Mais de 130 anos após a abolição formal e inconclusa da escravidão, comunidade é a segunda da região que tem registro efetivo de todo o território
O mês de setembro de 2022 entrou para a história do Quilombo São Pedro, no município de Eldorado (SP). Passados 34 anos do reconhecimento do direito quilombola ao território na Constituição, o título coletivo definitivo foi registrado em nome da associação comunitária.
Representantes da comunidade estiveram presentes no Cartório de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica de Eldorado para entregar os documentos necessários para obter o registro do território em cartório. Após alguns questionamentos do cartório, em 15 dias o resultado positivo foi dado às lideranças.
Da comunidade, estavam presentes Luiz Marcos de França Dias, atual coordenador da associação, Aurico Dias e Elvira Morato, lideranças da comunidade e também Valni de França Dias, Áurea Ribeiro da Silva e José da Guia Rodrigues Morato. Também compareceram representantes da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), do Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp) e da Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras (Eaacone), que acompanha os processos de reconhecimento e titulação das comunidades da região.
Fundado entre 1825 e 1830 por Roza Machado e Bernardo Furquim, o Quilombo São Pedro resistiu ao longo de quase 200 anos a invasões, desmatamento, criminalização de roças, tentativas de barragens na região, e hoje pode, enfim, celebrar o efetivo registro do território coletivo. “A gente sempre soube que a terra é nossa, mas não tinha o registro, que nos dá garantia do nosso território”, afirmou Elvira Morato, de 75 anos, liderança local que acompanha o processo de demarcação do quilombo.
A titulação do território coletivo se tornou possível após a Constituição Federal de 1988 ter garantido a todas as comunidades quilombolas brasileiras esse direito. Apesar de nacionalmente as titulações quilombolas terem se intensificado apenas após a edição do Decreto Federal nº 4887, em 2003, o Quilombo do São Pedro já tinha conquistado a titulação parcial do território em 1998.
No final da década de 1990, após pressões das comunidades quilombolas e de ações judiciais propostas pelo Ministério Público Federal (MPF), o Estado de São Paulo aprovou a Lei nº 9757/1998 e, em 17 de novembro daquele ano, publicou o Relatório Técnico Científico de identificação do território de São Pedro.
Em 2001, o governador Mário Covas expediu em favor da comunidade o título de domínio dos 4.500 hectares do território, mas o ato não pôde ser registrado em cartório e designou à comunidade a responsabilidade por negociar a saída de não quilombolas do território.
Assim, foram mais de 21 anos de lutas para que o Estado de São Paulo retirasse os invasores do território comunitário e vencesse toda a burocracia administrativa para, finalmente, registrar em cartório que o território pertence à associação.
O registro do território em cartório é uma medida jurídica indispensável para garantir o direito quilombola, pois é através do registro cartorial que o direito reconhece o domínio e a posse das terras no Brasil.
Com o registro, as 56 famílias da comunidade passam a ter mais segurança. “O registro garante que a terra é realmente da comunidade, garantindo, também, segurança alimentar, perpetuação da cultura e repasse das tradições para as futuras gerações”, destacou o professor Luiz Marcos de França Dias, atual coordenador da associação quilombola São Pedro.
Titulação ainda demora
A morosidade em torno do registro desta comunidade não é um caso isolado, pois o racismo ainda dificulta a efetivação de um direito previsto na Constituição há 34 anos. Das 88 comunidades quilombolas existentes em São Paulo - segundo a Eaacone -, 34 estão localizadas no Vale do Ribeira. Destas, duas possuem o registro em cartório: Ivaporunduva e agora São Pedro.
"Temos outras comunidades que se encontram na mesma situação, André Lopes, Galvão, Maria Rosa, Pedro Cubas e Pilões, que também há 21 anos aguardam o registro. Essa conquista do São Pedro nos dá esperança no andamento do processo", destacou Rafaela Eduarda Miranda Santos, quilombola da comunidade Porto Velho e advogada da Eaacone.
As comunidades quilombolas do André Lopes, Galvão, Maria Rosa, Pedro Cubas e Pilões também receberam, em 2001, títulos de domínio expedidos pelo Estado de São Paulo. E, apesar de estarem localizadas em terras públicas devolutas, passadas mais de duas décadas o estado ainda não retirou invasores e não viabilizou a burocracia necessária ao registro dos títulos dessas comunidades junto ao cartório,
"No ritmo que nós estamos, nós levaríamos cerca de 1000 anos para titular todos os nossos territórios, e hoje somos mais de seis mil", destacou Rodrigo Marinho, do Quilombo Ivaporunduva e articulador da Eaacone. O número parece absurdo, mas apresenta a realidade da lentidão do processo.
Em cálculo realizado pela organização Terra de Direitos, considerando o ritmo lento e a redução do orçamento para a titulação dos territórios quilombolas , que foi de R$ 54 milhões em 2010 para R$3,4 milhões em 2019, seriam necessários 1170 anos para titular todos os territórios quilombolas do país.
Diante dessa lentidão racista e inconstitucional, a Conaq divulgou, durante o evento do Aquilombar, realizado em julho deste ano, carta aos presidenciáveis em que propõe a realização de um plano nacional para titulação de todos os mais de seis mil territórios quilombolas. Para a Conaq, o plano é uma medida necessária para que o direito efetivamente seja respeitado em um prazo razoável.