Odorico, Edinho e Modesto superam desafios e fazem história na Universidade Federal do Amazonas (UFAM) com dissertações que valorizam o conhecimento ancestral

“O pensamento vem da floresta, vem do rio, vem da casa”, afirmou Odorico Xamatari na defesa de sua dissertação de mestrado, realizada em 23 de abril, em Manaus (AM). Essa frase resume não apenas uma trajetória acadêmica, mas um marco na história da educação brasileira: pela primeira vez, três Yanomami — Odorico, Edinho Xamatari e Modesto Amaroko — tornaram-se mestres pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
Os três pesquisaram temas da própria cultura com o desejo de que o conhecimento dos pata — os anciãos e lideranças de seu povo — seja registrado e ensinado às futuras gerações. Também enfrentaram grandes desafios — como a seca dos rios e a falta de alimentação, computadores e recursos. Ainda assim, persistiram.
Ao final, suas defesas não aconteceram apenas entre paredes universitárias: ecoaram no auditório lotado da UFAM, mas também entre os xapono — casas coletivas dos Yanomami. Foram, ao mesmo tempo, ritual e resistência, ciência e encantamento.
Davi Kopenawa, xamã e liderança histórica do povo Yanomami, acompanhou com orgulho a trajetória dos três mestres e integrou as bancas de avaliação, amparado por seus títulos de Doutor Honoris Causa concedidos pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e pela Universidade Federal de Roraima (UFRR).
“Quando vocês eram pequenos, eu já lutava para que nosso povo não fosse apagado. Lutava contra um governo que nos matava. Hoje, essa luta floresce em vocês, e isso me enche de orgulho”, disse.

Odorico, Edinho e Modesto escreveram seus projetos de pesquisa em língua Yanomami, o que surpreendeu a UFAM. A universidade trabalha com projetos em português, mas entendeu a necessidade de contemplar os projetos em língua Yanomami. A vontade de pesquisar nasceu inspirada pelo trabalho de Davi Kopenawa e sua obra A Queda do Céu, referência fundamental para o trio.
Mas o caminho até a conclusão dos estudos exigiu resistência: enfrentaram até os efeitos das mudanças climáticas, que provocaram uma das secas mais severas do Amazonas que interrompeu o calendário tradicional das aulas. Diante disso, foi preciso se adaptar: os professores seguiram até os xapono dentro da Terra Indígena, onde o conhecimento continuou a circular, mesmo em meio à crise ambiental.
Os trabalhos se concentraram em músicas tradicionais dos Yanomami, xamanismo e como um indígena se torna um hekura (xamã) e sobre o uso da linguagem Yanomami no ensino. Os trabalhos também trazem reflexões sobre a relação dos indígenas mais jovens com a tecnologia, especialmente os celulares que abriram uma nova dimensão de acesso à cultura e idioma dos não indígenas.
Derrubada da barreira linguística

