Lideranças da Rede Xingu+ apresentam panorama de destruição dos últimos quatro anos e exigem ações efetivas para preservar barreira de proteção do bioma
Se o novo governo quiser cumprir as promessas de campanha e demonstrar efetividade no combate à destruição ambiental, a Bacia do Xingu terá de ser um alvo prioritário. O imenso maciço florestal na Amazônia Oriental, composto pelo Corredor de Sociobiodiversidade do Xingu, é uma das principais barreiras para o avanço da destruição no bioma e está sob forte ameaça.
Nos últimos quatro anos, no governo de Jair Bolsonaro, a destruição avançou a uma velocidade de 200 árvores derrubadas por minuto, totalizando 730 mil hectares de floresta no chão – uma área equivalente à região metropolitana de São Paulo. Os dados são do Sirad-X, sistema de monitoramento da Rede Xingu+.
Grilagem, incêndios florestais, uso indiscriminado de agrotóxicos, roubo de madeira, obras de infraestrutura, mineração e garimpo compõem um cenário desolador de pressões sobre essa região. O Xingu é hoje uma das principais barreiras para o desmatamento da Amazônia e cumpre funções ecológicas fundamentais para o Brasil e para o mundo.
Para fazer um alerta sobre a gravidade da situação, a Rede Xingu+, articulação que reúne 32 organizações indígenas, ribeirinhas e indigenistas da região, lançou um mapa-ativista, intitulado “Xingu Sob Pressão”. Ele traça um panorama dessas ameaças. Paralelamente, a Rede também produziu um documento detalhando casos emblemáticos de todos esses tipos de pressão.
O mapa e o documento foram apresentados aos principais órgãos federais. Uma comitiva de lideranças de diferentes regiões do Pará e Mato Grosso, como Mydjere Mekrãgnotire, Ianukula Kaiabi, Doto Takak-Ire, Ewésh Yawalapiti Waurá e Giliarde Juruna, se reuniu com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o novo Ministério dos Povos Indígenas (MPI).
Uma boa notícia já veio dessas reuniões. No Ibama, os membros da Rede Xingu+ obtiveram do presidente do órgão, Rodrigo Agostinho, o compromisso com a manutenção da vida na Volta Grande do Xingu.
Hoje, a região vive uma disputa pela água que é liberada pela usina hidrelétrica de Belo Monte. “A garantia que eu posso dar é que com esse Hidrograma de Consenso esquece a licença. A prioridade nossa é a vida no Xingu”, afirmou.
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O Hidrograma de Consenso é uma proposta de vazão de água para a região que tem impedido a reprodução dos peixes e a manutenção da vida no Xingu. No momento, o Ibama discute a licença de operação da usina, que está vencida desde o fim de 2021.
Agostinho reafirmou que a proposta apresentada por pesquisadores da academia, indígenas e ribeirinhos, o Hidrograma das Piracemas, está sob análise e que qualquer proposta que seja aprovada deve garantir a vida na região.
Desmatamento em explosão
Os dados mostram que, em 2022, o desmatamento na Bacia do Xingu foi 12% maior em comparação a 2018, ano anterior ao início do mandato de Bolsonaro. Nas Áreas Protegidas, o cenário é catastrófico: ao longo dos quatro anos, elas concentraram cerca de 37% do total desmatado na bacia.
Das seis Terras Indígenas mais desmatadas na Amazônia Legal em 2022, cinco estão no Xingu: Apyterewa, Cachoeira Seca, Ituna Itatá, Trincheira-Bacajá e Kayapó. Juntas, elas alcançaram mais da metade (60%) do desmatamento de todas as Terras Indígenas da Amazônia legal.
Já o aumento do desmatamento para garimpo entre 2018 e 2022 foi de 21%. Essa expansão ocorreu principalmente na TI Kayapó — o território mais impactado por garimpo na Amazônia.
A situação é grave e a retirada dos invasores é urgente. Para se ter uma ideia, de 2021 para 2022, por exemplo, o desmatamento na TI Ituna Itatá aumentou 303%, segundo dados do Prodes. Entre setembro e dezembro de 2020, mais de 1,7 mil hectares de florestas foram retirados da TI Cachoeira Seca.
O documento destaca os casos emblemáticos da TI Apyterewa e da TI Trincheira-Bacajá, que sofrem com uma mesma frente de invasão grileira e têm ocupado, nos últimos anos, o topo do ranking das TIs mais desmatadas do país.
Uma soma de fatores levou ao atual cenário de destruição da bacia. A região do Xingu-Tapajós, no sudeste do Pará, se tornou prioridade de investimentos em logística para o escoamento da produção agrícola de Mato Grosso, sem previsão de ações integradas para lidar com passivos nem futuros impactos socioambientais.
Esse processo começou há 20 anos com a pavimentação da BR-163 entre Mato Grosso e Santarém (PA) seguiu com a inauguração da rota logística pelo Baixo Tapajós, em 2014, e atualmente prevê uma estrada de ferro Ferrogrão (EF-170) e a pavimentação de rodovias secundárias, como a rodovia estadual MT-322, que vai interligar as zonas de produção de soja à Ferrogrão, na estação de Matupá (MT), consolidando o Corredor Logístico Xingu-Tapajós.
Além disso, no início da década passada, o governo federal iniciou a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte na cidade de Altamira (PA). As obras impulsionaram o preço da terra, e estimularam um processo de invasão de terras públicas e Áreas Protegidas. O “Dia do Fogo", que ocorreu em agosto de 2019 e se concentrou nos municípios na área de influência da BR-163, exemplifica o elevado nível de conflito que ainda persiste nas zonas de influência dessas obras.
Finalmente, o discurso pró-destruição e o estímulo à invasão de terras, ao desmatamento e ao garimpo de Jair Bolsonaro foram a tempestade perfeita para impulsionar a devastação. Agora, para reverter esse cenário, o novo governo precisará de uma ação articulada entre Funai, Ibama e Polícia Federal para combater quadrilhas e retirar invasores.
Um caso emblemático desse cenário é a Terra Indígena Trincheira-Bacajá, território dos Mebêngôkre Kayapó Kararaô e Mebêngôkre Xikrin. As invasões começaram em 2016 e 2017, já num cenário de influência da UHE Belo Monte, mas se intensificaram em 2019, quando a destruição atingiu a marca de quatro mil hectares derrubados – um aumento de 95% em relação ao ano anterior.
Investigações da PF mostram que um grupo de grileiros com terras nas imediações controla as invasões na Terra Indígena. A estratégia consiste em ocupar espaços com gado e em vender glebas a posseiros - muitas vezes, famílias pobres, que são atraídas por ofertas de lotes com valores de R$ 5.000.
Outro exemplo é a Terra Indígena Apyterewa, do povo Parakanã. Em 2021, ela foi a campeã de desmatamento entre Terras Indígenas da Amazônia e registrou, segundo o sistema de detecção da Rede Xingu +, mais de 8,1 mil hectares de desmatamento.
O território também é alvo de especulação fundiária, que piorou quando o Supremo Tribunal Federal (STF) deferiu um pedido da prefeitura de São Félix do Xingu (PA) que abria a possibilidade para a redução da área. Tal possibilidade já foi derrubada pelo próprio STF, mas as consequências nefastas para a floresta dos Parakanã ainda é visível.
“A situação da nossa terra é cada vez pior, com mais desmatamento. Foram quatro anos sem ação nenhuma. Esse ano, temos esperança que aconteça alguma coisa”, afirmou Venatoa Parakanã, presidente da associação Tato'a, do povo Parakanã, que vive na Terra Indígena Apyterewa.
Bebere Xikrin, liderança do povo Xikrin, da Trincheira-Bacajá, relatou que seu território convive com ao menos duas frentes de invasão, ao sul e ao norte. Uma estrada vindo da Apyterewa já rompe a floresta Xikrin, facilitando a entrada de grileiros. “Quanto mais demora, mais difícil de tirar. Nós temos o nosso planejamento, mas os invasores também tem o planejamento deles. Nosso medo é que eles construam uma vila como na Apyterewa, que tem a Vila Renascer”, afirma.
Para Bebere, os próximos quatro anos são estratégicos para retirar os invasores de seu território. “Tão matando nosso povo para tomar o que a gente tem. Isso acontece há 500 anos, mas hoje a estratégia mudou. E hoje temos Funai, Ibama, MPI”, diz ele.
Roubo de madeira
Ao menos três territórios estão sofrendo com o roubo desenfreado de madeira dentro de seus limites. O documento detalha dois casos. No Mato Grosso, o Território Indígena do Xingu (TIX), que por anos se constituiu como um oásis protegido dentro da Amazônia, agora é alvo da ação de quadrilhas de madeireiros, que estão explorando ilegalmente a floresta do território em seu limite oeste.
Ao menos 27 km de ramais ilegais madeireiros foram abertos. A atuação dessas quadrilhas também tem inibido a presença do Estado, impedindo a entrada de brigadas de combate a incêndios florestais e equipes de saúde.
Na região do Rio Ronuro, entre os meses de julho e setembro de 2022, um incêndio consumiu a floresta durante três meses, destruindo 2.762 hectares. As brigadas de combate ao fogo do Prevfogo foram impedidas pelos madeireiros de acessar o local dos incêndios.
Além disso, equipes de saúde que visitam as aldeias viram muitas vezes alvo de ameaças e intimidações, o que prejudica significativamente o acesso dos indígenas aos cuidados de saúde necessários.
Na Resex Riozinho do Anfrísio, Unidade de Conservação no Pará, mais de 407 km de estradas foram abertas ilegalmente. A extração ilegal madeireira na UC, espalhada por todo o seu território, vem degradando e emprobrecendo a floresta, a deixando mais vulnerável a outras atividades como o desmatamento e a grilagem de terras.
No processo de exploração, os criminosos se utilizam de serrarias móveis para fazer pranchas de madeira, facilitar seu escoamento e dificultar a localização pelas operações de fiscalização. Relatos de campo apontam que os grupos madeireiros estão diversificando as espécies de madeira extraída, que antes eram predominantemente Ipê. Há relatos também de coação e intimidação dos beiradeiros além da invasão e derrubada dos seus castanhais.