Sob Bolsonaro, invasores cortaram ao meio um dos maiores maciços florestais do mundo, acelerando o ponto de não retorno que pode desertificar a Amazônia
O Xingu está por um fio e corre o risco de ser devastado pela invasão ilegal de grileiros, garimpeiros e madeireiros. O monitoramento por satélite da Rede Xingu+ detectou uma estrada clandestina de 42,8 km que atravessa duas Unidades de Conservação (UC) no coração do Xingu: a Estação Ecológica (ESEC) Terra do Meio e a Floresta Estadual do Iriri.
A descoberta é grave pois, segundo especialistas, a abertura da estrada consolida a divisão do Corredor Socioambiental do Xingu, uma vasta extensão de áreas protegidas contíguas e que totalizam 53 milhões de hectares de floresta tropical. Em maio de 2022, além da estrada, 907 hectares foram desmatados na ESEC e na Fes do Iriri.
A estrada ilegal tem 42,8 quilômetros de extensão e corta uma área imensa de floresta nativa. A via une duas frentes de invasão: uma saindo de Novo Progresso (PA) e outra saindo de São Félix do Xingu (PA). As duas cidades são polos de criminalidade, com serrarias para beneficiamento da madeira ilegal e casas de compra de ouro dos garimpos ilegais. A nova estrada monitorada cria um “corredor logístico” do crime, conectando modais fluvial (barco) e rodoviário (caminhonete/caminhão).
A conexão facilita o escoamento de produtos ilegais retirados da floresta. Por isso, estradas são vetores perigosos de desmatamento. A tendência é que, no entorno de um ramal como este, a destruição da floresta exploda. Não à toa, no último mês, 575 hectares foram derrubados na imediação dessa estrada.
A estrada clandestina segue a rota de desmatamento da Área de Proteção Ambiental (APA) Triunfo do Xingu, vizinha à Estação Ecológica. É como se a destruição generalizada da APA que, desde 2013, é a UC com maior desmatamento acumulado do país, transbordasse para a ESEC, consolidando um corredor da destruição e partindo o Xingu ao meio. Só em maio de 2022, a APA registrou mais de 9,7 mil hectares.
Já dentro da ESEC, a estrada parte do Rio Iriri e vai até perto do território da Floresta Estadual (FES) do Iriri. Dessa forma, este canal é um vetor de pressão que sozinho incide sobre três UCs da região.
A rachadura na floresta, se confirmada, é a consolidação de um cenário muito próximo da divisão do corredor, resultando na perda da conectividade florestal e todos os benefícios associados.
O processo acelera o ponto de não retorno da Amazônia, podendo provocar uma perda de 25% da cobertura nativa do bioma.
Também, aumenta o "efeito de borda". A mata das bordas da floresta é mais frágil, ressecada e vulnerável a eventos como queimadas.
Trata-se de um caso que simboliza as consequências da atuação do Governo Bolsonaro, que incentiva o avanço das atividades ilegais na Amazônia.
Hoje, o Corredor Xingu presta serviços inestimáveis ao planeta, com a proteção de rios e nascentes e a regulação do clima a nível regional e global.
Suas florestas estocam 16 bilhões de toneladas de carbono, e lançam diariamente cerca de um milhão de toneladas de água na atmosfera em forma de vapor, que formam os chamados "rios voadores" e levam chuvas para o resto do país.
A conectividade de um corredor, isto é, áreas de preservação contíguas e que formam grandes maciços florestais, têm funções importantes em um ecossistema. A perda de conectividade tem impacto direto em espécies aquáticas e terrestres, por exemplo, impedindo as migrações sazonais.
A ausência de conectividade também resulta no aumento dos problemas de fronteira e da instabilidade do habitat natural, podendo acarretar desastres ecológicos como, por exemplo, a desertificação e erosão de solo, alterações climáticas ou a extinção de espécies.
