Seminário com lideranças e técnicos da Fundação Florestal atendeu a solicitação das comunidades pela aplicação do direito à Consulta Livre, Prévia e Informada

Lideranças quilombolas de 13 comunidades dos municípios paulistas de Iporanga e Eldorado se reuniram, na última semana, para receber técnicos da Fundação para a Conservação e a Produção Florestal do Estado de São Paulo (Fundação Florestal) que estiveram na região para a execução da fase de Caracterização do Plano de Manejo da Área de Proteção Ambiental (APA) Quilombos do Médio Ribeira.
O Seminário, que ocorreu na Escola Técnica Estadual (Etec) do Quilombo do bairro André Lopes, atendeu à solicitação das comunidades para que fosse cumprida a determinação de realização de uma Consulta Livre, Prévia e Informada e que o processo de implementação da APA leve em consideração os modos de vida, as demandas e os conhecimentos tradicionais das populações que historicamente habitam a região paulista do Vale do Ribeira, cujos territórios foram sobrepostos pela Unidade de Conservação (UC).
A demanda oficial de requerimento de um Plano de Consulta por parte da gestão da APA partiu da Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira (Eaacone), que reuniu os pedidos das comunidades envolvidas. “Essa é uma demanda de protocolo de consulta. Estamos evoluindo nesta construção por meio do diálogo que nos propusemos a costurar”, explica a articuladora da Eaacone, Tânia de Moraes.
O encontro foi marcado pela presença de lideranças históricas dos territórios remanescentes de quilombos e de jovens lideranças que demarcam como a nova geração se apresenta enquanto mantenedora do legado de representatividade e resistência de seus anciãos.
Leia também o especial "O Caminho pro Quilombo"
Acolhendo o rito do protocolo de Consulta Prévia, a entidade, jurisdicionada à Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística (Semil), apresentou – de maneira facilitada e resumida – os estudos realizados por sua equipe técnica para a elaboração do Plano de Manejo da APA dos Quilombos. O documento, apresentado para que possa ser complementado com informações fornecidas pelas comunidades, funciona como um inventário dos registros ambientais, socioeconômicos, históricos e culturais da região e que dará origem às normas de gestão da UC.
Ao longo de dois dias, quilombolas e técnicos se debruçaram sobre os estudos referentes aos territórios para fornecer e receber informações a respeito da área de 64.625,04 hectares que se sobrepõe aos territórios dos remanescentes dos Quilombos André Lopes, Galvão, Ivaporunduva, Maria Rosa, Nhunguara, Ostras, Pedro Cubas, Pedro Cubas de Cima, Pilões, Piririca, Praia Grande, São Pedro e Sapatu – objeto da Lei Estadual nº 12.810/2008.
“Achei muito interessante tudo o que vocês apresentaram aqui pra gente. Achei interessante porque tudo isso a gente já sabe. Não temos estudo e não colocamos as coisas no papel como vocês fazem, mas tudo isso aí que vocês estão vendo e mostrando é o que a gente sabe e vive, na prática, no dia a dia”, ressalta a liderança do Quilombo Nhunguara, Sr. João Catá, ao mesmo tempo que reconheceu o trabalho realizado pela Fundação Florestal.
Seminário atende determinação da OIT


O papel ao qual o Sr. João se refere é o “Plano de Manejo – APA Quilombos do Médio Ribeira”, um grande compilado com uma sistematização de estudos e pesquisas realizadas na região que abriga os 13 territórios quilombolas que compõem a APA, que também abarca um curto trecho de terras não quilombolas. Ali estão registros de recursos hídricos, riquezas de fauna e flora, geologia, particularidade da ocupação e todo descritivo levantado em pesquisas.
Para a assessora técnica do Instituto Socioambiental (ISA) Raquel Pasinato, a maneira simples com a qual a Fundação Florestal socializou estas informações com os representantes das comunidades quilombolas durante o Seminário foi positiva, auxiliando no entendimento de seu conteúdo, o que reforça a existência de caminhos possíveis para o estabelecimento de uma comunicação efetiva entre ambas as partes.
