Projeto abre possibilidade de processo contra dirigentes de organizações não governamentais. Proposta segue para o Senado
O plenário da Câmara aprovou, na noite desta terça (29), em votação simbólica, um projeto de lei (PL) que regulamenta a atividade do lobby no país, mas deixa margem para restringir o trabalho de incidência política da sociedade civil na formulação da legislação e das políticas públicas no Congresso e no governo, na avaliação de organizações não governamentais que acompanharam as negociações da proposta.
O PSOL foi o único partido a se posicionar contra o projeto, que segue agora ao Senado.
Apelidado de “PL do Lobby”, o PL 1.202/2007 pretende regular o trabalho dos “representantes de interesses” do empresariado e de outros setores no Legislativo e no Executivo federais, origem de vários dos escândalos de corrupção que o país vive há décadas. O projeto cria restrições e regras de transparência para os contatos entre "lobistas" e autoridades públicas, exigindo a divulgação de informações básicas sobre objetivos e participantes de audiências, por exemplo.
Segundo o texto aprovado, está proibida “a oferta de bem, serviço ou vantagem indevida por agente privado que tenha interesse em decisão do agente público ou de colegiado do qual este participe”. As exceções seriam “brindes” de baixo valor e a chamada “hospitalidade legítima”, ou seja, o pagamento de alimentação, transporte e estadia por empresas a autoridades para realização de “cursos, seminários, congressos, eventos e feiras”.
O PL sofreu muitas alterações na tramitação, deixando as questões da transparência, controle social e livre acesso para vários segmentos da sociedade aos tomadores de decisão em segundo plano, na avaliação dos deputados do PSOL e integrantes da sociedade civil. Além disso, na prática, para eles o projeto não garante e até dificulta a publicidade do acesso de representantes privados a parlamentares e gestores públicos. Ou seja, o “PL do Lobby” não controlaria o lobby.
“A gente reconhece que é preciso ter algum tipo de previsibilidade e regulamentação e, portanto, sanção para aqueles agentes públicos e privados que passarem dos limites estabelecidos nesse processo de lobby”, afirmou a deputada Sâmia Bonfim (PSOL-SP).
“Mas identificamos que existe um interesse muito grande por parte do setor privado para regulamentar e poder garantir a sua atuação legal sobre a política, e pouca possibilidade para avançar em métodos transparentes e de real participação popular, de movimentos sociais, de ativistas, de entidades. E a relação política sempre acaba sendo privilegiada por parte desses setores privados”, complementou.
A parlamentar criticou o conceito de “hospitalidade legítima” e mencionou que o texto aprovado não garante a publicidade de todos os tipos de relação entre pessoas públicas e privadas e que isso seja feito por meio de dados abertos a toda população.
“Alguns grupos privados têm meios e mecanismos de articulação diferentes para exercer sua influência e fazer valer seus interesses, não exatamente por meio das atividades de lobby que o PL propõe regular”, aponta nota divulgada pelo Observatório do Clima (OC) na semana passada.
Confusão entre ONGs e empresas
"Regulamentar o lobby é desejável, mas o texto aprovado precisa ser corrigido no Senado. Da forma como está, abre margem para eventual perseguição política, além de permitir a desconsideração da personalidade jurídica sem decisão judicial", avalia Mauricio Guetta, consultor jurídico do ISA.
Para ele, a redação final do PL 1202 também é confusa quanto ao tratamento de representantes de empresas e aqueles ligados a movimentos e organizações sociais, que defendem interesses totalmente diferentes.
O assunto tinha sido deixado de lado, mas o governo Bolsonaro enviou um novo texto ao Congresso e o colocou entre suas prioridades, no início deste ano. A proposta foi retirada de sua tramitação normal nas comissões e levada ao plenário da Câmara com a aprovação de um regime de urgência, o que interditou o debate sobre a matéria, sob a justificativa de que ter uma legislação sobre ela é uma das exigências para que o Brasil consiga fazer parte da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Integrantes de organizações que fazem parte do OC tentaram, por semanas, alertar o relator, deputado Lafayette de Andrada (Republicanos-MG), sobre os problemas da proposta e apelaram a integrantes do governo de transição para discutir o assunto mais profundamente. O parlamentar cedeu em alguns pontos, mas a estrutura principal do projeto foi mantida.
O texto original do governo sofreu várias mudanças, mas acabou mantendo restrições à atuação da sociedade civil e dos movimentos sociais, uma marca do bolsonarismo. Sofreu mais alterações de última hora e foi apresentado minutos antes da votação. Muitos parlamentares votaram sem conhecê-lo. Até o fechamento desta reportagem, a redação aprovada não estava disponível no sistema da Câmara.
Alterações no texto
O texto chegou a prever tipos de condutas e punições correspondentes com redação subjetiva - como “constranger participante de reunião” - mas que acabaram retirados pelo relator. Propostas como essa abririam brecha para criminalizar e censurar organizações não governamentais que atuam no Congresso e em instâncias de participação, na avaliação de pessoas que participaram das negociações. Algumas penalidades para quem infringir a lei também foram abrandadas.
Mas o PL continua prevendo sanções para o “representante de interesse” que “deixar de disponibilizar ou de retificar, no prazo estabelecido em lei, as informações referentes à representação de interesse realizada junto ao agente público”. Também prevê a possibilidade de punir dirigentes de instituições sem ação judicial que autorize esse tipo de processo.
As punições previstas podem ser advertência, suspensão e multa do "representante de interesse". Para pessoas físicas, a multa pode variar entre um e dez salários-mínimos e, para pessoas jurídicas, vai de 0,1% a 5% do faturamento bruto do exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, excluídos os tributos.
“A regulamentação deve ter como norte a transparência e o amplo acesso. Criar sanções desproporcionais só tende a enfraquecer a participação, a pluralidade de ideias e o debate democrático. Esperamos que o Senado corrija os pontos problemáticos", reforça a advogada do ISA Juliana de Paula Batista.
'Preconceito'
“O Brasil é um dos pouquíssimos países do mundo que não tem uma legislação sobre esse tema. E não tem porque [não ter]. Criamos uma narrativa e um preconceito contra a palavra ‘lobby’. A palavra ‘lobby’ criou no imaginário da sociedade a ideia de alguma coisa que vem junto com algum mal feito”, argumentou Lafayette.
“A representação de interesses é republicana, é democrática, é necessária”, continuou. Lafayette negou que a atuação de organizações não governamentais e movimentos sociais esteja no escopo do projeto e que seu parecer abrande penas para crimes de corrupção.
“O objetivo desse projeto é exatamente fazer com que as pessoas, o povo brasileiro, o eleitorado conheçam a atuação do setor privado e com quem o setor público conversa para discutir projetos e de lei e decisões administrativas e decisões políticas”, defendeu autor da proposta, Carlos Zarattini (PT-SP). Ele disse que seu texto teve como subsídio as legislações norte-americana e europeia.
O petista reconheceu que ele sofreu várias alterações e não incluiu um cadastro dos lobistas, elemento que considera fundamental para nova lei. Ressalvou, porém, que o relatório de Lafayette “avança bastante e nos contempla no que a gente julga mais importante”.