Apib e ISA alertam que medidas aprovadas atropelam a Constituição e podem aprofundar a destruição ambiental e impor crise humanitária para povos indígenas
A Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) do Senado aprovou, nos dias 13 e 20 de agosto, dois Projetos de Lei (PLs) que abrem as Terras Indígenas a atividades econômicas como mineração, garimpo, exploração de petróleo e gás, geração de energia, agricultura comercial e turismo. As medidas (o PL 6.050/2023 e o PL 1.331/2022) representam uma violação direta da Constituição Federal e dos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil.
"Ambos os PLs são ataques aos direitos constitucionais dos povos indígenas, vez que relativizam questões como o usufruto exclusivo dos territórios, colocando em risco as comunidades que irão sofrer com aliciamento de terceiros não indígenas", afirma Ricardo Terena, coordenador do departamento jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
No dia 13, a comissão aprovou o PL 6.050/2023, originado da CPI das ONGs, em votação simbólica que durou menos de um minuto. O texto legaliza a exploração de recursos naturais em territórios indígenas e permite que comunidades firmem parcerias com empresas públicas, privadas ou cooperativas de garimpeiros. O projeto segue agora para as Comissões de Serviços de Infraestrutura, Meio Ambiente e Constituição e Justiça antes de chegar ao Plenário.

Já em 20 de agosto, a CDH aprovou o PL 1.331/2022, de autoria do senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR), que autoriza a pesquisa e a lavra garimpeira em Terras Indígenas por terceiros, mediante consentimento das comunidades. Embora o texto proíba a mineração industrial em áreas de povos isolados, especialistas apontam que ele abre brechas graves ao fragilizar o usufruto exclusivo garantido pela Constituição e não oferecer salvaguardas efetivas para a autodeterminação dos povos originários.
O projeto tem caráter terminativo, ou seja, se aprovado nas comissões designadas, pode seguir diretamente para a Câmara dos Deputados sem passar pelo Plenário do Senado. Após a votação na CDH, a proposta foi encaminhada à Comissão de Meio Ambiente (CMA).
Para Renata Vieira, advogada do Instituto Socioambiental (ISA), a aprovação dos projetos pela CDH revela um conflito central: sob o argumento de promover autonomia e desenvolvimento econômico, as propostas acabam submetendo os povos indígenas a regras impostas de fora, alinhadas sobretudo a interesses empresariais e políticos.
“Sem garantias efetivas de consulta prévia, fortalecimento da Funai e respeito ao regime constitucional, a regulamentação pode abrir caminho para a legalização de práticas que hoje destroem Terras Indígenas e colocam em risco a sobrevivência física e cultural dessas comunidades”, explica. Além disso, a advogada aponta que a regulamentação de garimpo em Terra Indígena é inconstitucional, pois possui vedação expressa no texto constitucional.
Em nota técnica, a Apib classificou os dois projetos como inconstitucionais. Para a entidade, as propostas desrespeitam o Artigo 231 da Constituição, que garante aos povos indígenas o usufruto exclusivo das riquezas de suas terras, além de violarem a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que obriga a consulta livre, prévia e informada às comunidades afetadas.
A Apib ressalta ainda que há um vício formal grave: os projetos tratam de temas que a Constituição determina que sejam regulamentados por lei complementar — que exige maioria absoluta no Congresso e debate mais rigoroso —, mas estão sendo apresentados como leis ordinárias, de tramitação simplificada. Essa escolha, segundo a entidade, fere o devido processo legislativo e compromete a validade jurídica das propostas.
Outro ponto destacado é a tentativa de justificar a exploração econômica sob a retórica de conferir “autonomia” às comunidades, o que para a Apib constitui uma falsa autonomia: a decisão, na prática, seria condicionada a interesses de empresas e investidores externos. As propostas “acentuam os conflitos nos territórios, fragilizam os instrumentos de proteção da biodiversidade e da gestão territorial e ambiental indígena, e abrem caminho para violações generalizadas aos direitos humanos”, afirma a organização em Nota Técnica.
Os dados citados pela Apib reforçam a gravidade da ameaça. Estima-se que 90% dos Yanomami de nove aldeias já estejam contaminados por mercúrio decorrente da atividade garimpeira. Entre 2019 e 2022, 570 crianças Yanomami morreram por causas diretamente ligadas ao avanço do garimpo ilegal, como desnutrição, malária e falta de atendimento médico.
No sul da Bahia, o povo Pataxó denuncia a destruição de nascentes e cursos d’água causada pela extração de terras raras. No Pará, comunidades Munduruku enfrentam violência armada, presença de facções criminosas e desestruturação cultural ligada à invasão de garimpeiros. Impactos como esses demonstram que a legalização da mineração e de outras atividades econômicas dificilmente resolveria os problemas do garimpo ilegal, mas poderia agravá-los ao dar aparência de legalidade a práticas já devastadoras.
Durante as votações, defensores dos projetos argumentaram que a regulamentação poderia trazer mais transparência e reduzir a atividade clandestina. Mecias de Jesus afirmou que o PL 1.331/2022 garante “benefícios diretos” às comunidades indígenas, enquanto a presidente da CDH, senadora Damares Alves (Republicanos-DF), defendeu que o Grupo de Trabalho sobre a Regulamentação da Mineração em Terras Indígenas, criado em abril de 2025 e coordenado pela senadora Tereza Cristina (Progressistas-MS), deveria articular todas as propostas sobre o tema. Até o momento o GT não foi instituído formalmente.
Durante a votação, os senadores Augusta Brito (PT-CE) e Paulo Paim (PT-RS) fizeram duras críticas ao PL 1331/2022. Brito alertou que a mineração em Terras Indígenas comprovadamente impacta de forma devastadora mulheres e crianças, citando casos de abortos espontâneos e mortes infantis ligadas à contaminação por mercúrio, além das 570 crianças Yanomami mortas entre 2019 e 2022 em meio à crise humanitária agravada pelo garimpo. Ela reforçou que não há urgência em aprovar a proposta sem antes ouvir os povos diretamente afetados, pedindo que o debate seja aprofundado no grupo de trabalho criado no Senado.
Já Rogério Carvalho (PT-SE) destacou, em seu voto separado lido pelo senador Paulo Paim (PT-RS), que qualquer atividade mineral em territórios indígenas tem impacto irreversível sobre comunidades e ecossistemas, lembrando que o garimpo ilegal tem provocado envenenamento por mercúrio, violência, prostituição forçada de meninas, avanço do crime organizado e lavagem de dinheiro com ouro ilegal. Para ele, a proposta falha em garantir salvaguardas aos direitos humanos, ignora a diversidade dos povos indígenas e incorre em inconstitucionalidades, razão pela qual defendeu sua rejeição.
Para a Apib, os PLs 6.050/2023 e 1.331/2022 não apenas colocam em risco a proteção dos territórios indígenas, mas também afrontam o princípio da vedação ao retrocesso em direitos fundamentais “uma vez que violam o usufruto exclusivo dos territórios e autorizam atividades de elevado impacto socioambiental no interior dos territórios, colocando as comunidades indígenas em risco”, alerta Ricardo Terena.