PDL 717/2024 revoga dispositivo central do Decreto nº 1.775/1996 e anula homologações das TIs Toldo Imbu e Morro dos Cavalos, em SC
O Plenário do Senado Federal aprovou, nesta quarta-feira (28/05), o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 717/2024, que desmonta o atual modelo de demarcação de Terras Indígenas (TIs) no país. A proposta revoga o artigo 2º do Decreto nº 1.775/1996, norma central que regulamenta os procedimentos administrativos de demarcação de TIs. O projeto também suspende os decretos presidenciais de homologação de duas TIs em Santa Catarina: Toldo Imbu, do povo Kaingang e localizada em Abelardo Luz, e Morro dos Cavalos, do povo Guarani, em Palhoça. Ambas são reconhecidas pelo Estado brasileiro há mais de uma década – tendo sido homologadas pela presidência da República em dezembro de 2024, após anos de mobilização indígena.

O texto foi aprovado em votação simbólica no plenário poucas horas após ter sido aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa, também nesta quarta. A proposta agora segue para análise na Câmara dos Deputados e acentua a preocupação de organizações indígenas e da sociedade civil. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) alertou que a medida representa grave violação dos direitos constitucionais dos povos indígenas e pode abrir um precedente perigoso, ameaçando o conjunto das demarcações em curso no país.
Na CCJ, a votação foi igualmente simbólica e apenas os senadores Rogério Carvalho (PT-SE) e Zenaide Maia (PSD-RN) votaram contra o projeto. No plenário, a proposta foi aprovada sem qualquer debate e contou com apoio de integrantes da base do governo. Recebeu manifestação contrária de apenas três parlamentares: o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA); o líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues (PT-AP); e novamente Rogério Carvalho.
“Os parlamentares precisam lembrar que existe uma Constituição neste país. É dever deles respeitá-la”, afirma Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Apib. “E o governo, se diz que está com os povos indígenas, precisa se comprometer de verdade e enfrentar com firmeza essa agenda anti-indígena que avança no Senado e na Câmara”.

A suspensão do Decreto 1.775/1996 compromete diretamente os estudos técnicos e jurídicos fundamentais para a delimitação de Terras Indígenas, como o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID). Esse relatório é elaborado por grupos técnicos, compostos por especialistas e servidores da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), com base em estudos antropológicos, etno-históricos, ambientais e fundiários. A suspensão desse dispositivo esvazia a base legal que estrutura os procedimentos demarcatórios, paralisando os trabalhos em andamento e criando um vácuo normativo sem precedentes.
“Com a suspensão do decreto, os procedimentos demarcatórios ficam paralisados até que novo regramento venha a existir”, afirma Alice Dandara de Assis Correia, advogada do Instituto Socioambiental (ISA). “O Senado está empreendendo uma ofensiva para suprimir os direitos territoriais dos povos indígenas e ampliar a insegurança jurídica, abrindo espaço para a perenização dos conflitos ali existentes.”
Correia reforça que o PDL vai além do que a Constituição permite. Pela regra, esse tipo de projeto só pode anular atos do governo federal quando eles ultrapassam os limites definidos por lei — ou seja, quando o Executivo exagera no uso de seu poder para regulamentar assuntos. Mas, neste caso, os decretos que homologam Terras Indígenas não criam novas regras nem extrapolam esse poder. Eles apenas confirmam decisões administrativas já tomadas com base na legislação vigente. "Por isso, o PDL não só fere a legalidade, como também distorce a função para a qual esse tipo de projeto foi criado", explica.
A proposta foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e levada ao plenário no mesmo dia, em um trâmite acelerado e incomum. Mesmo sem a presença do relator designado, senador Alessandro Vieira (MDB-SE), o projeto foi mantido em pauta. O parecer de Vieira, que propunha suspender apenas o artigo do decreto, foi rejeitado. Em seu lugar, foi aprovado o voto em separado do senador Sérgio Moro (União-PR), que acolheu integralmente a proposta do senador Esperidião Amin (PP-SC), autor do PDL, incluindo a anulação das homologações das duas TIs.

