Documentos construídos coletivamente fortalecem o direito à consulta prévia, o protagonismo das comunidades e a autonomia na tomada de decisões sobre seus territórios
Em uma conquista construída ao longo de anos de mobilização, as Associações de Moradores da Resex do Riozinho do Anfrísio (Amora), do Médio Xingu (Amomex) e do Rio Iriri (Amoreri) lançaram seus Protocolos de Consulta, reafirmando o direito de decidir sobre seus territórios de acordo com seus próprios modos de vida. O lançamento aconteceu no início de julho no Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares (Ineaf), da Universidade Federal do Pará (UFPA), em um encontro que reuniu lideranças comunitárias, pesquisadores, estudantes e apoiadores da causa socioambiental.

O evento contou com as participações dos presidentes das associações Raimundo Freire, Júlio César e Francinaldo Lima, das professoras da UFPA Raquel Rodrigues dos Santos e Natália Ribas Guerrero, da coordenadora adjunta do Programa Xingu do Instituto Socioambiental (ISA), Fabíola Silva, do advogado e doutorando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), Rodrigo Oliveira, da antropóloga Vanuza Cardoso, do Quilombo Abacatal, e do representante do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), José Ivanildo Brilhante, além de pesquisadores e estudantes do Ineaf.
Em sua fala, Fabíola Silva recordou o processo de elaboração dos protocolos, que foi iniciado em 2022 com amplo debate nas comunidades e respeitando as suas formas tradicionais de organização e os espaços de governança existentes.
“É fundamental que o protocolo reflita as práticas e os modos de tomada de decisão que as comunidades já exercem em seus territórios”, afirmou a coordenadora adjunta do ISA. “Nesse sentido, o papel do protocolo é registrar aquilo que já é vivenciado na prática. Assim, o documento se torna mais acessível, favorecendo a apropriação pelas comunidades e fortalecendo a sua efetividade”, avaliou.
O assessor das Associações da Terra do Meio, Francinaldo Lima, explicou que as comunidades que compõem a região são formadas, sobretudo, por descendentes de migrantes nordestinos que vieram trabalhar na época do auge da borracha, mas sem desconsiderar a importante participação da matriz indígena na composição desta sociedade dos seringais. “Com o fim do ciclo da borracha, essas pessoas permaneceram no território e foram desenvolvendo modos de vida com o rio e com a floresta e formando as comunidades ribeirinhas nessas áreas”, contou.

Lima relatou que durante muito tempo, esse território foi alvo de pressões externas com o roubo de madeira, a grilagem de terras e o garimpo ilegal, e a população não tinha acesso às políticas básicas.
“Na Resex do Rio do Anfrísio vivem 125 famílias, na Resex do Rio Iriri são aproximadamente 135 famílias e na Resex do Rio Xingu, 65 famílias. Essas famílias não tinham acesso às políticas de saúde e educação, por exemplo. Mas os moradores e as lideranças se mobilizaram para garantir os seus direitos e o acesso às políticas públicas com a construção de escolas e postos de saúde que passaram a funcionar a partir de 2014”, salientou.
O assessor também reforçou a necessidade da construção dos Protocolos de Consulta para delimitar melhor os espaços de governança e de tomada de decisão, sobretudo quando o poder público chega ao território.
O presidente da Associação de Moradores do Médio Xingu (Amomex), Júlio Souza, estava visivelmente emocionado com o lançamento do Protocolo de Consulta da sua comunidade. “Tivemos que passar por muita coisa, muitos direitos foram violados e não consigo nem expressar em palavras a emoção de lançar o Protocolo de Consulta e conquistar o nosso espaço, pois esse é um direito nosso, um direito de sermos consultados e sermos atendidos conforme o nosso modo de vida”, declarou.


Raimundo Freire, presidente da Associação de Moradores da Resex Riozinho do Anfrísio (Amora), concordou com Souza sobre a importância da consulta prévia à comunidade independente do órgão ou organização que queira desenvolver algum projeto na região.
“Pode ser do governo ou algum empreendimento privado. Nós fizemos os Protocolos e queremos que sejam respeitados através da consulta prévia para que todos os moradores entendam a real situação daquele projeto. Conseguimos lançar esse documento com muita luta, esforço e gasto, para hoje termos a garantia de que não podem fazer nada na nossa comunidade sem sermos consultados ou iremos cobrar do poder público”, enfatizou.
Freire também lembrou do fato do governo do Pará não realizar a consulta prévia nas comunidades da Terra do Meio durante o processo de venda dos créditos de carbono no estado.
Sobre esse tema, no mês passado, o Ministério Público Federal (MPF) entrou com uma ação para anulação de um contrato de compra e venda de créditos de carbono de quase R$ 1 bilhão a um grupo de governos estrangeiros e multinacionais alegando a violação da Lei 15.042, que regulamenta o mercado de carbono no Brasil. Além disso, não houve consulta prévia, livre e informada aos povos e comunidades tradicionais antes de o acordo ser firmado.
Consulta prévia: reflexões e experiências
O Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares (Ineaf/UFPA) possui um Bacharelado em Desenvolvimento Rural e um Programa de pós-graduação em Agriculturas Amazônicas e temas como os direitos de povos e comunidades tradicionais, dinâmicas territoriais e a elaboração de instrumentos, como os protocolos de consulta, são abordados na formação acadêmica.
A professora do Ineaf, Natalia Ribas Guerrero, que mediou a segunda mesa sobre as reflexões e experiências do processo de consulta prévia, confirmou a atuação de estudantes do Instituto cujas origens são desses territórios amazônicos.
“Nós entendemos como de suma importância ampliar a informação sobre o direito à consulta e aos protocolos, buscando contribuir com a defesa dos direitos em uma conjuntura marcada por ameaças e pressões”, afirmou.
A antropóloga e liderança espiritual do Quilombo Abacatal, Vanuza Cardoso, também participou do debate sobre as experiências da utilização do Protocolo em sua comunidade.
“Iniciamos a construção no nosso Protocolo de Consulta em 2017 por causa de um empreendimento, o projeto da Avenida Liberdade, que iria passar no meio da comunidade. Mas, com o Protocolo e muitas lutas e questionamentos, conseguimos mudar o projeto e hoje ele está a 1 km da comunidade. Isso não significa que não trará impacto, mas conseguimos tirá-lo de dentro do nosso território”, relatou a liderança.