De acordo com Caio Augusto Teixeira Souto, coordenador do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia da UFAM, o primeiro desafio do programa foi receber os três projetos em Yanomami.
Embora a UFAM já houvesse contado com defesas em línguas indígenas, o mestrado previa apenas a apreciação de projetos em português.
O edital precisou ser retificado e, para viabilizar a tradução dos projetos, o programa contou com a assessoria de Silvio Cavuscens, coordenador da Associação Serviço e Cooperação com o Povo Yanomami (Secoya), organização que atua há mais de três décadas junto aos Yanomami do rio Marauiá.
“Ficou evidente que havia ali não apenas temas consistentes, mas uma lógica própria de construção do conhecimento, com objetivos, justificativas e metodologias profundamente articuladas à cosmologia e à realidade Yanomami”, detalhou Souto ao Instituto Socioambiental (ISA).
Uma vez aprovados, os Yanomami precisavam lidar com um novo desafio: não havia bolsas disponíveis e eles ainda precisariam se deslocar de suas comunidades até o Centro de Estudos Superiores de São Gabriel da Cachoeira da Universidade do Estado do Amazonas (UEA).
“Sem dinheiro, ninguém pesquisa. Sem dinheiro, a gente nem chega nos espaços onde acontecem o mestrado”, resume Odorico. Segundo ele, além do deslocamento, ainda os mestres Yanomami precisavam de alojamento, alimentação e equipamentos básicos para uma pesquisa nos dias atuais. Eles começaram os estudos sem computadores ou notebooks, e fizeram as anotações à mão ao longo do primeiro ano de mestrado.
Modesto e Odorico são do xapono Balaio, Edinho iniciou o curso morando no Pohoroá, depois ajudou a fundar outro xapono, o Cachoeirinha. Todos no Rio Marauiá, de onde os Yanomami levavam em média até quatro dias para se deslocar até o centro de estudos.
Em São Gabriel da Cachoeira, eles foram abrigados na casa de apoio da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn). Para comer, fizeram um acordo com um restaurante e acumularam uma dívida que começaria a ser paga quando recebessem as bolsas.
“Isso foi me deixando preocupado e comi cada vez menos até começar a receber a bolsa”, explicou Edinho.
“No segundo semestre de 2023, com a estiagem severa que atingiu o Amazonas, os rios secaram e eles ficaram presos nos seus territórios, sem conseguir retornar às aulas e sem meios de comunicação com a coordenação do curso. Foi essa situação que nos levou a organizar um deslocamento ao território Yanomami para realizar a orientação e as aulas finais de uma disciplina obrigatória em regime domiciliar”, afirma o coordenador na UFAM, Caio Augusto Teixeira Souto.
Para realizar as aulas no xapono, os professores que orientaram as pesquisas, Souto e Agenor Cavalcanti de Vasconcelos Neto, também tiveram que contar com improvisos. Os docentes foram enviados pela UFAM para São Gabriel da Cachoeira para implementar bolsas concedidas a partir de 2024 por um período de 12 meses.
No entanto, a universidade não tinha condições de custear a ida da dupla ao xapono. Eles pediram apoio à Foirn e conseguiram passagens fluviais até Santa Isabel do Rio Negro. E para chegar à casa dos mestrandos, os professores contaram com ajuda de seus pupilos.
“O próprio Odorico assumiu o protagonismo dessa missão e, num dia, vendo nosso incômodo por não termos conseguido apoio logístico para subir o Marauiá, nos disse: ‘Está tudo pronto. Eu levo vocês na minha rabetinha [pequena embarcação com motor]’. Era um gesto de autonomia e liderança: foi ele quem organizou toda a travessia, juntamente com sua esposa e filha, e mais um parente na pilotagem da pequena embarcação”, contou Caio.
Modesto conta em sua dissertação que houve uma longa conversa com o pata da comunidade para que os professores fossem recebidos com um reahu (festa em Yanomami). A chegada dos professores e a grande festa também foi registrada nos outros dois trabalhos.
“Nós pensamos que esse encontro tinha que mostrar bem claro que nós Yanomami também temos o nosso jeito próprio de ensinar e aprender. Não era só uma visita qualquer. Era uma oportunidade para mostrar aos professores napë (o outro, não Yanomami, não indígena) como é o conhecimento yanomami dentro do xapono”, documenta trecho da dissertação de Modesto.
Segundo Caio, a convivência no xapono se transformou em uma verdadeira troca de saberes: enquanto os professores ensinavam sobre metodologia e pesquisa, os Yanomami ensinavam como atar uma rede e regras de convivência, como não usar uma panela sem permissão porque passa a mensagem que você está rejeitando a comida da outra pessoa.
‘Matohi é arte e é ciência’

“Matohi é arte e é ciência”, escreveu Odorico em trecho da conclusão de sua pesquisa intitulada “Matohi Yanomami: Uma Autoetnografia do Corpo de um Aprendiz de Hekura do Xapono Balaio do Rio Marauiá/AM”.
Odorico Xamatari Hayata Yanomami foi o primeiro a apresentar sua defesa na manhã de 23 de abril. Sua pesquisa investiga os matohi — objetos sagrados utilizados pelos Yanomami no processo de se tornarem hekura, ou xamãs.
Na região em que Davi Kopenawa vive, matohi se escreve matehipë e hekura tem o mesmo significado que xapiri (espíritos e estado de transe alcançado pelos xamãs), conforme relatou o Dr. Paulo Roberto de Sousa. Yanomamɨ, sanöma, ninam, yanomam, ỹaroamë, yãnoma são as seis línguas faladas na Terra Indígena Yanomami.
“O pensamento vem da floresta, vem do rio, vem da casa. É assim que se forma o pensamento que me deu a ideia da autoetnografia. Eu falo do meu corpo que é espírito e arte”, disse Odorico em sua banca de defesa.
Ainda de acordo com a dissertação de Odorico, ele optou por uma metodologia interdisciplinar, que prioriza o respeito pelos costumes do povo dele. A autoenografia estava posta por falar da própria experiência.
“Uma universidade amazônida se reencontra com ela mesma em um momento como este em que trazemos indivíduos como este para ela. Foi um prazer ler o trabalho do Odorico e ele precisa ser publicado”, disse o Dr. Theo Machado Fellows.
Além de Theo, Davi e Paulo como membros da banca, estiveram na avaliação a orientadora Drª Marilena Corrêa da Silva Freitas e os co-orientadores Dr. Agenor Neto e Caio Souto.
Waika Karina

