No Médio Rio Negro, o turista se torna um visitante – acolhido e guiado pelos povos que ocupam ancestralmente o território
Começa a tarde na comunidade de Boa Vista, no Médio Rio Negro, Amazonas. As pessoas se preparam para almoçar, seguindo a regra dos anfitriões indígenas, que indicam que os primeiros a se servirem devem ser os visitantes.
Sobre a mesa, há uma diversidade de alimentos da floresta e dos quintais, como cará roxo, beiju, peixe moqueado – ou defumado –, peixe ensopado, buriti, abacaxi, banana, entre outras delícias.
Acesse o site das Serras Guerreiras de Tapuruquara
Antes do cochilo na rede, logo após o almoço e com o forte calor amazônico, ainda resta disposição para uma conversa. Seu João Vieira Brazão, do povo Baré, usa o bloco de anotações e uma caneta para começar a rascunhar uma pequena gramática ilustrada de nheengatu, para ensinar um pouco de sua língua.
Desenha um rosto, coloca setas indicativas e vai escrevendo: olho, reçá; nariz, tym; cabeça, yakãga; orelha, nãby, boca, yorou. Em seguida, avança um pouco: meu nariz, se tym; meu olho, se reçá, minha boca, se yorou, minha orelha, se nãby. Como bom professor, vai em frente e forma uma frase: minha cabeça dói ou se akãga sacy.
A aula na língua nheengatu – um tanto improvisada pelo seu João Brazão – não faz parte do roteiro oficial do projeto de turismo Serras Guerreiras de Tapuruquara. Mas dá uma ideia dos encontros possíveis ao conhecer a Amazônia dos indígenas. E acompanhados dos indígenas.
O projeto oferece dois roteiros de cultura e aventura. O Maniaka tem ênfase na parte cultural, enquanto o Witera oferece mais aventura (detalhes abaixo).
A viagem acontece no Estado do Amazonas, entre as cidades de São Gabriel da Cachoeira e Santa Isabel do Rio Negro, numa das regiões mais lindas do Estado, com um cenário único onde há serras em meio ao tapete verde da floresta. A visitação acontece de agosto a fevereiro, quando as chuvas diminuem na região, sendo que cada expedição dura de 8 a 12 dias.
Para cada serra, um nome. Vamberto Plácido, do povo Baré, que nasceu e sempre viveu nessa região, conta que as serras que dão nome ao projeto são, na verdade, guerreiros.
“Então, contando um pouco da história das serras guerreiras, vou contar para vocês uma históriazinha dessas serras. Segundo os mais antigos, essas serras, eles eram os guerreiros. Cada uma delas tem seu nome. Por isso que é o Jacamim, a Jacuraru, a Cutia, o Porco, o Trovão e a Anta. Saindo da Colômbia, percorreram a noite toda, mas não conseguiram pegar o destino onde iam guerrear com outra serra, onde ficava a cobra conhecida como cobra do Tukano. Eles não conseguiram chegar até lá e amanheceram o dia e ficaram até hoje. Então, esse projeto já trouxe o nome das Serras Guerreiras de Tapuruquara. Tapuruquara é o antigo nome de Santa Isabel do Rio Negro”, narra.
Para entrar nesse território – que é sagrado –, é preciso benzimento. Com esse ritual, o pajé apresenta os turistas aos verdadeiros donos da área, invisíveis aos não indígenas. Feita a proteção, é hora de aproveitar a viagem!
Variedade de lugares, sabores e experiências
Subida de serras, canoagem, culinária tradicional, oficinas de artesanato, banhos de rio, narrativas indígenas, danças e muita cultura.
Os passeios não se repetem. A depender da época, da seca ou das chuvas, as paisagens e os roteiros mudam – dificilmente o visitante vai nadar duas vezes na mesma praia.
Do alto das serras, é possível ver de cima a copa das árvores da floresta amazônica, o rio serpenteando, o voo das araras.
Depois de percorrer trilhas, ouvir histórias, visitar roças, fazer farinha e artesanato, nadar em praias de areia branca, remar, comer os alimentos tradicionais, você ainda poderá ter contato com a cultura dos 23 povos indígenas do Médio e Alto Rio Negro, que ocupam ancestralmente este território. Nessa região, convivem povos como os Baré, Tukano, Baniwa, Desano, Piratapuya, Arapaso, Nadeb, entre outros.
Na comunidade de Boa Vista, por exemplo, os turistas vão dançar o Mawako e participar de um Dabucuri. O ritual acontece em ocasiões especiais, agradece e compartilha os bons momentos e as farturas.
Na comunidade de Aruti, a artesã Alciene da Silva de Oliveira, povo Piratapuia, ensina a manejar o arumã, usado para as peças artesanais como os tapetes. Em São João 2, Jacson Luis Costa Silva e Marlice Brandão Pinheiro, do povo Baré, convidam para sentir nas mãos a argila dos igarapés amazônicos e moldar pequenas peças seguindo a tradição milenar da arte de fazer cerâmica.
No projeto de turismo de base comunitária, o passeio tem um componente a mais. Além de passear, o turista apoia os indígenas e ajuda a preservar o meio ambiente, contribuindo para uma atividade econômica sustentável. São cerca de 200 famílias beneficiadas em cinco comunidades: Cartucho, Aruti, São João 2, Uábada 2 e Boa Vista.
E, ao se prepararem para receber os turistas, os indígenas acabam reforçando a própria cultura, inclusive repassando aos mais jovens envolvidos nos projetos da sociobiodiversidade.
Os esforços exigidos nas viagens amazônicas são compensados na hora do descanso. O corpo se ajeita na rede. É hora de dormir como os indígenas.
Na chegada e na saída, há momentos de muita emoção. Na recepção aos turistas, as crianças indígenas cantam para receber os visitantes, na língua indígena. Na despedida, é hora de abraçar os anfitriões, que já se tornaram amigos.
Por volta de setembro, quando as águas baixam no início da estação seca, a paisagem ganha generosas revoadas das borboletas amarelas, que agrupadas no chão formam verdadeiros tapetes vivos.
Coordenador geral do Serras Guerreiras de Tapuruquara, Marcos Baltazar Salustiano, do povo Baré, morador da comunidade do Cartucho, convida para essa visita.
“A gente convida você a vir participar do nosso projeto, que é familiar. A gente tem esse contato com as pessoas de fora, mas é um contato assim, de amigo. As comunidades oferecem um carinho enorme para essas pessoas que vêm. E essas pessoas que vêm deixam também um carinho enorme nas comunidades. Por isso que a gente convida todos a participarem do projeto Serras Guerreiras de Tapuruquara, que envolve os 23 povos indígenas de várias etnias, como Baré, Tukano, Desano, Nadeb.”
Puranga Pesika – Sejam bem-vindos!
Depoimentos
Jaciel Manoel Rodrigues, povo Baré, morador da comunidade do Cartucho e coordenador da Associação das Comunidades Indígenas Ribeirinhas (Acir)
Desde o início do projeto, a gente tem essa mentalidade. Todos que chegam, para a gente é como se fosse o nosso vizinho daqui. A gente acolhe com carinho, todos eles. E a gente se sente muito feliz quando eles estão aqui entre a gente.
Elaine da Silva Galvão, coordenadora do projeto Serras Guerreiras de Tapuruquara na comunidade Aruti
A gente convive com outras pessoas. A gente conhece outras pessoas e eles conhecem a gente também, nossa língua, que é o nheengatu.
O que o visitante pode aproveitar da culinária? Bacaba, bacabinha, patauá. Surubi, pirandira, aracu, pacu. Tucupi doce, tucupi azedo, pimenta. Todo tipo de peixe eles pegam, eles trazem para oferecer aos turistas. Tem caldeirada, assado, frito, moqueado e, às vezes, até salgado.
Professor Rosemiro Torres Olar, povo Baré, professor e coordenador do projeto Serras Guerreiras de Tapuruquara na comunidade Uábada II
Esses lugares são sagrados. Cada cachoeira tem um nome, tapiracanga, jurupari, outro lá, piramiri, kiuá. Tudo isso aí, ele se envolve em apenas um dono, que é Uaimi, que significa velha. Ela que cuida disso aqui. É dono de tudo esse patrimônio que tem aqui para dentro desse igarapé. Então toda vez que a gente vai para dentro do igarapé pescar, atrás de algum produto, ou vai a passeio, nós temos que pedir permissão a ela.
Um dos pajés, toda vez que a gente recebe o turista, para cá, principalmente pela primeira vez, ele faz um benzimento. Para que esse benzimento? Esse benzimento é para apresentar o visitante para o dono do igarapé, o dono da cachoeira. Então seria apresentar. Por isso, pelo cuidado que temos que ter com o turista. Proteger o nosso visitante.
Orlandino Cordeiro de Oliveira, povo Baré, conhecedor indígena e morador de Aruti, recebe os turistas em sua casa
Meu nome é Orlandino de Oliveira, essa é minha família. Somos eu e minha família aqui. Minhas filhas, minhas noras, filhos, genros. Uma partezinha. A maioria está por aí. Sabe por que que possui esse nome de Aruti, essa ilha? Não tem essa pedrazona bem no rabo da ilha? Essa é Aruti. Isso significa, em português, é preguiça, a Ilha da Preguiça. Mas é o nome da ilha, não é porque eu sou preguiçoso. Esse Aruti está em nheengatu, língua de Baré.
João Vieira Brazão, povo Baré, coordenador do projeto Serras Guerreiras de Tapuruquara na comunidade de São João 2
Espero que você venha conhecer aqui. Esperamos de braços abertos, com muito entusiasmo, para que conheçam a nossa realidade, a nossa floresta, o nosso rio, a nossa imagem pessoalmente, ao vivo, conhecer a nossa comida tradicional, conhecer o fruto da nossa região aqui, comer o peixe gostoso, conhecer a nossa farinha, o nosso beiju, a nossa fruta tradicional.
Vamberto Plácido Rodrigues, povo Baré, ex-coordenador do Projeto Serras Guerreiras e atual servidor da Funai
Esse projeto, o benefício que trouxe para foi o intercâmbio das pessoas que vêm de fora conhecer a nossa cultura nas comunidades. Isso faz com que essa cultura se fortaleça. Porque apresentamos aos turistas a dança cultural, a própria língua, a dança.
Bruno Mangolini, coordenador da Poranduba Amazônia, participou da expedição em outubro de 2023
Além de você estar vivendo uma experiência muito peculiar, muito rica, de passear, de conhecer um lugar diferente, uma cultura, isso vai também vai contribuir com as comunidades, inclusive com o resgate da parte cultural. Também gera renda para a comunidade.
O que fica mais marcante fora os passeios, a parte gastronômica, as belezas naturais, é o cuidado dos indígenas que estão nos recebendo. A simpatia, a alegria deles em receber o visitante que vem conhecê-los, acho que isso é muito marcante.
Mari Salim, sócia da Montanero Expedições, participou da expedição em outubro de 2023
A gente percebe o resgate de vários saberes tradicionais, inclusive de saberes que os mais jovens não estavam valorizando tanto. E foi muito bonito perceber que eles estão articulando tudo isso por conta desse trabalho de turismo. Para mim, o que mais encantou foi a mobilização desse resgate, junto às famílias e os jovens, e o quanto eles já estão se sentindo orgulhosos de estar apresentando isso para nós. E fiquei muito contente de ver uma preocupação não só com a segurança, mas com o conforto de todos os visitantes que vêm. Desde os dormitórios, até a culinária e os transportes.
Jéssica Martins, assessora técnica em turismo do Instituto Socioambiental (ISA)
O projeto Serras Guerreiras é sonhado e construído junto com as comunidades, pelas comunidades indígenas do médio rio Negro. Esse é um roteiro que acontece nessa região bem especial, do Noroeste Amazônico, com uma paisagem diferenciada, tanto na questão da natureza, quanto na questão dos povos indígenas e na parte cultural, que é muito rica e muito diversa.