“A conectividade desempenha um papel importante na proteção hídrica e dos solos e reduz as áreas de transição entre ambientes de floresta e não floresta. Por exemplo, sabemos que na Amazônia existem cerca de três mil espécies de coronavírus (em morcegos), e o aumento de áreas de transição entre floresta e não floresta, causada pelo desmatamento e redução da conectividade, podem aumentar o risco de novas pandemias”, explica Antonio Oviedo, pesquisador do Instituto Socioambiental (ISA).
Além disso, com a "logística" construída, casos de invasão nas Terras Indígenas e outras Unidades de Conservação da região tendem a crescer ainda mais. As estradas interligadas dentro da floresta permitem o escoamento dos produtos da ilegalidade, impulsionando o roubo de madeira e o garimpo. Também, valoriza as terras dentro de um mercado informal e ilegal de venda de terras roubadas, abrindo caminho para a grilagem e a derrubada da floresta.
O alerta está dado: em pouco tempo, a estrada pode causar o fim do Corredor Xingu se nada for feito.
A Rede Xingu+ protocolou denúncia ao Ministério Público Federal (MPF) no último mês. “É necessária uma ação rápida de comando e controle para interromper o funcionamento da estrada e impedir o avanço do desmatamento nessa região. Não estamos mais falando de uma destruição pontual, mas de uma divisão irreversível de um dos principais corredores ecológicos do mundo, cujas consequências podem se estender por anos”, afirma Biviany Rojas, pesquisadora do ISA.
No caso da Fes do Iriri, o crescimento da estrada é um alerta para a inação estadual. O governador do Pará, Helder Barbalho (MDB-PA), tem se apresentado como um político conectado às causas do meio ambiente. Ele participou de conferências na área e captou dinheiro de cooperação internacional para o cumprimento de metas climáticas.
No entanto, o discurso não tem respaldo na atuação em campo, como mostra o crescimento da destruição da FES do Iriri. A inação do governo federal em reprimir os ilícitos nas UCs Federais tem se repetido no contexto do governo do Estado do Pará.
Para além de uma operação pontual de fiscalização, a situação exige ações permanentes e de longo prazo, que não só retirem os invasores como impeçam que eles voltem a entrar nessas áreas. Caso contrário, em pouco tempo, a devastação nessa região pode estar consolidada.
Contexto e histórico de denúncias
A destruição da ESEC já vinha acontecendo em um ritmo crescente. Em 2021, o monitoramento da Rede Xingu+ detectou 2.309 hectares de floresta derrubada, o que representa um aumento de 122% em relação a 2020. Além disso, é conhecida a existência de atividade garimpeira ilegal, com a reativação de garimpos antigos e de pistas de pouso ilegais no meio da floresta.
Desde 2018, a Rede Xingu+ vem denunciando aos órgãos estaduais — Ministério Público Estadual (MPE), Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (SEMAS/PA) e Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade do Estado do Pará (Ideflor-Bio) — a ocorrência de novos e grandes polígonos de desmatamento na APA Triunfo do Xingu, inclusive indicando possíveis envolvidos, sem ter obtido qualquer resposta institucional satisfatória.
Apesar de ter sido criada em 2006, a APA Triunfo do Xingu ainda não dispõe de Plano de Manejo, Uso e Zoneamento, o que exemplifica a falta de gestão da UC. Por isso, a Rede Xingu+ solicitou às autoridades estaduais a implementação dos instrumentos de gestão, além do estabelecimento de uma zona de amortecimento no entorno da unidade, de forma a resguardar as áreas protegidas do entorno.
O total descontrole fundiário e ambiental da APA Triunfo do Xingu vem resultando em invasões e crimes ambientais nas áreas protegidas localizadas em seu entorno: Fes do Iriri, ESEC Terra do Meio, Parque Nacional Serra do Pardo e Terra Indígena Baú.
O desmatamento na ESEC Terra do Meio está majoritariamente concentrado ao longo das estradas e vicinais ilegais, todas advindas da APA Triunfo do Xingu.
Mesmo os polígonos de desmatamento mais isolados estão relacionados às estradas ilegais, uma vez que garantem o acesso a áreas remotas e de floresta densa. Além das invasões e do desmatamento, o caos fundiário e ambiental da APA Triunfo do Xingu também impacta a qualidade dos cursos d’água da ESEC.