Semana do Extrativismo, promovida pela Rede Terra do Meio na aldeia Ita´Aka (PA), reforça união entre indígenas, beiradeiros e agricultores familiares e avança no diálogo com parceiros públicos e privados, protegendo territórios e sustentabilidade
A distância que separa a casa e a roça da família da professora e artesã Ipikiri Assurini, na aldeia Ita´Aka, não é tão grande. Depois de caminhar pela lateral do campo de futebol na parte central da comunidade e, em seguida, passar perto da Casa Sagrada, entra-se numa trilha. E daí a pouco já começam a fartura e a diversidade: cacau, banana, mandioca.
Esses produtos, cultivados em meio à floresta, alimentam a família e são partilhados com a comunidade, algumas vezes em forma de preparos tradicionais, como o mingau da macaxeira doce, espécie que só esse povo domina.
Desde o ano passado, os produtos das roças, dos rios e das florestas têm uma nova destinação: a escola da comunidade. A partir do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), esses alimentos passaram a compor a alimentação escolar.
“Essa roça é da minha família e tem plantação de cacau, banana, mandioca. A gente está entregando na escola, para o pessoal que faz a merenda. E o pessoal nos faz o pagamento. Na escola estudam os meus sobrinhos, minha prima e todos os meus quatro filhos. Eu entrego tudo natural. Não são as coisas que vêm da cidade. E eu me sinto bem feliz que eles estão comendo o que vem da roça”, conta Ipikiri Assurini.
Quando trilham esse caminho dos alimentos, os povos da Terra do Meio - indígenas, beiradeiros e agricultores familiares - garantem alimento da família, dos alunos, da comunidade. Mas também movimentam as economias da sociobiodiversidade, ou seja, a economia praticada ancestralmente por essas pessoas, baseada em seus sistemas agrícolas e de saberes que protegem a floresta e a cultura.
Essa economia dos povos da floresta esteve no centro das discussões na Semana do Extrativismo - Semex 10ª Edição, realizada pela Rede Terra do Meio entre os dias 21 e 25 de maio.

O encontro, na Aldeia Ita´Aka, a duas horas de Altamira (PA), fechou suas atividades marcado pela aliança entre os povos e avançando na construção de parcerias para apoio na execução do planejamento da Rede Terra do Meio para o futuro, indicando um coletivo fortalecido e unido para os desafios da sociobiodiversidade. Outro destaque foi a diversidade e a representatividade: entre as cerca de 300 pessoas presentes estavam beiradeiros, agricultores familiares e indígenas de povos como Xipaya, Xikrin e Arara.
Um dos diferenciais dessa edição foi a maior participação do poder público, sendo que também foram renovados diálogos com apoiadores privados e financiadores.
Entre os parceiros e apoiadores estavam órgãos públicos como Ministério do Meio Ambiente (MMA); ICMBio; Companhia Nacional de Abastecimento (Conab); Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai); Banco do Brasil; Governo do Estado do Pará; Banco do Brasil. As empresas Mercur e Natura, entre outras, também estiveram no encontro.
Além de traçar o planejamento da Rede Terra do Meio, a Semex promoveu o debate de temas como políticas públicas de aquisição de alimento - Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE); Pagamento por Serviço Ambiental (PSA); Fundo Terra do Meio e estratégias de mercado.
“Essa décima Semex nos faz refletir o quanto que a Rede cresceu e conseguiu aproximar outros atores que estão colaborando para o fortalecimento. Há alguns anos, dificilmente a gente conseguiria articular e aproximar o poder público. Hoje estamos aqui vivenciando um momento único, fazendo com que o poder público entenda a realidade dessas comunidades e, a partir desta compreensão, possa formular leis e políticas públicas adequadas à realidade desse povo”, disse Francinaldo Lima, membro da secretaria executiva da Rede Terra do Meio.
Diretor-presidente da Rede Terra do Meio, Francisco de Assis Porto de Oliveira, o seu Assis, explica que a Semex é um espaço de governança onde busca-se o diálogo com parceiros para apoio à execução das estratégias planejadas coletivamente, entre elas a comercialização de produtos como a castanha, a borracha, a copaíba.

