De janeiro a agosto de 2022, mais de seis mil focos de calor foram detectados na Bacia do Xingu, revela o monitoramento da Rede Xingu+
É pelo olhar dos comunicadores mebengôkrê que é realizado o registro das rodadas de estruturação do Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) da Terra Indígena Kayapó. No ciclo de agosto de 2022, no entanto, os comunicadores viram a fumaça tomar conta da TI Kayapó e "queimar" os olhos que fazem a captação de informações valiosas sobre a Bacia do Rio Xingu.
Assista ao vídeo com imagens dos efeitos das queimadas na Terra Indígena Kayapó:
Kadjátnhoro Kayapó e Kubekàkre Kayapó fazem parte do coletivo de cineastas Beture e representam a Associação Floresta Protegida na Rede de Comunicadores da Rede Xingu+. Durante sete dias, os comunicadores estiveram presentes em 10 aldeias para fotografar e filmar as reuniões de elaboração do instrumento de gestão ambiental e territorial, que está sendo pensado pelos Mebengôkrê para a manutenção e proteção de seus territórios e modos de vida para as futuras gerações.
"Há poucos dias, sentimos a fumaça das fazendas se aproximar das nossas aldeias. Nunca vimos uma quantidade de fumaça como essa no nosso território. Não conseguimos enxergar nada!” relatou Kubekàkre Kayapó. “A gente não conseguia respirar e ficamos com muita tosse e gripe. Os olhos de todos ficaram quentes! Para viajar é muito difícil, temos que descer em baixa velocidade o rio para não correr o risco de nos acidentarmos".

A fumaça, que agora toma os caminhos fluviais e terrestres de acesso às aldeias da rota Rio Xingu da TI Kayapó, é resultado dos focos de incêndio de origem criminosa que destroem as florestas do entorno do território para avançar com as “fronteiras agrárias”.
“O Rio Xingu está em chamas e nunca sentimos a água tão quente”, contou Kadjátnhoro Kayapó, durante o deslocamento por voadeira entre a aldeia Kôkrajmôrô e a base de vigilância do Xingu. O percurso foi tomado pela fumaça, o que coloca em risco a vida dos Mebêngôkre, que têm como única opção para o trajeto entre as aldeias o transporte fluvial.

O Rio Xingu é fonte vital tanto para os animais como para os Mebêngôkre, que estão vendo a caça e os peixes sofrendo pelo aumento da temperatura das águas dos rios.
A temporada do fogo na Amazônia ocorre nos meses mais secos do ano, entre maio e setembro, quando a matéria orgânica seca acumulada na floresta contribui para o avanço das chamas sobre os territórios.
A fragmentação da floresta por conta do desmatamento, o aumento da temperatura como consequência das alterações climáticas globais, os eventos de secas mais intensas e a reincidência do fogo em áreas já queimadas têm resultado no ressecamento e degradação gradual das florestas, tornando as Terras Indígenas e Unidades de Conservação mais vulneráveis às queimadas e com menor capacidade de regeneração.
Mais de 6 mil focos de calor foram detectados na Bacia do Xingu entre janeiro e agosto de 2022. Desse total, 68% ocorreram somente no mês de agosto, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que utilizou dados do satélite de referência Aqua M-T, sensor MODIS.
O número de focos de calor foi 75% maior em agosto de 2022, se comparado com o mesmo mês de 2021.
No Mato Grosso, as áreas com mais densidade de focos estão situadas próximas às rodovias MT-130 e MT-322, nos municípios de União de Sul, Marcelândia e Peixoto de Azevedo.
Tanto no Mato Grosso quanto no Pará, as regiões mais degradadas pelo fogo estão ao lado de Terras Indígenas, como é o caso das TIs Baú, Capoto/Jarina e o Território Indígena do Xingu.
A rodada pela rota Rio Xingu para elaboração do plano de gestão da Terra Indígena Kayapó foi coordenada pela Associação Floresta Protegida e contou com a participação das aldeias Pykarãrãkre, Kamôktidjãm, Kawatire, Kruwanhõngô, Tepkatinhõngô, Rikaro, Kamure, Kôkrajmôrô, Madjỳre, Pokro, Kokotkrere, acessadas pela via fluvial.
Já pela via terrestre, na chamada “linha seca” da TI, estão as aldeias participantes Tepdjàti, Kremajti e Akrotidjam.
Foi com muita resistência que, em 2011, os Kayapó-Mebêngôkre retomaram parte da TI Kayapó, invadida por fazendeiros, que já haviam ocupado boa parte do território com pasto para criação de gado, e fundaram as aldeias Tepdjàti, Kremajti e Akrotidjam para impedir o avanço da destruição em seu território.
Entretanto, nos limites do entorno da TI, os fazendeiros continuam com seu projeto de desmatamento da floresta, utilizando o fogo como principal ferramenta.
A fumaça gerada por essas queimadas carrega partículas em suspensão, chamadas PM2.5, que têm a capacidade de penetrar profundamente no pulmão, ocasionando processos inflamatórios, dores de cabeça, dores no corpo e outros sintomas de infecção respiratória. Nas três aldeias, todos os habitantes relatam estar sofrendo com doenças respiratórias.
Arraste para os lados e veja o aumento dos focos de incêndio na Bacia do Xingu:
Os olhos do Xingu ardem, mas seguem atentos
Os comunicadores da Rede Xingu+ fazem circular informações importantes para a manutenção da conectividade do Corredor de Áreas Protegidas do Xingu. Ao todo, são 26 comunicadores, que utilizam ferramentas de comunicação ágeis para reunir e divulgar fatos e ações pertinentes ao monitoramento e proteção dos seus territórios.
O comunicador Mebêngôkre-Kayapó Po-Yre Mekragnotire, que representa o Instituto Kabu na Rede Xingu+, relata com muito pesar que a saúde das crianças e dos mais velhos da Terra Indígena Menkragnoti está sendo afetada pelas queimadas, que estão a dois quilômetros de uma das aldeias no limite da TI.
Três anos após o "Dia do Fogo”, série coordenada de incêndios florestais ocorrida em agosto de 2019, as queimadas de 2022 quebram os recordes. O monitoramento da Rede Xingu+ registrou o crescimento da área queimada entre 2021 e 2022: o fogo queimou 75% a mais nos oito primeiros meses de 2022, em comparação ao mesmo período de 2021.