Edinho Yanomami Yarimina Xamatari foi o segundo a fazer a defesa da dissertação em 23 de abril. Em “Pohoropihiwitéri Pë ã Rii Rë Haiwei - A Língua Materna Dos Yanomami De Pohoroá”, Edinho investiga mudanças na língua Yanomami e formas de garantir o ensino mais tradicional possível - da maneira como a língua é atualmente, antes de novas interferências - para os mais jovens.
Ciente da diversidade linguística entre os povos da Amazônia — inclusive entre os próprios Yanomami —, Edinho decidiu investigar a língua falada no xapono Pohoroá, em Santa Isabel do Rio Negro. Ele a identifica como Waika Karina, idioma específico de sua comunidade.
“Eu sempre soube que queria fazer um trabalho sobre a língua Yanomami e o meu povo me ajudou a construir a minha dissertação. Eu estava buscando, resgatando e construindo tudo em Yanomami para que outros jovens possam saber falar com as palavras Yanomami. Eu gostei muito de fazer este trabalho, este sempre foi o meu pensamento de pesquisa e agora penso que pode servir para o futuro. Estou muito emocionado com o trabalho que eu fiz para o meu povo”, disse ao ISA.
Edinho é professor em sua comunidade e notou que no próprio xapono existem diferenças do Waika Karina entre os rohote (velhos) e ihiru (meninos/crianças). A partir disto, ele criou um glossário com palavras e expressões-chave para a educação das crianças.
“A epígrafe que abre o trabalho dele já é impactante: ‘nós também temos ciência’. E esta é uma frase dele em um trabalho em que ele faz um contraponto entre a educação escolar indígena e a educação escolar Yanomami”, argumentou a Drª Marilina Conceição Pinto, membro da banca.
Embora já existam glossários e dicionários Yanomami, Edinho argumenta que os outros partem da perspectiva de não indígenas, enquanto a dissertação dele representa uma pesquisa a partir da perspectiva de um Yanomami investigando o próprio povo.
‘A todo povo Yanomami’

Dedicado “a todo povo Yanomami”, A Pesquisa “Amõa Yanomami: Reflexões Sobre A Função e as Transformações das Amõas (Músicas) Na Vida Do Xapono Balaio Do Rio Marauiá” faz uma relação entre as canções tradicionais e o aprendizado de conhecimentos tradicionais, principalmente a língua.
Modesto Yanomami Xamatari Amaroko encerrou as defesas de dissertação de mestrado dos Yanomami. Na introdução de sua pesquisa, ele explica que optou pela oralidade e por anotações feitas à mão — tanto por respeito à forma tradicional de transmissão de saber entre os Yanomami quanto pela falta de recursos para adquirir um computador no primeiro ano do curso.
Ainda conforme a pesquisa, as amõas são ensinadas desde a infância e há músicas para tudo: dormir, acordar e brincar. No entanto, nem todo mundo pode cantar todas as amõa, há canções específicas para pajés e mulheres.
“Eu pesquisei a minha própria cultura. O mais importante foi poder falar sobre amõa (música). Isso é importante para mim, mas também para as crianças e jovens de onde eu moro, além de ter sido muito proveitoso para os caciques. Mas, não foi nada fácil porque minha família, minha própria comunidade, não queriam liberar o tema para mim. Mas eu insisti e pedi permissão às lideranças para pesquisar amõa”, explicou Modesto ao ISA.
A pesquisa de Modesto reflete ainda sobre a relação dos Yanomami mais jovens com as músicas dos não indígenas desde que os celulares chegaram às comunidades. Modesto pontua que parte dos muitos jovens diz não ser mais Yanomami, mas sim “filhos dos napë” desde que começaram a ouvir forró, sertanejo, funk e outros ritmos musicais.
“O que eu quero dizer sinceramente é: obrigado, Modesto. Obrigado, povo Yanomami. Vocês mudaram o meu pensar e encheram o meu coração de esperança”, disse o Dr. João Gustavo Kienen, membro da banca de Modesto.
O trabalho de Modesto apresenta ainda as sete amõas que foram cantadas quando os professores Agenor Neto e Caio Souto chegaram ao xapono Balaio. Ele explica o significado que cada uma delas tem e ainda apresenta um documentário como produto da pesquisa.
Intitulado “Mestres Yanomami do Rio Marauiá”, o audiovisual conta a jornada dos três mestres a partir de suas próprias palavras orais, como preferem os Yanomami. O material tem duração de 30 minutos e foi exibido pela primeira vez após a palestra de Davi Kopenawa na UFAM, em 22 de abril.
Assista ao documentário abaixo: