Levantamento do ISA aponta que há 77 requerimentos ativos na Agência Nacional de Mineração (ANM), sendo 60 somente para exploração de ouro
O aumento da pressão do garimpo ilegal sobre o território indígena e de denúncias das comunidades sobre o crescimento desse tipo de atividade na região do Rio Negro, no Amazonas, levou lideranças indígenas a recorrerem à Justiça Federal para anular os requerimentos minerários que a Agência Nacional de Mineração (ANM) está liberando em áreas de leito do rio dentro de Território Indígena.
Além disso, as lideranças demandam que o leito do Rio Negro — em trechos que está inserido no Território Indígena e nos modos de vida dos povos que vivem na região — passe a contar com proteção constitucional, o que não ocorre por uma decisão da década de 1990 que deixou essa área de fora da demarcação.
O diretor-presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), Marivelton Barroso, do povo Baré, e o vice-presidente da instituição, Nildo Fontes, do povo Tukano, entraram com pedido para integrarem ação popular contra o que denominam de “loteamento do Rio Negro” para fins minerários.
A Foirn reúne associações que representam os 23 povos que vivem em área de aproximadamente 13,5 milhões de hectares divididos em nove terras indígenas nas regiões dos municípios de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos. As lideranças indígenas estão à frente desse processo porque a ação popular deve ser movida por cidadãos e não associações ou federações.
“Entramos com o pedido porque os mais afetados seremos nós, indígenas. Não será o Governo, não serão as empresas, não será a sociedade urbana: seremos nós, que estamos dentro do território”, afirma Marivelton Baré.
Ele reforça a necessidade de os indígenas serem consultados sobre projetos a serem desenvolvidos no território. “Qualquer exploração de natureza minerária que houver vai impactar a Terra Indígena, vai impactar os povos que moram ali, que sobrevivem com os recursos desse território. Essa degradação ambiental e a violação de direitos indígenas. A gente não quer, porque, apesar de só um trecho do canal principal do Rio Negro estar desafetado, isso requer que a gente seja consultado. Temos o direito de dizer sim ou não sobre projetos para o território”, completa.
Ação popular
A ação popular foi ajuizada no final do ano passado pelos parlamentares Jorge Kajuru (Podemos) e Elias Vaz de Andrade (PSB). Agora, as lideranças indígenas também querem integrar a ação, já que o interesse maior é dos povos do Rio Negro.
A petição foi protocolada na 1ª Vara Federal Cível, no Amazonas, em 8 de julho, com pedido de urgência, mas até agora nenhuma decisão foi dada.
Segundo o documento apresentado pelas lideranças indígenas, a liberação de pesquisa e lavra minerária pela ANM estimula a atuação do garimpo ilegal no território e coloca em risco povos de 23 etnias, como os Baré, Tukano, Baniwa, Piratapuya, Yanomami, Desano, Wanano, Hupda, Dâw.
Levantamento realizado pelo Instituto Socioambiental (ISA) mostra que há cerca de 77 requerimentos minerários ativos para pesquisa e lavra nas áreas que compreendem as terras indígenas Jurubaxi-Téa, Rio Téa, Yanomami, Médio Rio Negro I, Médio Rio Negro II e Cué-Cué Marabitanas. Somente nas TIs Médio Rio Negro I e Médio Rio Negro II, são 20 requerimentos ativos. Referentes a ouro são 60 e os outros 17 a estanho, cassiterita, nióbio, cascalho e areia. Esse levantamento foi feito levando em conta a base de dados da ANM, que é pública, e dados da Funai sobre Terras Indígenas.
Conforme a ação, “alguns requerimentos minerários estão totalmente sobrepostos às comunidades, ilhas e sítios onde os povos indígenas vivem e cultivam suas roças ou em área limítrofes às comunidades, notadamente Maçarabi, Maniarí, Ilha de Cutia, Carixino, Plano, Aruti, Arauacá, Nova Esperança, Vila Nova, São José, Ilha do Pinto e Bacabal.”
O número de indígenas diretamente impactados com as autorizações da ANM chegam a três mil, com 61 comunidades sendo atingidas. Indiretamente, a liberação da atividade afeta negativamente 45 mil indígenas que vivem em 750 sítios e comunidades nos municípios de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos, todos na Bacia do Rio Negro.
Além do impacto a essas pessoas, há o dano ambiental: a região forma um mosaico de áreas protegidas que compreende as unidades de conservação Parque Nacional Pico da Neblina e a Floresta Nacional (Flona) do Amazonas, sendo também reconhecida como a maior região úmida do mundo, sendo reconhecida como sítio Ramsar em 2018.
Ao mesmo tempo que o número de autorizações da ANM para pesquisa e lavra no leito do Rio Negro avança, crescem as denúncias feitas por moradores de comunidades, indicando que a expectativa da legalização da atividade está levando ao aumento de ações ilegais.
“Isso mostra que esses atos e atitudes do poder público acabam fazendo com que a ganância pelo ouro e pelo garimpo ilegal pressione cada vez mais o território no Rio Negro”, diz Marivelton.
Segundo ele, a pressão já está impactando o modo de vida, a agricultura e a pesca. “O assédio às comunidades já está acontecendo. Chegam a obrigar as pessoas a trabalhar, como se fosse a única alternativa de renda. Esse modo violento muda o contexto e a rotina das comunidades. O nosso potencial econômico não é o minério. Não é através do garimpo que promovemos a sustentabilidade econômica das comunidades”, argumenta.
Em uma das denúncias recebidas pela Foirn, em 2021, indígenas relatam ameaças por pessoas estranhas que pretendiam exercer atividades mineral na região. Há denúncias de dragas nos rios Cauburis, Inambu, Arichana, Aiari, entre outros. A maior concentração de denúncias ocorre na região do Médio Rio Negro, onde os requerimentos minerários estão ativos na ANM.
O requerimento minerário é um dos passos do processo para liberação dessa atividade. O órgão responsável por esse procedimento é a ANM, mas quando envolve área de fronteira, é necessário que o Conselho de Defesa Nacional (CDN) dê anuência prévia sobre o pedido. O ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, é secretário-executivo do CDN e, em 2021, segundo levantamento feito pela Folha de S.Paulo, liberou sete projetos de exploração minerária em São Gabriel da Cachoeira.
Em maio de 2022, o Ministério Público Federal (MPF) se manifestou na ação popular ajuizada pelos parlamentares requerendo que a ANM providenciasse a imediata suspensão de todos os requerimentos ativos de pesquisa ou lavra minerária incidentes sobre as Terras Indígenas Médio Rio Negro 1 e Médio Rio Negro 2.
Leito do Rio Negro
A ANM vem liberando pesquisa e lavra de mineração no leito do Rio Negro, levando em conta que não é território indígena.
Mas a ação popular traz embasamento legal, recupera informações do processo da demarcação e, ainda, argumenta que o rio é parte essencial do território tradicional e deve ter a proteção prevista do artigo 231 da Constituição Federal.
Tal artigo diz que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”
“O rio é fundamental para as atividades produtivas dos indígenas, que dele retiram água e alimentos. Nele se locomovem a fim de manter as relações práticas e simbólicas entre os diversos povos indígenas que vivem na região. É dizer: o rio é elemento indissociável da possibilidade de reprodução física e cultural dos povos indígenas que nele habitam, segundo seus usos, costumes e tradições”, informa trecho da ação.
Laudo antropológico
Historiador, antropólogo e ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Márcio Meira foi o responsável pelo laudo do Ministério Público Federal (MPF) que levou a Funai a demarcar a TI Médio Rio Negro I e Médio Rio Negro II ainda na década de 1990.