“A Rede Terra do Meio tem o objetivo de promover cultura, promover saberes e a soberania alimentar. E também dar transparência na gestão e comercialização dos produtos das comunidades. E quem faz a Rede Terra do Meio é uma grande diversidade de povos: são os cantineiros, os paioleiros, os extrativistas, indígenas e pequenos agricultores familiares. As pessoas fazem a rede existir e ela ser Rede”, disse seu Assis, que divide seu tempo entre Altamira e a Reserva Extrativista (Resex) Rio Iriri.
Moradora da comunidade São Francisco, na Resex do Rio Iriri, Aurilete da Silva Maciel, a Dete, é mãe de família, cantineira, pescadora e extrativista. Com sua atuação frente à cantina - uma das estruturas utilizadas pela Rede para troca e comercialização dos produtos - é um exemplo para as mulheres e jovens.
“O meu envolvimento com a Rede começou porque eu via que meu marido, que trabalha na cantina, precisava de apoio. E eu comecei a ajudar. E aí foi através disso, através de uma história de amor, que eu entrei na rede. E eu tenho muito orgulho também de fazer parte dessa rede. Como jovem, como mulher”, conta.
Dete fala que a participação das mulheres na Rede Terra do Meio vem aumentando.“A mulher está no território, a mulher está na governança, a mulher está em todo o ciclo da Rede. As mulheres ajudam a fortalecer a Rede. E a Rede também apoia as mulheres com geração de renda e fortalecimento de suas culturas”, diz.
A coleta de sementes e a restauração de florestas emergem também como essenciais para promover a sustentabilidade e a conservação na Terra do Meio. O agricultor familiar e agroextrativista José Santiago da Silva, presidente da Associação Agroextrativista Sementes da Floresta (Aasflor), tem se dedicado à coleta de sementes de espécies como o babaçu, andiroba, castanha, cupuaçu e outras, com o objetivo de preservar a biodiversidade e fortalecer a recuperação de áreas degradadas.
“Não precisa a gente fazer a devastação da floresta para viver. Lá você tira alimentação, você tira a medicina, você tira os cuidados pessoais de beleza”, conta. Santiago diz que tem o dom de plantar florestas. E vem colhendo os frutos, com a produção de óleos e cosméticos.
Composta por 39 organizações locais, a Rede Terra do Meio conta com representantes de 10 territórios indígenas, três reservas extrativistas – Resex Xingu, Resex Riozinho do Anfrísio e Resex do Iriri - e uma organização de agricultura familiar, localizadas em uma área de aproximadamente 9 milhões de hectares de áreas protegidas na Amazônia.


Coordenadora-adjunta do Programa Xingu do Instituto Socioambiental (ISA), Fabíola Silva aponta que a Rede cresceu em diversidade de povos e parceiros, que agora incluem empresas, governos e bancos. “O foco não é só vender produtos, mas valorizar toda a história e o significado cultural por trás deles, o que tem sido fortalecido nessa edição da Semex”, disse.
Marina Aragão, que está à frente da área de Economia e Finanças para a Amazônia Brasileira na The Nature Conservancy (TNC), também trouxe observações sobre a maturidade da Rede. "A Rede Terra do Meio está madura, discutindo, além da comercialização, o protagonismo das comunidades e as políticas públicas. Na Semex estão reunidas associações, governos e setor privado para fortalecer essa governança compartilhada de indígenas, ribeirinhos e pequenos agricultores", considerou.
Da roça e da floresta para a escola
As trocas entre as comunidades e seus parceiros têm dado frutos concretos. Um dos exemplos é a participação da Rede Terra do Meio no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), desenvolvido com a Conab. Em 2023, a ação garantiu R$1,5 milhão em compras de alimentos saudáveis para escolas.
Assessora da Diretoria de Política Agrícola e Informação da Conab, Maria Cazé informa que a Rede Terra do Meio promoveu um PAA que é exemplo nacional. Foram, entregues 516 toneladas de alimentos, sendo de 82 tipos, dos quais 22 até então desconhecidos pela Conab, envolvendo pelo menos 107 famílias e 90 escolas, além de 9 povos indígenas e três reservas extrativistas.
Entre os alimentos estão frutas da região, como golosa e o cacauí, além de preparos tradicionais, como o mingau de macaxeira doce dos Assurini e o berarubu dos Kayapó e Xikrin, uma massa de mandioca recheada de peixe e assada em pedras quentes.
