O sócio-fundador e presidente do ISA, Márcio Santilli, defende que é possível concluir as demarcações de Terras Indígenas pendentes ainda no atual mandato presidencial
No início do mês, o presidente Lula assinou os decretos que homologam as demarcações de três Terras Indígenas: Potiguara de Monte-Mor (PB), do povo Potiguara; Morro dos Cavalos (SC), dos Guarani Ñandeva e Mbya; e Toldo Imbu (SC), dos Kaingang. Essas áreas estavam fisicamente demarcadas há anos e, agora, os respectivos processos administrativos estão quase concluídos, restando o registro em cartório e na Secretaria do Patrimônio da União (SPU).
Os atos presidenciais têm importância vital para as comunidades desses territórios, que lutam há muitas décadas por seu reconhecimento. Agora, poderão organizar melhor a gestão das áreas e estabilizar a relação com seus vizinhos. As homologações contrariam interesses políticos locais, notadamente do governador de Santa Catarina, Jorginho Mello (PL), que atua, de forma agressiva, contra os povos originários.
Agora, 518 Terras Indígenas têm demarcações concluídas (445 homologadas, 15 demarcadas pelo antigo Serviço de Proteção ao Índio, 48 reservadas e 10 dominiais), o que representa mais de 64% das 800 existentes. Outras 282 terras estão em processo de reconhecimento. Contudo, ainda há demandas territoriais que sequer tiveram seus processos iniciados. Nos seus dois mandatos anteriores, Lula já havia homologado 86 terras. Com as 13 do atual mandato, são 99.
Com esses decretos, Lula chega a 13 homologações desde o início deste mandato. Para concluir os processos que já se encontravam prontos para homologar no início do seu mandato, ainda falta o decreto relativo à Terra Indígena Xukuru-Kariri (AL), que espera por ele há 36 anos, desde o início do processo de demarcação e que Lula disse que vai assinar proximamente.
DECLARAÇÃO DE LIMITES
A homologação, por decreto, é a última etapa do processo de demarcação. Ele se inicia com a criação, pela presidência da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), de um grupo de trabalho, coordenado por um antropólogo, encarregado dos estudos para a proposição dos limites a serem demarcados, do levantamento fundiário e demais condições da área. A proposta de delimitação feita pelo GT é analisada pelo órgão e, se aprovada, sua presidência edita uma portaria com as coordenadas geográficas do seu perímetro, que é publicada no Diário Oficial da União (DOU).
Abrem-se, então, prazos para eventuais contestações à proposta de demarcação, para a defesa dela pela Funai e para a avaliação do ministro da Justiça que, ao aprová-la, por meio de uma portaria ministerial também publicada no DOU, determina que a Funai promova a sua demarcação física e constitui a decisão política sobre os limites da Terra Indígena. Atualmente, existem 36 terras com limites propostos pela Funai e à espera de decisões ministeriais, e outras 68 com limites já definidos pelo Ministério da Justiça, que estão sendo demarcadas ou esperam homologação.
Porém, o maior desafio para efetivar a demarcação de todas as terras indígenas é promover, ou concluir, a identificação das 151 terras que ainda não têm limites definidos, além de outras sete, sujeitas a restrição de uso devido à presença de povos isolados.
No atual mandato, foram editadas dez portarias declaratórias de limites, todas assinadas pelo ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski. O ex-ministro Flávio Dino não assinou nenhuma. Nos dois mandatos anteriores de Lula, foram editadas 79 portarias.
META HISTÓRICA
Na cerimônia de anúncio das três últimas homologações, Lula disse: “Temos mais dois anos de governo e vamos continuar trabalhando para que a gente possa legalizar e entregar todas as terras que estiverem na nossa possibilidade. Se um dia perguntarem para mim qual é o meu legado na Presidência, vou dizer: ‘o cara que mais autorizou Terras Indígenas nesse país. Foi no meu governo’”.
A Constituição diz que compete à União demarcar e proteger as Terras Indígenas. A disposição do presidente dá consequência à determinação constitucional. Além de reparar a dívida histórica com os povos originários, a conclusão do processo demarcatório ajudará a estabilizar a situação fundiária, pacificar conflitos e proteger o meio ambiente. Um estudo científico publicado recentemente mostra que as chuvas formadas pela evaporação ocorrida nas terras indígenas contribuem para irrigar 80% das áreas agrícolas do país.
A meta do presidente também é viável. Com 99 homologações, Lula está bem próximo das 110 efetivadas por Fernando Collor e pode alcançar as 143 de Fernando Henrique Cardoso. A agilização dos 68 processos, que dispõem de portarias ministeriais, já seria suficiente para isso. Para alcançar as 119 portarias declaratórias editadas nos governos FHC, o ministro da Justiça teria que editar mais 30 até o final do mandato.
É certo que, entre as pendências, existem casos complexos, de incidência de Terras Indígenas em áreas ocupadas por terceiros, em especial no centro-sul do país. E que a solução desses casos demanda novos instrumentos e recursos, como a indenização pela terra aos portadores de títulos legítimos, ou ocupantes de boa-fé. Essas soluções são urgentes pois, com o passar do tempo, os processos de ocupação irregular se adensam, agravando os custos sociais e financeiros das soluções.
Também é certo que a bancada ruralista e outros interesses contrariados vão continuar errando e, em vez de resolver, de uma vez por todas, essa pendência constitucional e histórica, devem insistir em leis e restrições às demarcações. A questão está em discussão no Supremo Tribunal Federal (STF) e há interesse crescente da opinião pública numa solução efetiva e definitiva. Havendo decisão política presidencial, nada disso impede o alcance da meta.