanismo era dar autonomia ao relator da LDO para fazer ajustes na alocação das verbas. A partir do início de 2021, com a eleição de Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (PSD-MG) para as presidências da Câmara e do Senado, respectivamente, porém, tornou-se instrumento para favorecer o Centrão e outros aliados do Planalto, em troca de votos favoráveis ao governo e da formação de uma base parlamentar coesa. De acordo com a oposição, Lira e Pacheco controlam o expediente, revelado pelo jornal O Estado de São Paulo, em maio do ano passado.
Em 2021, o esquema garantiu gastos efetivos de mais de R$ 10 bilhões. Alguns parlamentares chegam a movimentar centenas de milhões de reais. A oposição levou o caso ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao TCU (saiba mais).

Fato consumado
“O pior é criar um fato consumado de recursos empenhados para os empreendimentos, com prioridade para execução e que não têm a devida licença ambiental”, avalia Suely Araújo, ex-presidente do Ibama e especialista sênior em Políticas Públicas do Observatório do Clima (OC).
Ela ressalta que, muitas vezes, o planejamento inicial de um empreendimento muda ao longo do licenciamento, gerando custos adicionais. “[O texto aprovado da LDO] cria uma pressão para que a licença seja praticamente obrigatória. O órgão licenciador não terá espaço para dizer ‘não’ e nem para exigir condicionantes que mudem o projeto em si. Isso é típico do licenciamento”, complementa.
Araújo lembra que, em muitos casos, o processo de concessão da licença dura mais de um ano. Daí ainda mais pressões para restringir ou eliminar esses ajustes e acelerar a autorização da obra. Ela informa que cerca de 90% das licenças são concedidas por órgãos estaduais e municipais, ainda mais vulneráveis à interferência política do que o Ibama. “O licenciamento é incompatível com o ciclo orçamentário de um ano, mesmo no caso de obras pequenas”, diz.
A especialista concorda que o dispositivo incluído na LDO é um “jabuti” porque, a princípio, a norma não pode tratar do tema do licenciamento. “Falamos da Lei de Diretrizes Orçamentárias. Isso é diretriz orçamentária?”, questiona.
“É bem sintomático e preocupante que estejam colocando isso na LDO na tentativa de dar um respaldo legal, passando por cima de outras legislações”, comenta Alessandra Cardoso, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).
“Por que emendas de relator ou de bancada têm de flexibilizar um requisito legal que é básico? Você não pode empenhar, especialmente no caso de recursos maiores, sem sequer ter um projeto básico aprovado ou sem ter a garantia de que a obra pode vir a ser licenciada”, argumenta.
Cardoso avalia que a medida faz parte da relação de “vale-tudo” estabelecida entre governo e o Centrão, com objetivo de liberar verbas para parlamentares “a qualquer custo”. E acrescenta que a grande quantidade de recursos das emendas RP 9 convertidos em “restos a pagar” acaba gerando pressão politica futura sobre eles.
“Pode ser que se esteja abrindo precedente para licenciar obras que, inclusive, interferem em territórios indígenas, em áreas protegidas. É o licenciamento quem tem de dizer se aquela obra, aquele processo tem algum impacto que fere a legislação [nesses casos]”, salienta.
Em 2021, o gasto total do orçamento ambiental federal ficou em cerca de R$ 2,5 bilhões, incluindo o ministério, Ibama e outros órgãos, como Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e o Jardim Botânico, segundo análise do Inesc. Cardoso chama a atenção para o fato de que esse montante corresponde a apenas um quarto do valor executado pelo “orçamento secreto” no mesmo ano.
Ela aponta que o "jabuti" inserido na LDO faz parte das ações articuladas por políticos e empresários para enfraquecer o licenciamento, a exemplo da aprovação da Lei de Liberdade Econômica, em 2019.
Pressões sobre o licenciamento
Desde a eleição de Lira na Câmara e da formação da base bolsonarista, aumentaram as pressões pela mudança na legislação do licenciamento, um dos principais instrumentos de proteção ambiental do país. Em maio do ano passado, a Câmara aprovou o projeto de Lei Geral do Licenciamento Ambiental, praticamente sem debate com parlamentares e a sociedade. Em seguida, ele seguiu para o Senado.
A proposta enfraquece ou, em alguns casos, até extingue instrumentos de avaliação, prevenção e controle de impactos socioambientais de obras e atividades econômicas. Trata-se do texto mais radical já elaborado no Congresso e que, na prática, torna exceção o licenciamento.
“Desprezar o licenciamento ambiental está atrapalhando o ingresso do país na Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). O Comitê de Políticas Ambientais da instituição criticou as mudanças previstas no PL do licenciamento porque acabam com a obrigatoriedade do instrumento e cobrou das autoridades compromisso com as boas práticas da OCDE no Brasil”, alerta a assessora do ISA Adriana Ramos.
A relatora do Projeto de Lei Geral do Licenciamento, numerado como 2.159/2021 no Senado, na Comissão de Meio Ambiente da casa, Kátia Abreu (PP-TO), chegou a anunciar que o colocaria em votação, mas o texto foi um dos alvos da mobilização de artistas, ambientalistas e ex-ministros do Meio Ambiente, em março, contra a agenda antiambiental do Congresso.
Diante das pressões, Rodrigo Pacheco prometeu que a tramitação das propostas sobre temas ambientais não seria acelerada no Senado. Até hoje, o PL 2.159/2021 não foi analisado. Apesar disso, seguem as tentativas de aprovar outros projetos que vão na mesma direção.
Pacheco acabou indo contra sua promessa e remeteu o “Pacote do Veneno”, que desregulamenta o comércio e o uso de agrotóxicos, por exemplo, apenas à Comissão de Agricultura, dominada pelos ruralistas. O mesmo aconteceu com o PL 1.282/2019, que permite desmatar Áreas de Preservação Permanente (APPs) e foi aprovado no colegiado.