“Temos um resultado exitoso da execução do PAA, qualificando a alimentação escolar dos filhos dessa terra, dos filhos dessas florestas, dos filhos desses rios. Então, essa é hoje considerada uma das maiores referências de PAA no Brasil. É a que tem a diversidade de alimentos, diversidade de povos e que tem o maior número de unidades recebedoras. Isso mostra que é possível as políticas públicas chegarem e mudarem a vida das pessoas em seus territórios”, conclui Maria Cazé.

O impacto do PAA nas comunidades “foi uma maravilha”, nas palavras de Assis Porto. Os diálogos apontam que há potencial para a execução do projeto triplicar, elevando para 500 o número de famílias que fornecem alimentos.
“Isso impacta positivamente as comunidades. Toda alimentação que vai para as mesas das pessoas é tirada da floresta, levada para ser manipulada e beneficiada, e depois retorna para as comunidades. O PAA mudou isso, possibilitando que a comida orgânica seja retirada da floresta e entregue diretamente nas escolas. Então isso é um projeto muito fantástico”, diz.
O processo para ampliar o acesso dos povos e comunidades tradicionais às políticas públicas de aquisição de alimentos vem sendo impulsionado pela Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos (Catrapovos), por meio do Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) e parceiros.
Outro tema discutido durante a Semex foi o Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), que prevê reconhecer e promover as atividades realizadas pelas comunidades que mantêm a floresta viva. Essas atividades, baseadas em seus sistemas de conhecimentos, promovem a manutenção e melhoria da preservação da biodiversidade, proteção da água e regulação climática.
A Rede Terra do Meio vem pilotando mecanismos de PSA com o setor privado desde 2014. As experiências em curso no território e sua capacidade de governança aproximaram o Governo do Estado do Pará, que apresentou a proposta de projeto-piloto conjuntos que viabilizem a estruturação da política estadual de PSA.
Assessora técnica da Secretaria Adjunta de Bioeconomia do Pará, Danyelle Couri, informou que será uma construção participativa para Pagamento por Serviço Ambiental em Territórios Coletivos. “Viemos à Semex participar num momento mais de escuta, sobre os anseios e os planejamentos da Rede, num movimento de construção participativa”, disse.
Francinaldo Lima, o Naldo, explica como os povos da Terra do Meio se conectam ao projeto. “A gente sabe da importância que é a manutenção dessa floresta, na regulação do clima, por exemplo, na manutenção da água, de toda a biodiversidade. Então é necessário que as organizações governamentais e o setor privado valorizem esse serviço que prestamos”, explica.
Diretora do Departamento de Políticas de Estímulo à Bioeconomia do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Bruna De Vita, informa que o pagamento de serviços ambientais é uma forma de aumentar a renda dessas famílias e valorizar as atividades produtivas mais conservativas do ambiente.
“As formas de vida dessas comunidades e, principalmente, as formas de produzir que mantêm a floresta em pé são muito relevantes para a manutenção dos chamados serviços ecossistêmicos, para manter água, a regulação do clima. E a gente tem a necessidade de saber valorizar isso, porque quando eles estão fazendo a roça, quando eles estão colhendo castanha, quando eles estão tirando a borracha, eles estão prestando serviço ambiental, estão protegendo o território e evitando que seja trocado por outras atividades degradantes”, considera.

Bruna De Vita já acompanha o território da Terra do Meio há bastante tempo e vê o fortalecimento da Rede. “A gente vê como a Rede vem sendo fortalecida ao longo do tempo. E representa cerca de 9 milhões de hectares de áreas protegidas, o que é muito importante para o Ministério do Meio Ambiente estar trabalhando de forma integrada com as unidades de conservação, com as terras indígenas, os assentamentos. São nesses territórios que a bioeconomia acontece. Então para nós é importante buscarmos formas de integrar as políticas públicas às demandas desses territórios”, disse.
A empresa Mercur, uma das principais parceiras da Rede Terra do Meio, vem executando um projeto de PSA, agregando preço à borracha nativa pelos serviços de proteção ambiental prestados pelos povos da floresta. Jovani Machado, representante da Mercur, esteve na Semex e falou dessa história da empresa - que completou 100 anos em 2024 - com as comunidades.