“É um ponto positivo que o Estado reconheça a garantia da Consulta Prévia, conforme a OIT 169 [Convenção sobre Povos Indígenas e Tribais, da Organização Internacional do Trabalho, que é lei no Brasil desde 2004] para realizar qualquer procedimento que vai afetar a vida das comunidades tradicionais. É sempre um avanço. E esse processo é importante porque abre precedentes para o Estado de São Paulo, que é um estado que precisa olhar o papel das comunidades tradicionais na conservação da biodiversidade. Eles precisam reconhecer que elas precisam ser consultadas antes de qualquer processo, inclusive de Plano de Manejo”, reforça Pasinato.
Liderança do Quilombo Maria Rosa, Dona Benedita Rocha sustenta que a participação é de extrema importância também para os quilombolas. “Para defender a comunidade e nossos territórios, nosso modo de viver, precisamos conhecer. E para conhecer a gente tem que participar.”
A importância que Dona Benedita dá à presença quilombola em espaços de debate e de tomadas de decisão ela já fez legado. Niceia Santos, aos 28 anos de idade, aos poucos vem assumindo o lugar de uma jovem liderança na comunidade.
“Para mim, é importante aprender com as lideranças mais velhas como lidar com as dificuldades que a gente sempre enfrenta. Por isso acho importante estar sempre presente nas reuniões da APA. Com este diálogo que estamos criando, e que nossos mais velhos não tiveram, conseguimos ter uma abertura maior com estes órgãos para tratar de tantas questões que são importantes para nós. Agora, conseguimos trazer a Fundação para mais perto, por exemplo, e mostrar nossa realidade. Assim eles enxergam que têm muito a aprender com a gente também”, explica.
Territórios quilombolas têm quase 90% de cobertura por Mata Atlântica nativa

Para além da importância representativa do Seminário em relação ao atendimento à Consulta Prévia, Pasinato ressalta também a relevância dos dados colhidos e reunidos no “Plano de Manejo – APA Quilombos do Médio Ribeira”.
Um destes dados é o de que 87,1% da área reivindicada apresenta um alto índice de cobertura vegetal nativa, com grau avançado de conservação. Este índice significativo de preservação auxilia na presença de grandes maciços de floresta e de fragmentos de mata com alto nível de proximidade, o que significa a presença de corredores ecológicos para a circulação de animais, garantindo seu habitat e a consequente sobrevivência das espécies.
De acordo com o levantamento, nos territórios foram registradas 421 espécies de fauna vertebrada, das quais 33 se encontram em ameaça de extinção, como onças, gaviões, macacos e pequenas aves. Já no levantamento da flora, 622 espécies foram catalogadas, sendo que 29 correm o risco de desaparecer da natureza. E ainda há o registro de animais invertebrados, cavernas e de vestígios arqueológicos e paleontológicos.
Leia também:
Quilombolas do Vale do Ribeira querem liberdade para plantar
“Os dados mostram o que as comunidades vêm fazendo ali naqueles territórios. A sobreposição da APA só reforça o sentido de que se trata de uma área muito conservada e protegida, e que isso vem de muito antes de ser uma Unidade de Conservação”, pontua Pasinato.
Nos momentos de diálogo, as lideranças quilombolas usaram da fala para exporem sua preocupação não apenas com seus territórios, mas também com o que é feito fora deles e chegam como ameaça às suas comunidades.
“Nós preservamos, mas tem muito produtor de fora que não segue as normas ambientais. A pulverização aérea é um grande problema em alguns territórios que estão próximos destas grandes plantações, por exemplo”, lembra o Sr. Ivo Santos Rosa, liderança do Quilombo Sapatu.
“E ainda tem a mineração, que é uma coisa que assusta muito a gente porque traz muita contaminação, principalmente para as águas. Temos medo do que pode acontecer no futuro com as nossas crianças”, ponderou o Sr. Adair Soares, coordenador da associação do Quilombo Nhunguara.
Com receio do avanço de mineradoras pela região, o Sr. Aurico Dias, do Quilombo São Pedro, diz acreditar que o Zoneamento, etapa do Plano de manejo da APA que virá após a Caracterização, pode ser mais um instrumento de fortalecimento e de proteção de seus territórios. “Do jeito que as coisas acontecem, a gente tem que ter algo para ajudar a frear estas empresas, um documento para nos amparar. Então acho que este trabalho pode ser muito importante para isso.”
APA abre canal entre comunidades e Estado, mas foi última saída para quilombolas


Gestor da APA, técnico da Fundação Florestal, Rodrigo Aguiar diz acreditar que o fato de a Área de Proteção Ambiental ser uma das categorias menos restritivas dentre as Unidade de Conservação, somado à possibilidade de apoio técnico que deverá constar da versão final do documento do Plano de Manejo, fará movimentar a economia da sociobiodiversidade nos 13 territórios quilombolas zoneados.
“Esta APA é fruto da recategorização do antigo Parque Estadual do Jacupiranga, que era um território de 150 mil hectares onde habitavam mais de 10 mil famílias. Mas em 2008 houve a criação do Mosaico de Unidades de Conservação do Jacupiranga (Mojac), com 14 Unidades de Conservação de diversas categorias. Por isso, eu acredito que o maior ganho foi a aproximação que estamos construindo com as comunidades desde então. Assim, vamos buscar gerir o território de modo a conciliar a ocupação humana, a produção e a biodiversidade, promovendo atividades de desenvolvimento sustentável que é o que as comunidades já realizam”, levanta Aguiar.
Coordenadora do Núcleo de Plano de Manejo da Fundação Florestal, Fernanda Lemes encerrou a atividade avaliando que a Fundação Florestal atingiu o objetivo esperado de promoção do diálogo com as comunidades para a construção do Plano de Manejo da APA, cuja atualização ainda será apresentada aos quilombolas.
Leia também:
Comunidades quilombolas do Vale do Ribeira (SP) cobram titulação dos territórios
Quilombolas do Vale do Ribeira lançam guia de plantas da Mata Atlântica
Lemes ainda comentou o ponto de atenção unânime entre as comunidades acerca dos conflitos que há nos territórios com o Estado, especialmente no trato e na abordagem pouco amigável de entidades fiscalizadoras em suas terras. “A partir do momento em que a gente criou um comitê de integração dos Planos de Manejo que envolve várias instituições, não só a Fundação Florestal, como a Cetesb, os institutos de pesquisa, a própria CFB, acho que demonstra esta integração institucional. E daí, ao passo que a gente identifica problemas e conflitos, o nosso papel é o de procurar minimizar, propor ações que a gente consiga acolher e resolver.”
Assessor jurídico do ISA, Fernando Prioste recorda, porém, que embora tenha havido tentativas de aproximação, a instituição da APA em sobreposição aos territórios que já são ocupados pelas comunidades historicamente, há mais de 300 anos, é mais uma página do racismo institucional da nossa história.
“O Estado reconhece que estas áreas são preservadas e institui Unidades de Conservação sem que as comunidades realmente queiram. Elas aceitaram a APA porque o parque que havia anteriormente restringia muito mais o uso da terra. Mas isso não quer dizer que elas estejam satisfeitas. E, no fim, o que já ficou claro, é que os territórios ocupados por comunidades tradicionais são muito mais eficientes para a conservação do que as próprias UCs”, reforça.
Como próximos passos, a Fundação Florestal incluirá no “Plano de Manejo – APA Quilombos do Médio Ribeira” os trabalhos realizados durante o Seminário e as demandas de atualização dos dados demográficos conforme o Censo Demográfico 2022. Em paralelo, cada comunidade socializará os dados ali obtidos e discutidos com seus membros para que a Eaacone sinalize ao Estado os prazos para a prosseguimento das atividades de sistematização.