A Apib enfatiza que as terras afetadas foram reconhecidas após longos e rigorosos processos administrativos, baseados em marcos legais consolidados. As duas Terras Indígenas foram objeto de Portarias Declaratórias emitidas pelo Ministério da Justiça — a de Toldo Imbu em 2007 (Portaria nº 793) e a de Morro dos Cavalos em 2008 (Portaria nº 771). Esses atos administrativos são etapas decisivas do processo demarcatório e confirmam o reconhecimento oficial da ocupação tradicional dos povos indígenas sobre essas áreas. Ambos os processos ocorreram com base na legislação em vigor à época, sobretudo o Decreto nº 1.775/1996.
Desde então, as comunidades aguardavam a homologação por decreto presidencial, o que só foi efetivado em 2024. “A tentativa de anular essas homologações com base na Lei nº 14.701/2023 — sancionada, durante esse período de espera — ignora o fato de que os procedimentos legais já haviam sido concluídos dentro da legalidade anterior”, afirma Diogo Rosa Souza, advogado do Instituto Socioambiental (ISA).
Na CCJ, a revogação das demarcações se deu sob o argumento de que estão em desacordo com a Lei do Marco Temporal (Lei 14.701), aprovada pelo Congresso Nacional em 2023. O líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), criticou a proposta, ressaltando que os processos de demarcação das terras em questão são anteriores à legislação do marco temporal e que os decretos foram assinados no final do ano passado, após longos processos administrativos iniciados nos anos 1990.
A lei estabelece que apenas as terras ocupadas por indígenas na data da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988, podem ser demarcadas. No entanto, sua constitucionalidade está sendo questionada novamente no Supremo Tribunal Federal (STF), que em setembro de 2023 declarou a tese inconstitucional. Uma mesa de conciliação está em curso no STF para debater o tema. Proposta por Gilmar Mendes, relator do caso, a conciliação segue sem a participação da Apib, que se retirou dos debates depois que seu pedido de suspensão da Lei 14.701 foi ignorado por Mendes.
Para Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Apib, a aprovação do PDL representa uma afronta direta à Constituição Federal. “O processo de homologação dessas terras seguiu todos os trâmites legais, de acordo com o Decreto 1.775 e com a própria Constituição. Não há justificativa jurídica para essa suspensão”.
Tuxá afirma que o PDL fomenta a insegurança jurídica e a violência nos territórios. Ele alerta para o avanço de uma ofensiva legislativa articulada por setores conservadores e ruralistas. “O Congresso Nacional vem atuando com força para desmontar não só os direitos dos povos indígenas, mas também toda a política ambiental. É uma estratégia maldosa, promovida principalmente pelo agronegócio e por aqueles que querem o fim dos povos indígenas.”.
Em nota, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) manifestou preocupação com as últimas ações do Senado e reiterou que os decretos homologatórios das duas TIs são fruto de um trabalho técnico criterioso e amplamente fundamentado, conduzido pela Funai, órgão vinculado ao MPI. “Tal ato administrativo representa a materialização de um direito originário e imprescritível dos povos indígenas, reafirmando o compromisso constitucional do Estado brasileiro com a justiça histórica e a segurança jurídica do procedimento demarcatório de territórios indígenas”, afirma a nota.
Decreto 1.775/1996
Núcleo central dos procedimentos de demarcação de Terras Indígenas, o art. 2º do Decreto nº 1.775/1996 prevê a realização de estudos antropológicos de identificação, que terá como resultado o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID).
O artigo também determina a participação de grupo técnico especializado, idealmente composto por servidores do quadro funcional da Funai, com o objetivo de realizar estudos de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário necessários à delimitação, que comporão o RCID. Também o dispositivo garante a participação do grupo indígena envolvido em todas as fases do procedimento administrativo.
O procedimento, como se encontra, tem prazos, datas e a garantia de sua realização por técnicos e servidores dos órgãos responsáveis, com qualificação profissional para a produção dos estudos necessários para a sua declaração. Também é cabível aos estados e municípios e demais interessados se manifestarem sobre as demarcações, dentro do prazo ali estipulado.
A suspensão desses procedimentos afeta os trabalhos em andamento pela Funai e cria um vazio legislativo sobre a forma, o método e os prazos para esses procedimentos administrativos se realizarem. Paralisaria assim, o trabalho do órgão.
Ao todo, no Brasil, das 809 Terras Indígenas, 518 estão com processo de demarcação finalizado e 291 estão com processo incompleto: 167 estão em estudos para identificação; 36 já tiveram seus estudos de identificação aprovados pela Funai; enquanto 68 tiveram suas portarias de declaração assinadas pelo Ministério da Justiça estão aguardando homologação presidencial; e 20 são Reservas Indígenas em processo de regularização.
Terra Indígena Morro dos Cavalos

A Terra Indígena Morro dos Cavalos está situada no município de Palhoça (SC), com uma população de 343 pessoas, segundo dados do Censo 2022. A TI foi homologada pelo presidente Lula em dezembro de 2024, após mais de 30 anos de espera.
Com 1.983 hectares, parte da área é sobreposta ao Parque Estadual (PES) Serra do Tabuleiro. Território tradicional dos povos Guarani Mbya e Guarani Ñandeva, registros históricos confirmam a presença dessas comunidades na região do Morro dos Cavalos desde o século XVII.
O Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID), aprovado pela Funai em 2002, aponta a construção da rodovia BR-101 como propulsora das invasões ao território guarani. O relatório destaca ainda a criação do PES Serra do Tabuleiro, em 1975, como outro vetor importante de conflitos fundiários na região que estão presentes até os dias atuais.
Terra Indígena Toldo Imbu

Localizada no município de Abelardo Luz (SC), a Terra Indígena Toldo Imbu é de ocupação tradicional do povo Kaingang. Segundo o Censo 2022, a população é de 393 pessoas.
A área declarada com 1.970 hectares é apenas uma parcela do território inicialmente destinado aos Kaingang. Em 1902, um decreto estadual do Paraná reservou uma área de 50 mil hectares como pagamento pelo trabalho realizado na instalação de linhas elétricas. No entanto, quinze anos depois, a promulgação da Lei estadual nº 1,147, transferiu parte da TI para jurisdição do governo de Santa Catarina, que destinou o território para não indígenas.