“O produto é uma consequência dos relacionamentos que fazemos aqui. O que nos faz pagar esse valor a mais por esse produto é entendermos que para manter a floresta em pé precisamos estar aqui apoiando esses povos”, disse. “Temos 15 anos de atuação junto às comunidades. E nós temos uma demanda que é borracha nativa. E posso dizer que a gente fica feliz em ver como o movimento está avançando, com as pessoas engajadas. E seria importante ter mais empresas para compor esse grupo”, completou.
Emergência climática
Se, por um lado, esses povos são os guardiões da floresta e sua economia preserva o ambiente, por outro são os que estão na linha de frente da emergência climática.
Em 2024/2025, sob o impacto da seca recorde na Amazônia, não houve safra da castanha, que é uma das principais fontes de renda do coletivo. Os efeitos também foram sentidos nos seringais - com queda na produção - e nas roças, com prejuízo a alimentos como mandioca, batata e cará.
“O sol de hoje não é mais o mesmo. As crianças não podem brincar como antes. As plantas estão sofrendo. Estamos perdendo variedades”, disse Ney Xipaya, liderança do seu povo e integrante da Rede Terra do Meio.
Ele chama a atenção para os impactos das mudanças climáticas no calendário agrícola tradicional, base da sociobioeconomia. E trouxe ainda a importância da Rede Terra do Meio para a valorização desses sistemas e proteção territorial. “Valorizar a cadeia produtiva da roça, que é o ensinamento do meu vô e da minha avó, traz todos os aspectos ancestrais de plantio, de respeito aos espíritos. E também valoriza a permanência do indígena dentro do território”, considera.
“Nosso sonho é que a rede se sustente sozinha, financeiramente. Mas também que ela mantenha a harmonia, a união e o respeito. Lá fora, a pressão é muito grande. Aqui, precisamos de força coletiva para resistir”, reflete.
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Este ano, a COP 30 acontece em Belém, no Pará, e os povos da Rede Terra do Meio pretendem levar para a conferência seu exemplo de governança, sociobioeconomia e conservação.
Analista sênior em economia da sociobiodiversidade do ISA e membro da secretaria executiva da Rede Terra do Meio, Jeferson Straatmann diz que o coletivo deve levar à Conferência do Clima a potencialidade de uma articulação ampla de povos que trabalham a economia de uma forma diversa, baseada em sistemas de saberes ancestrais. “Uma conferência climática passa basicamente pelo que a Rede tem feito”, diz.
Ele explica que os povos da Terra do Meio vêm promovendo uma economia do envolvimento das pessoas, com promoção de direitos e de segurança territorial.
“Uma economia do envolvimento é uma economia que fortalece os laços entre os povos. A região da Terra do Meio é um arranjo de povos indígenas, comunidades tradicionais, ribeirinhos, beiradeiros e agricultores familiares. E que tem como objetivo primeiro agregar as pessoas em função dos seus sistemas agrícolas tradicionais, seus sistemas de conhecimento. Por meio da comercialização desses produtos, potencializa-se a continuidade desses saberes, de uma geração para outra, transformando florestas em florestas, promovendo a proteção da água, cuidado da biodiversidade e regulação climática”, diz.
A 10ª Semana do Extrativismo foi encerrada com danças e cantos tradicionais. A Rede Terra do Meio reuniu um grupo diverso de comunicadores indígenas, beiradeiros e agroextrativistas, da Rede Xingu+, da Aasflor e de associações locais que participaram ativamente das discussões e produziram um vídeo abordando a identidade do coletivo. A exibição aconteceu na noite do fechamento do encontro, tendo como cenário a Casa Sagrada dos Assurini.
Assista abaixo:
Os trabalhos continuam. É a partir da floresta, das sementes e dos saberes ancestrais que os povos da Terra do Meio seguem tecendo seu futuro, reafirmando a sustentabilidade como um modo de viver.
A Semana do Extrativismo foi realizada pela Rede Terra do Meio em parceria com o ISA, TNC, Sama, Origens Brasil e Vem do Xingu, tendo como apoiadores o Bezos Earth Fund, Fundo Amazônia, Fundo Vale e Rainforest - RFN.