Em conjunto com a abertura de estradas ilegais, desmatamento, garimpo ilegal, grilagem de terras e roubo de madeira, os incêndios ilegais representam uma grande ameaça à vida dos 26 povos do Xingu e centenas de comunidades ribeirinhas que vivem na Bacia do Xingu.
Xingu por um fio!
O monitoramento da Rede Xingu+ aponta o estado crítico em que o Xingu se encontra. A região é alvo de diferentes frentes de degradação ambiental nas Áreas Protegidas, especialmente nos últimos anos, diante do enfraquecimento dos órgãos públicos de fiscalização e dos incentivos às atividades ilegais pelo atual governo.
Em 2022, foi detectada uma estrada clandestina de 42 km que atravessa o coração do Xingu, nas Unidades de Conservação (UC) Estação Ecológica Terra do Meio e Floresta Estadual do Iriri. A via faz parte de duas frentes de invasão, uma que sai de São Félix do Xingu (PA) e outra de Novo Progresso (PA). Se nada for feito, e no atual ritmo, é provável que as frentes se encontrem e formem uma estrada só.

A abertura desse ramal no coração da Bacia do Xingu significa a quebra de conectividade do Corredor Socioambiental do Xingu, uma vasta extensão de Áreas Protegidas que se estende por 26 milhões de hectares. A integridade do corredor Xingu garante, além da proteção dos modos de vida dos povos indígenas e comunidades tradicionais que vivem nesse território, a sobrevivência de espécies aquáticas e terrestres, incluindo espécies ameaçadas e endêmicas, a proteção dos rios e nascentes e a regulação do clima a nível regional e global.
A quebra da conectividade deste bloco tão importante de Terras Indígenas e Unidades de Conservação, que historicamente tem barrado o desmatamento em uma das áreas mais cobiçadas da Amazônia, representa uma ameaça imediata a todos que dependem das florestas e rios para sua sobrevivência, assim como aos serviços ambientais prestados por eles.
A Rede Xingu+ é uma aliança entre as principais organizações indígenas, ribeirinhas e da sociedade civil que atuam nas Áreas Protegidas da Bacia do Xingu. Ao todo são 32 organizações-membro que compõem a Rede Xingu+, sendo elas 22 associações indígenas, cinco ribeirinhas e cinco organizações da sociedade civil. Juntas, elas indicaram 26 comunicadores indígenas e ribeirinhos para formar o coletivo de Comunicadores da Rede Xingu+, em 2019. Acompanhe o monitoramento das principais ameaças à Bacia do Xingu no site da Rede Xingu+.