Meira também participou dos trabalhos da própria Funai para a demarcação e explica que o relatório antropológico entregue ao MPF indicou a necessidade da demarcação da Terra Indígena Médio Rio Negro e, em momento algum, excluiu o leito do Rio Negro do processo.
A Funai acatou o laudo apresentado pelo MPF e encaminhou esse documento para o Ministério da Justiça – à época o ministro era Nelson Jobim –, que retirou o leito do Rio Negro da Terra Indígena e decidiu pela demarcação separada da Terra Indígena Médio Rio Negro I e Terra Indígena Médio Rio Nego II.
“Do ponto de vista antropológico e técnico essa retirada do leito do Rio Negro (da área considerada Terra Indígena) não faz o menor sentido. O laudo pericial identificou a Terra Indígena Médio Rio Negro incluindo o leito do rio e as ilhas como partes essenciais da terra indígena. Os indígenas usam o Rio Negro e o Rio Curicuriari, também na região, como paisagem ou paisagens essenciais para o seu modo de vida de acordo com seus usos e costumes e tradição, de tal forma que o território é área para a reprodução de seu modo de vida tradicional, o que está estabelecido na Constituição para a proteção”, explica Meira.
O argumento utilizado para a retirada do leito do Rio Negro foi a garantia de sua navegabilidade. Meira explica que o fato de estar na Terra Indígena não exclui a navegabilidade do rio e ainda reforça que a presença da mineração – com dragas e outros maquinários – é que pode prejudicar que embarcações trafeguem na região.
Além disso, explica o antropólogo, a inclusão do Rio Negro como terra indígena tem o efeito de protegê-lo de invasores ilegais, impedindo que seja “vítima” de atividades que prejudiquem a qualidade do rio enquanto paisagem.
Meira é testemunha da invasão garimpeira que a região sofreu antes da demarcação das terras, nos anos 1990. Ele relata que o Rio Negro chegou a ter aproximadamente 200 dragas e mil homens em trabalhos de garimpo ilegal – principalmente do ouro – na região, gerando uma onda de violência, com homicídios e prostituição.
“Outro ponto que devemos observar é que a retirada desses garimpeiros foi feita pela Polícia Federal, levando em conta o entendimento da Justiça Federal de que a área, inclusive o rio, estava em processo de demarcação”, reforça.
O risco atual, alerta Meira, é que as liberações da ANM para pesquisa e lavra no leito do Rio Negro levem à repetição da invasão garimpeira na região, mas de uma maneira ainda mais drástica. “Há o risco da situação se repetir de forma pior, com o aval do Governo Federal. Na década de 1990, o Governo Federal não incentivava o garimpo”, alerta.
O que pede a ação popular
- Sejam admitidos à lide na qualidade como litisconsorte ativos, ou seja, que o diretor-presidente da Foirn, Marivelton Barroso, do povo Baré, e o diretor e vice-presidente, Nildo Fontes, passem a ser parte da ação popular para figurar no polo ativo da ação judicial, já que os interesses são dos povos do Rio Negro.
- Reconhecimento ao Rio Negro da proteção constitucional do artigo 231 da Constituição já que o rio deve ser considerado como território tradicional dos povos indígenas que habitam a região, assim como as terras indígenas Médio Rio Negro I, Médio Rio Negro, Rio Téa e Jurubaxi-téa.
- Aponta ainda a dupla afetação – terra indígena e canal navegável – de forma a garantir que a navegação não seja prejudicada.
- A ação aponta ainda como motivo da suspensão os danos ambientais e violação de direitos de posse dos povos indígenas e aumento da criminalidade, além da ausência da observância do direito à consulta prévia, livre e informada;
- Há um pedido específico para indeferimento definitivo dos requerimentos minerários ativos nas ilhas e no leito do Rio Negro, assim como em áreas limítrofes às terras indígenas na região do médio rio Negro, que incidam ou não sobre as ilhas pertencentes à Terra Indígena Médio Rio Negro I.