Vanuza também destacou a importância do governo do estado do Pará em reconhecer e respeitar as regras dos protocolos e realizar as consultas prévias, como previstas em lei.
“Temos um banco de dados no Observatório de Protocolos que comprova que o estado do Pará é o que tem mais protocolos dos povos e comunidades tradicionais, mas não vemos uma sensibilidade do governo em observar esses protocolos. Por exemplo, este plano de consulta do [sistema jurisdicional de] REDD+ não foi prévio, nem foi informado”, afirmou.
Segundo o representante do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), José Ivanildo Brilhante, que também participou da mesa, a criação das reservas extrativistas (Resex) ocorreram como uma forma de garantir o direito ao uso da terra e dos recursos naturais, semelhantes aos das reservas indígenas.
“A nossa primeira ferramenta antes do território ser criado foi o Plano de Uso que é algo similar ao Protocolo de Consultas. O plano era utilizado para que o governo reconhecesse que existia uma relação diferenciada dessas comunidades com a natureza”, explicou Brilhante.
“Chico Mendes foi o fundador do CNS e lutava por uma reforma agrária para os seringueiros, o que nós chamamos de reforma agrária ecológica que possibilitou o surgimento das reservas extrativistas como um território coletivo das populações tradicionais e da biodiversidade. Com a publicação do Decreto 6.040/2007, passamos a ter acesso às políticas públicas”, comemorou.
Oficina para elaboração de um Protocolo de Consulta
No segundo dia de atividade de lançamento dos Protocolos das Resex, o advogado e doutorando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), Rodrigo Magalhães de Oliveira, ministrou uma oficina sobre a elaboração de um protocolo de consulta detalhando as etapas deste instrumento e ressaltando a importância do intercâmbio de conhecimentos e das trocas de experiências entre os participantes que, muitas vezes, são originários de diferentes regiões e culturas, mas sofrem com as violações de direito de forma semelhante.
“Para além de auxiliar na formação de possíveis mediadores e apoiadores das comunidades desses processos de construção de um protocolo de consulta, este espaço também permite o compartilhamento de experiências, pois temos aqui presidentes de associações, lideranças e estudantes com trajetórias diversas e que, certamente, em algum momento se depararam com violações de direito à consulta durante a construção de empreendimentos na Amazônia que desrespeitaram os direitos das populações locais”, ressaltou.
Os principais pontos expostos por Oliveira durante a oficina foram sobre o direito à consulta prévia de uma comunidade ou povo e como aquela comunidade toma as suas decisões. Esse procedimento deve ser detalhado no protocolo de consulta daquele povo, conforme previsto na Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
O palestrante reforçou também que o Estado tem o dever de realizar a consulta prévia independentemente da existência de um protocolo de um povo ou etnia, e essa consulta não poderá ser uma responsabilidade da empresa interessada em desenvolver algum projeto na região.

Oliveira trouxe aspectos teóricos importantes para um melhor entendimento do processo de elaboração de um protocolo como o conceito do multiculturalismo, por exemplo. Segundo o advogado, a ideia do multiculturalismo nasce nos países liberais com a proposta de incorporar as minorias étnicas às regras jurídicas e políticas de um determinado país.
“A ideia de distribuição de direitos coletivos para os grupos étnicos minoritários como os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, evitou que essas comunidades se insurgissem ou se rebelassem contra o Estado”, explicou.
Essa necessidade de previsão dos direitos das minorias nas legislações dos Estados nacionais, por meio das Constituições, e internacionais, como na Convenção 169 da OIT, foi suscitada pelos inúmeros acirramentos dos conflitos étnicos no mundo e não somente nos países de passado colonial, mas, inclusive, nos países europeus.
Para Oliveira, o objetivo era mudar a relação de integração forçada, de assimilação, de genocídio, de desterritorialização dos povos, a partir dessas novas leis e do reconhecimento dos direitos coletivos desses grupos.
“No entanto, o problema desse modelo é que as decisões continuam a cargo dos grupos hegemônicos. Por isso, a importância dos protocolos de consulta”, concluiu.