Centenas de pessoas prestigiaram a 13ª edição da Feira de Troca de Sementes e Mudas, onde foram lembrados os desafios enfrentados na pandemia de Covid-19
Reconhecido há quatro anos como patrimônio cultural imaterial brasileiro, o Sistema Agrícola Tradicional Quilombola do Vale do Ribeira (SATQ) reúne conhecimentos agrícolas, sociais e culturais das comunidades locais.
Uma das formas de preservar esse conjunto de saberes é por meio da Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira, que já está em sua 13ª edição. Após dois anos de pandemia, ela voltou a acontecer presencialmente, promovendo trocas de espécies agrícolas, afeto e conhecimento.
Durante o período, os quilombolas trabalharam em suas roças e encontraram formas de escoar sua rica produção a quem mais precisa. Um plano emergencial direcionou a variedade e fartura das roças para pessoas em situação de vulnerabilidade alimentar no Vale do Ribeira e na periferia da capital paulista. Com isso, além de promover a troca, a feira foi o momento de celebrar os desafios encarados durante os dois últimos anos de pandemia.
“Foi bastante triste ficar esses dois anos afastado. Muitos que estavam acostumados a participar da feira, trocar, vender e encontrar os amigos que só viam a cada ano, tiveram que dar um tempo. Mas, com a amenizada da pandemia, a gente pôde realizar esse momento tão esperado pelos produtores quilombolas e quem mais veio participar”, contou Jacira Rodrigues dos Santos Oliveira, coordenadora do quilombo Galvão e membro do Grupo de Trabalho da Roça (GT da Roça).
Organizada pelas associações quilombolas e seus parceiros, que formam o GT da Roça, o evento teve o maior público desde 2008, ano da primeira feira. Foram cerca de 250 pessoas no primeiro dia e 450 pessoas no segundo, entre quilombolas, estudantes, parceiros, visitantes de outros povos e comunidades tradicionais e também da agricultura familiar agroecológica.
Ações de salvaguarda do SATQ
O momento de trocas promovido pela feira é fundamental, pois permite a circularidade não somente das mudas e sementes agrícolas, mas também dos saberes entre comunidades e ajuda na manutenção do SATQ.
O conjunto de conhecimentos foi reconhecido em 2018 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), mas os saberes locais existem há séculos e são passados entre gerações por meio da oralidade e, atualmente, por meio de materiais escritos. A feira é um bom momento para perceber diversos aspectos do SATQ reunidos em um mesmo espaço.
A região é repleta de diversidade cultural, como aponta o Inventário Cultural de Quilombos do Vale do Ribeira, produzido pelo ISA em 2013. O levantamento foi feito com 16 comunidades e identificou 180 bens culturais, dentre celebrações, formas de expressão, edificações, lugares, ofícios e modos de fazer. Levando em conta que existem 34 comunidades na região, de acordo com a Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras (Eaacone), esse número de bens tende a ser ainda maior.
Dentre as manifestações culturais das comunidades, foi possível ver na feira apresentações de capoeira, do Puxirão Bernardo Furquim (Quilombo São Pedro), Nhá Maruca (Quilombo Sapatu) e Fandango (Quilombo Morro Seco). Com participantes de idades diversas nos grupos culturais, é possível notar a manutenção das tradições, com elas sendo passadas para as novas gerações de quilombolas.
Legado falado e registrado de forma escrita
“Os nossos antepassados deixaram um legado para gente seguir e para que as futuras gerações não percam esse modelo de fazer roça, de cultura, dança, pesca, erva medicinal e todo esse sistema que engloba o Sistema Agrícola Tradicional Quilombola. A Feira é uma das ações de segurança para que esse modelo de roça não se perca”, explicou Laudessandro Marinho, do quilombo Ivaporunduva e um dos autores dos livros Roça é vida (2020) e Na companhia de Dona Fartura (2022), uma história sobre cultura alimentar quilombola, que foi lançado durante o evento.
A obra mais recente, escrita e ilustrada por quilombolas e pessoas aquilombadas, valoriza a cultura alimentar quilombola em tempos de consumo de alimentos ultraprocessados e reforça a importância dos territórios e de quilombolas, fundamentais para a conservação da Mata Atlântica na região. Os dois materiais são uma estratégia de salvaguarda do SATQ, pois reconhecem a importância da oralidade no processo de transmissão de saberes e os materializa em escrita.
Para a produção do livro mais recente, o território foi fundamental. O ilustrador Vanderlei Ribeiro utilizou elementos encontrados nos quilombos para produzir as tintas que ajudaram a colorir as artes, como terra, carvão, proveniente da queima durante o processo de abertura das roças, e casca de jataí. “A gente sabe que condensar a riqueza das roças em um material não é fácil. E utilizar esses elementos foi uma forma de inserir a roça não só naquilo que ela é representada, mas também na composição física do projeto”, afirmou.
Fartura e cultura alimentar
Quem esteve presente no segundo dia da feira teve a possibilidade de provar refeições das roças quilombolas, feitas por um grupo de mulheres de diversas comunidades. Tradicionalmente, elas são as responsáveis pela alimentação do segundo dia da feira, possibilitando que as pessoas presentes possam sentir um gostinho do que quilombolas costumam comer nas comunidades do Vale do Ribeira.
“Os produtos servidos no almoço são naturais e vêm das comunidades. Os produtores doam tudo e a gente faz isso com carinho, porque é um alimento que vai servir a nossa própria família”, narrou, orgulhosa, Valni de França, do quilombo São Pedro.
Ela, que sempre participa da feira como cozinheira, lembra que o evento é, acima de tudo, de celebração. “Roça, para nós, é vida! Para nós plantar é ter o que comer hoje”.
Assista à reportagem de Gilmar Kiripuku:
O que é o Sistema Agrícola Tradicional Quilombola (SATQ)?
Segundo o Iphan, o Sistema Agrícola Tradicional Quilombola é “um conjunto de saberes e técnicas acumuladas na pesquisa e observação das dinâmicas ecológicas e resultados de manejo, oriundas do repertório de conhecimentos agrícolas, ambientais, sociais, religiosos e lúdicos das comunidades quilombolas”.
Embora haja o termo “agrícola”, o SATQ envolve outros elementos para além do plantio de sementes crioulas, como, por exemplo, os festejos locais, técnicas de manejo de paisagem, conhecimentos de influência da lua para os plantios, e a importância da oralidade como forma de repassar essas informações adiante.
Além do SATQ, reconhecido em 2018 como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro pelo Iphan, o próprio Vale do Ribeira (com as suas 31 cidades - 22 em São Paulo e 9 no Paraná) é reconhecido desde 1999 pela Unesco como Patrimônio Natural, Socioambiental e Cultural da Humanidade.